O
falhanço da União Europeia na adesão da Turquia
José Pedro Teixeira
Fernandes
21/07/2016 – 20:59
Erdogan
já percebeu há muito tempo como funciona a União Europeia: as suas
divisões internas e fragilidades intrínsecas levam-na a ser forte
com os fracos e fraca com os fortes.
1. “A utopia da
Europa em construção (?) é a de que a Turquia, como outrora os
ex-inimigos de Roma, se torne no seu melhor aliado. No caso presente,
e perante a real ou fantasma da ameaça do islão fundamentalista, o
país de Atatürk teria vocação para a conter nos limites do
aceitável e proveitoso, segundo a óptica mundial e, antes de mais,
da Europa. A História — se nos ensina alguma coisa — ensina-nos
que o Islão não se dissolve [...] A nossa impotência de
ocidentais, e, sobretudo, de europeus, é o nosso último luxo, mas
custar-nos-á caro.” Este artigo Eduardo Lourenço, “A Turquia na
Europa”, in Público (27/10/2004, p. 9), foi um aviso premonitório.
A Turquia parece estar hoje a caminho de uma autocracia islamista. É
o primeiro Estado envolvido em negociações de adesão à União
Europeia onde ocorre um golpe de estado (falhado). Pior ainda, foi o
pretexto para um contragolpe que está a reverter a democracia, as
liberdades fundamentais e os direitos humanos.
2. O que explica a
aceitação da candidatura da Turquia e a abertura de negociações
de adesão? Os mais atlantistas invocavam normalmente argumentos
estratégicos. Entusiasmavam-se pelo facto de a Turquia ser um antigo
membro da NATO, dos tempos da Guerra-Fria. Essa era a linha
diplomática do Reino Unido, seguida, também, pela diplomacia
portuguesa. Mas o Reino Unido foi também o primeiro — e até agora
único — a fazer um referendo para saída da União. Apoiava a
adesão da Turquia por más razões europeístas. Via-a como útil
para impedir uma maior integração e qualquer aprofundamento que não
lhe fosse conveniente. A Turquia seria sempre uma fonte de divisões
europeias. Agora já nem precisam disso. Por sua vez, para os EUA, de
uma maneira ainda mais óbvia, a adesão sempre foi vista como
vantajosa. Não teriam qualquer problema, nem com os elevados custos
financeiros da adesão, nem com a deslocação da fronteira da União
Europeia para o Médio Oriente — Síria, Iraque, Irão. Os europeus
é que ficavam com esse fardo. Apoiavam-na a custo zero, claro.
3. As vantagens
estratégicas da União Europeia passar a ter a sua fronteira no meio
da turbulência do Médio Oriente sempre foram para mim um mistério
insondável. Quando questionados, os crentes nessas vantagens
estratégicas, nunca conseguiam dar qualquer argumento convincente.
Mas a fé dogmática é mesmo assim, tanto na religião como na
política. Houve, também, outra argumentação, imbuída de
similares convicções acríticas. Era frequente entre os adeptos do
multiculturalismo ideológico e nos muitos que aderem a qualquer moda
intelectual, desde que seja a última e lhes dê um status de pessoa
culta e progressista. Para estes, o argumento não era estratégico,
nem atlantista, mas de superioridade moral. A Turquia era necessária
ultrapassar estereótipos do passado e corrigir o pecado original da
União Europeia: ser um “clube cristão”. Que o argumento tenha
sido levado a sério é, no mínimo, irónico, para não ser mais
cáustico. Primeiro porque a União Europeia tem uma população
largamente secular, coisa que a Turquia não tem. Segundo, a maioria
dos Estados europeus, especialmente a Ocidente, têm um grau de
diversidade religiosa superior ao da Turquia, com mais de 99% da
população muçulmana, em termos culturais / religiosos. Terceiro,
foi a retórica de Erdogan que popularizou o argumento que os
ingénuos multiculturalistas ocidentais reproduziam cheios de
convicção e superioridade moral.
4. A convicção
europeia de poder integrar a Turquia resulta, também, de uma leitura
superficial da sua realidade política e sociológica. O governo do
Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) e Erdogan foram vistos
como reformistas e democratizadores durante os primeiros anos do
processo de adesão. O posterior desvio desse caminho foi
interpretado como consequência das dificuldades levantadas pela
União Europeia na adesão. Essa interpretação é frágil e
obscurece o problema. É verdade que sempre houve resistência à
adesão da Turquia — a França é um caso bem conhecido. Mas
Erdogan sabia-o desde o início e nunca teve ilusões sobre isso. O
que europeus interpretaram como uma conversão aos valores da União
Europeia, foi, de forma bem mais plausível, uma mera concessão
táctica em situação de fraqueza interna. Onde os europeus viam
reformas democratizadoras e sucessos económicos na Turquia, Erdogan
via o enfraquecimento dos seus inimigos, possibilidades de mais Islão
e de fortalecimento do seu poder. Tudo indica, por isso, que a União
Europeia foi, desde o início, instrumental para enfraquecer os
inimigos internos durante os primeiros anos no poder. Essa é a dura
realidade que os europeus não viram, ou não quiseram admitir
durante muito tempo.
