Daesh
quer incendiar a França
JORGE ALMEIDA
FERNANDES 17/07/2016 – PÚBLICO
O Daesh (ou Estado
Islâmico) dá a ideia de que, à medida que perde território e
efectivos na Síria e no Iraque, multiplica o terrorismo noutras
paragens — uma escalada. Em Novembro passado foi o massacre de
Paris. Na semana final deste Ramadão matou cerca de 300 pessoas em
atentados suicidas: Turquia, Bangladesh, Iraque, Iémen, Líbano,
Arábia Saudita e outros. Dias depois voltava à França, em Nice e,
simbolicamente, no 14 de Julho. O objectivo imediato do terrorismo é
aterrorizar. E aterrorizar não é apenas intimidar o inimigo. É
também o convite a reacções contraproducentes ou desesperadas.
E tem outras
vertentes. “O Daesh precisa de manter uma imagem de êxitos e
vitórias para atrair seguidores. Se já não pode dizer que está a
construir um Estado islâmico, e se de facto o está a perder,
precisa de ganhar noutros lugares”, explica Daniel Byman, analista
da Brookings Institution. Visa, por um lado, reforçar a sua
liderança do movimento jihadista mundial. E visa, por outro, nas
palavras de Gilles Kepel, autor de Terreur dans l’Hexagone: Genèse
du djihad français (Terror no Hexágono: génese da jihad francesa),
“desencadear uma guerra civil em França”.
Este é o aspecto
que hoje me interessa, não os teatros de guerra no Médio Oriente.
Diga-se que o inimigo prioritário do Daesh, e a sua principal
vítima, são muçulmanos, xiitas ou sunitas “apóstatas”, isto
é, todos os que se lhe opõem. Mas um massacre em Paris ou Nice tem
dez vezes mais visibilidade do que dez carnificinas em Bagdad.
Terrorismo endógeno
A chave do problema
é que, em França, o terrorismo é endógeno: é praticado por
jovens muçulmanos nascidos ou educados em França. A actual
mobilização jihadista é “um fenómeno sem precedentes e de
alcance global, pois tem uma das suas bases fundamentais na Europa”,
escreveu há meses o especialista espanhol Fernando Reinares. “Os
países mais afectados são aqueles em que predominam os muçulmanos
de segunda geração” — como a França, a Grã-Bretanha ou a
Alemanha. A mobilização jihadista decorre de uma “crise
generalizada de identidade”. Radicalizam-se e “contribuem para a
insurreição jihadista na Síria e no Iraque. E [na Europa] elevam a
ameaça do terrorismo endógeno”. A França, com a maior comunidade
muçulmana da Europa, cinco milhões de pessoas, é assim um alvo
prioritário.
Os especialistas do
islão que estudam esta “segunda geração” diferem em vários
pontos. Kepel defende que estamos perante uma deriva geral do
islamismo extremista. Ao contrário, Olivier Roy afirma que a
religião não é determinante, sendo mais importante “a
radicalização individual e social da violência”. Para Kepel, a
irrupção do islamismo radical, fundamentalmente o salafismo,
numericamente fraco mas forte pela sua influência, levou a uma
ruptura com a sociedade francesa. “Os islamistas souberam explorar
de forma perversa a noção de islamofobia”, dando aos jovens
muçulmanos uma identidade de vitimização e impedindo a sua
integração social.
Para Roy, “o
jihadismo é uma revolta geracional e niilista”, de raiz social e
cultural. Eles são marginais perante a própria comunidade
muçulmana. Não se trata de uma radicalização do islão, mas de
“uma islamização do radicalismo”. Por um caminho ou outro,
viajam para a Síria. “Integrar o Daesh é a certeza de
aterrorizar”, conclui Roy.
A polícia tem uma
versão mais prosaica. Jean-Paul Bonnet, ex-comissário da polícia,
escreveu em Junho no Le Monde após o assassínio de dois polícias,
um artigo sobre o novo “terrorismo low cost” do Daesh, de que
Nice viria a ser o mais sinistro exemplo. “Estamos na presença de
uma nova forma de guerrilha urbana, de um terrorismo do tipo “kill
fast and easy” (um assassínio ao alcance da mão).”
Prossegue: “Graças
à Internet e à potência das redes sociais, a jihad tornou-se
mundial. O califado adapta-se e torna-se num califado cibernético,
tanto mais perigoso quanto é dificilmente detectável e fugidio. No
nosso país, os soldados desta nova forma de guerra são
frequentemente delinquentes que nasceram ou cresceram na França.
Foram recrutados em mesquitas clandestinas ou nas prisões. Não
precisam de ir combater na Síria para serem adoptados pelo Daesh. A
vantagem destes novos combatentes reside principalmente na banalidade
da passagem ao acto criminal, na facilidade do acesso a armas e
explosivos e, sobretudo, na sua capacidade de beneficiarem de
cumplicidades e redes.”
Risco de confronto
Em relação à
Europa, e especialmente no relativo à França, o Daesh tem outro
desígnio. Convida o Estado a uma resposta desmesurada, reprimindo as
comunidades muçulmanas e cortando todas as pontes entre elas e as
sociedades europeias. Resume o italiano Francesco Strazzari,
professor de Relações Internacionais: “Querem uma sociedade sob
permanente ataque, aterrorizada e militarizada. O objectivo é sempre
o mesmo, extremar os conflitos entre cristãos e muçulmanos no
Ocidente para levar a um confronto de civilizações, uma batalha
apocalíptica, de que sairia vencedor o Estado Islâmico e a sharia
seria lei para todos.”
Esta visão
apocalíptica é própria do Daesh. Se é delirante, encerra,
contudo, um elevado risco. Patrick Calvar, director da Direcção-
-Geral de Segurança Interna francesa, declarou em Maio a uma
comissão parlamentar temer “uma confrontação entre grupos de
ultradireita e o mundo muçulmano”. Disse-se preocupado com “a
radicalização e a vaga de fundo que ela arrasta” e que é
necessário tomar medidas perante os “grupos extremistas”. Mais
um ou dois atentados, a confrontação pode acontecer, avisou.
O politólogo
Jean-Yves Camus, especialista da extrema-direita, leva a sério esta
advertência. Declarou ao Libération: “Após mais um ou vários
ataques maciços da área islamista, pode produzir-se uma reacção
violenta. Não creio que a população de um país possa
indefinidamente digerir ataques maciços e exorcizá-los com
comemorações. Creio, de resto, que o esquema de uma confrontação
violenta de carácter étnico existe há muito tempo na
extrema-direita.” Refere-se a grupos clandestinos de skinheads
neonazis, mas pensa que uma iniciativa terrorista poderia partir de
grupos ainda não constituídos ou de actos individuais. Por enquanto
trata-se mais de palavras do que actos.
“Acrescento que
esta confrontação é desejada pelas duas partes, porque, para os
islamistas radicais, seria um meio de unir em torno de uma identidade
comum pessoas com diferentes relações com o islão.”
Vários países
europeus têm longa experiência do combate ao terrorismo. Paciência,
investigação, repressão, império da lei. O grande risco é a
percepção disto nas várias comunidades, todas vulneráveis. Se os
cidadãos deixarem de acreditar na eficiência dos serviços de
segurança para os proteger, a França expõe-se às mais graves
derrapagens.
“O medo, o medo
verdadeiro, é um delírio furioso”, escreveu Bernanos numa
passagem que já uma vez citei. “De todas as loucuras de que somos
capazes, o medo é a mais cruel. Nada iguala o seu vigor, nada pode
suster o seu choque.”
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