Contra-golpe
de Erdogan em marcha
“O
paradoxo é que, ainda mais do que no passado, a oposição precisará
de provar o seu patriotismo para não ser acusada de inimiga da
democracia, depois de Erdogan ser ter tornado o ícone da democracia
graças aos conspiradores”
Jorge Almeida
Fernandes / 19-7-2016 / PÚBLICO
Não será tão cedo
que saberemos o que foi o golpe de 15 de Julho. Deixou 260 mortos.
Chocou os turcos e a comunidade internacional, que pensavam que a era
dos golpes tinha passado à história. Mas sabemos, e com clareza,
que no sábado começou o contra-golpe do Presidente Tayyip Erdogan,
visando neutralizar os que se lhe opõem nas Forças Armadas, nas
polícias ou na Justiça, e rever a Constituição de forma a
concentrar todos os poderes. Está em curso uma gigantesca “purga”
do aparelho de Estado. Não é inédito: um golpe falhado pode dar
lugar a um contra-golpe de grandes proporções. É uma figura
clássica.
Que foi o 15 de
Julho? Erdogan deu uma divina versão: “Foi uma bênção de Deus.”
Porquê? “Porque este movimento vai servir de oportunidade para
limpar as nossas Forças Armadas que devem ser totalmente puras.”
O 15 de Julho
A Turquia tem uma
longa tradição de golpes militares. O que os turcos nunca
conheceram foi um golpe como este. Até agora, os golpes eram obra do
comando das Forças Armadas. E tinham uma regra: que a população os
apoiasse ou, no mínimo, tolerasse.
“Desta vez, o que
impressiona é o amadorismo dos putschistas, a improvisação e o
facto de apenas representarem uma pequena parte do Exército”,
declarou ao Le Monde o politólogo turco Ahmet Insel. “A sua
primeira iniciativa não foi, como nos golpes ‘clássicos’,
apoderarem-se dos representantes do poder civil — designadamente de
Erdogan — mas deter o chefe do EstadoMaior e das diferentes armas,
numa espécie de golpe de Estado dentro do próprio Exército.”
Pela primeira vez, soldados dispararam contra soldados e, também
pela primeira vez, golpistas bombardearam Ancara e Istambul.
Erdogan
imediatamente designou o mentor do golpe: o imã Fetullah Güllen,
auto-exilado dos Estados Unidos desde 1999, para estar ao abrigo dos
militares turcos e dos juízes kemalistas. Os autores designados são
os gülenistas, ex-aliados de Erdogan, que o ajudaram a neutralizar o
poder político dos militares e que depois que entraram em conflito
com ele, em 2013, quando magistrados a eles ligados começaram a
investigar a corrupção no Partido da Justiça e do Desenvolvimento
(AKP) e na própria família de Erdogan.
O problema é que os
gülenistas, organizados no movimento Hizmet (Serviço) e poderosos
na magistratura, na polícia, no ensino ou na comunicação social,
sempre viram vedada a entrada nas academias militares, pelo menos até
2004. Têm uma presença marginal no Exército, ocupando sobretudo
lugares subalternos. Mais curioso: o comunicado dos golpistas usou o
nome de “comité para a paz na Pátria”, uma expressão de Kemal
Atatürk.
Erdogan controla o
Exército desde 2011. Mas a instituição militar permanece poderosa
e mantém uma grande autonomia. Gonul Tol, uma analista
turcoamericana, publicou no dia 30 de Maio na Foreign Affairs um
artigo intitulado “O próximo golpe militar na Turquia”, dando
conta de existência de grandes tensões com Erdogan. Para combater
os gülenistas, ele terá sido forçado a fazer concessões ao
Exército. O conflito curdo, em que o Exército está na primeira
linha, teria aumentado de novo o papel político dos militares. O
diário israelita Haaretz refere também fortes divisões sobre as
políticas síria e curda, tensão agravada pelos atentados do Daesh.
O certo é que as
Forças Armadas turcas são um mundo fechado sobre o qual muito pouco
se sabe. A melhor explicação do golpe que os círculos de Erdogan
fornecem é que estava prevista uma depuração brutal do Exército
em Agosto e que alguns militares terão tido conhecimento das
célebres “listas de limpeza”. Então, como se diz, terão
“saltado”, num putsch improvisado. Tudo é especulação. Não há
hoje em dia informação livre na Turquia. Erdogan é o dono da
“narrativa” oficial.
Com tantos militares
e comandos envolvidos como é possível um golpe sem conhecimento dos
serviços secretos turcos? A história está por contar. Se algum dia
for contada.
Desespero da
oposição
Erdogan tem o
caminho livre para o seu projecto autocrático. Intelectuais turcos
temem mais jornais fechados, mais controlo das redes sociais, uma
aplicação mais repressiva das leis antiterrorismo. Temem, enfim,
mais violência nas ruas. Deixa de haver espaço para contestação
política.
A oposição está
encostada à parede. Gostaria de ver afastado um autocrata disfarçado
de presidente eleito. “Mas, exactamente porque levantam a bandeira
da democracia liberal, não poderiam apoiar um golpe militar”,
observa o analista israelita Zvi Ba’rel. Pior do que isso: estão
sob chantagem. Jornais que criticavam Erdogan não ousam pôr em
causa a versão oficial sobre Gülen. “O paradoxo é que, ainda
mais do que no passado, a oposição precisará de provar o seu
patriotismo para não ser acusada de inimiga da democracia, depois de
Erdogan se ter tornado o ícone da democracia graças aos
conspiradores.”
Tudo boas notícias
para Erdogan? Não. A Turquia sai enfraquecida do golpe e o
“autocrata eleito” arrisca-se a confrontar-se com uma situação
interna e externa muito difícil, o que ameaça debilitar o seu
poder.
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