5. É altura de
fazer um balanço da estratégia da União Europeia para a Turquia da
última década e meia. Sem meias palavras: o resultado é um
falhanço. Falhou praticamente em toda a linha. Não democratizou o
país de forma consistente, não consolidou as liberdades
fundamentais, não levou a um respeito pelas minorias, nomeadamente
os curdos, os quais voltam a estar em guerra contra o Estado turco.
Também não resolveu a questão da reunificação de Chipre, nem
levou a Turquia abandonar a ocupação militar da parte Norte. Não
reforçou a relação estratégica político-militar. Pelo contrário,
há cada vez mais desconfiança de parte a parte. Vista
retrospectivamente, a decisão de abertura de negociações de adesão
com a Turquia, tomada em finais de 2004, foi um grande passo em
falso. Por paradoxal que possa parecer, podemos até admitir que
Erdogan não teria tido o caminho aberto para a autocracia e
re-islamização se não fosse a União Europeia. Naturalmente que
nunca saberemos qual o rumo dos acontecimentos se a Turquia não
tivesse sido aceite como candidato. Nem podemos saber como estaria
hoje. Poderá sempre argumentar-se que estaria ainda pior. Mas
sabemos — porque esse foi o rumo que os acontecimentos de facto
tomaram —, que as negociações de adesão foram
instrumentalizadas. Foram usadas para enfraquecer os grandes inimigos
internos do AKP e de Erdogan: o exército, o sistema judicial, a
administração e o ensino público, ou seja, os pilares do Estado
secular criado por Atatürk.
6. As massas da
Turquia dos subúrbios das grandes cidades e do interior rural do
país são profundamente conservadoras e imbuídas de valores
islâmicos tradicionais. Por isso, são largamente favoráveis ao
AKP. São também a maioria sociológica da Turquia. Erdogan sabia
isso. Os europeus parece que não. Imaginavam uma Turquia a partir do
centro de Istambul, Ancara ou das bonitas estâncias balneares da
costa mediterrânica. Nessas partes há, de facto, muita gente
secularizada, com hábitos à europeia, que fala bem inglês. Mas são
uma minoria. Uma minoria numerosa, mas ainda assim uma minoria numa
população de perto de 80 milhões. Há, também, islamistas
educados que sabem criar uma boa imagem para consumo externo.
Apresentam-se como democratas muçulmanos, tal como a Europa tem os
seus democratas cristãos. Com estas imagens tranquilizadoras as
outras Turquias eram marginais no quadro mental europeu e nos
relatórios de progressos de adesão da Comissão. Por muito que os
europeus não gostem, a maioria do eleitorado turco sufragou várias
vezes o AKP e Erdogan, o seu autoritarismo e políticas de
re-islamização do Estado. Deveriam ter percebido isso antes de
darem o passo em falso da abertura de negociações de adesão.
Prestaram-se ao papel de serem a caução política de Erdogan. Agora
é tarde. O mal está enraizado. Não adiante ficarem a desejar
secretamente que o golpe de estado tivesse resultado.
7. Por último, uma
ainda mais dura realidade. Erdogan respeita a Rússia de Putin —
que parece ver até com modelo para si próprio — mas não respeita
a União Europeia, à qual oficialmente diz continuar a querer
aderir. Menospreza o soft power europeu que vê como fraqueza e não
imbuído de valores. Respeita a Rússia devido ao seu poder,
sobretudo militar. Por outras palavras, tem-lhe medo. Em finais do
ano passado, primeiro a intervenção militar russa directa na guerra
da Síria, depois o abate de um caça russo na zona fronteiriça
entre os dois países, levaram a um forte reacção de Putin. A
Rússia retaliou em termos diplomáticos, políticos e económicos.
Exigiu um pedido formal de desculpas. Erdogan e o governo turco ainda
ensaiaram uma resposta forte. Durou pouco tempo. Em meados de 2016,
numa total reviravolta diplomática, a Turquia tomou a iniciativa de
voltar a aproxima-se da Rússia e de normalizar relações. Quanto à
União Europeia, Erdogan já percebeu há muito tempo como funciona:
as suas divisões internas e fragilidades intrínsecas levam-na a ser
forte com os fracos e fraca com os fortes. Como previa Eduardo
Lourenço, num mundo que não se compadece com as utopias europeias,
a nossa impotência como europeus está a sair-nos caro.
Investigador
Sem comentários:
Enviar um comentário