segunda-feira, 18 de julho de 2016

Contra-golpe de Erdogan em marcha


Contra-golpe de Erdogan em marcha
O paradoxo é que, ainda mais do que no passado, a oposição precisará de provar o seu patriotismo para não ser acusada de inimiga da democracia, depois de Erdogan ser ter tornado o ícone da democracia graças aos conspiradores”

Jorge Almeida Fernandes / 19-7-2016 / PÚBLICO

Não será tão cedo que saberemos o que foi o golpe de 15 de Julho. Deixou 260 mortos. Chocou os turcos e a comunidade internacional, que pensavam que a era dos golpes tinha passado à história. Mas sabemos, e com clareza, que no sábado começou o contra-golpe do Presidente Tayyip Erdogan, visando neutralizar os que se lhe opõem nas Forças Armadas, nas polícias ou na Justiça, e rever a Constituição de forma a concentrar todos os poderes. Está em curso uma gigantesca “purga” do aparelho de Estado. Não é inédito: um golpe falhado pode dar lugar a um contra-golpe de grandes proporções. É uma figura clássica.
Que foi o 15 de Julho? Erdogan deu uma divina versão: “Foi uma bênção de Deus.” Porquê? “Porque este movimento vai servir de oportunidade para limpar as nossas Forças Armadas que devem ser totalmente puras.”
O 15 de Julho
A Turquia tem uma longa tradição de golpes militares. O que os turcos nunca conheceram foi um golpe como este. Até agora, os golpes eram obra do comando das Forças Armadas. E tinham uma regra: que a população os apoiasse ou, no mínimo, tolerasse.
“Desta vez, o que impressiona é o amadorismo dos putschistas, a improvisação e o facto de apenas representarem uma pequena parte do Exército”, declarou ao Le Monde o politólogo turco Ahmet Insel. “A sua primeira iniciativa não foi, como nos golpes ‘clássicos’, apoderarem-se dos representantes do poder civil — designadamente de Erdogan — mas deter o chefe do EstadoMaior e das diferentes armas, numa espécie de golpe de Estado dentro do próprio Exército.” Pela primeira vez, soldados dispararam contra soldados e, também pela primeira vez, golpistas bombardearam Ancara e Istambul.
Erdogan imediatamente designou o mentor do golpe: o imã Fetullah Güllen, auto-exilado dos Estados Unidos desde 1999, para estar ao abrigo dos militares turcos e dos juízes kemalistas. Os autores designados são os gülenistas, ex-aliados de Erdogan, que o ajudaram a neutralizar o poder político dos militares e que depois que entraram em conflito com ele, em 2013, quando magistrados a eles ligados começaram a investigar a corrupção no Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) e na própria família de Erdogan.
O problema é que os gülenistas, organizados no movimento Hizmet (Serviço) e poderosos na magistratura, na polícia, no ensino ou na comunicação social, sempre viram vedada a entrada nas academias militares, pelo menos até 2004. Têm uma presença marginal no Exército, ocupando sobretudo lugares subalternos. Mais curioso: o comunicado dos golpistas usou o nome de “comité para a paz na Pátria”, uma expressão de Kemal Atatürk.
Erdogan controla o Exército desde 2011. Mas a instituição militar permanece poderosa e mantém uma grande autonomia. Gonul Tol, uma analista turcoamericana, publicou no dia 30 de Maio na Foreign Affairs um artigo intitulado “O próximo golpe militar na Turquia”, dando conta de existência de grandes tensões com Erdogan. Para combater os gülenistas, ele terá sido forçado a fazer concessões ao Exército. O conflito curdo, em que o Exército está na primeira linha, teria aumentado de novo o papel político dos militares. O diário israelita Haaretz refere também fortes divisões sobre as políticas síria e curda, tensão agravada pelos atentados do Daesh.
O certo é que as Forças Armadas turcas são um mundo fechado sobre o qual muito pouco se sabe. A melhor explicação do golpe que os círculos de Erdogan fornecem é que estava prevista uma depuração brutal do Exército em Agosto e que alguns militares terão tido conhecimento das célebres “listas de limpeza”. Então, como se diz, terão “saltado”, num putsch improvisado. Tudo é especulação. Não há hoje em dia informação livre na Turquia. Erdogan é o dono da “narrativa” oficial.
Com tantos militares e comandos envolvidos como é possível um golpe sem conhecimento dos serviços secretos turcos? A história está por contar. Se algum dia for contada.
Desespero da oposição
Erdogan tem o caminho livre para o seu projecto autocrático. Intelectuais turcos temem mais jornais fechados, mais controlo das redes sociais, uma aplicação mais repressiva das leis antiterrorismo. Temem, enfim, mais violência nas ruas. Deixa de haver espaço para contestação política.
A oposição está encostada à parede. Gostaria de ver afastado um autocrata disfarçado de presidente eleito. “Mas, exactamente porque levantam a bandeira da democracia liberal, não poderiam apoiar um golpe militar”, observa o analista israelita Zvi Ba’rel. Pior do que isso: estão sob chantagem. Jornais que criticavam Erdogan não ousam pôr em causa a versão oficial sobre Gülen. “O paradoxo é que, ainda mais do que no passado, a oposição precisará de provar o seu patriotismo para não ser acusada de inimiga da democracia, depois de Erdogan se ter tornado o ícone da democracia graças aos conspiradores.”

Tudo boas notícias para Erdogan? Não. A Turquia sai enfraquecida do golpe e o “autocrata eleito” arrisca-se a confrontar-se com uma situação interna e externa muito difícil, o que ameaça debilitar o seu poder.

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