A
Europa desintegrada?
ÁLVARO VASCONCELOS
16/07/2016 – PÚBLICO
Imagem de
OVOODOCORVO
A
derrota dos golpistas será um momento de verdade para o projecto de
uma Turquia democrática. Para a União Europeia é igualmente um
momento de verdade, pois terá que demonstrar que respeita a
legitimidade democrática, mesmo que um qualquer acto eleitoral dê a
vitória a um partido islamista.
Em menos de um mês,
uma sequência de acontecimentos, certamente diferentes mas
igualmente preocupantes – a tentativa de golpe de Estado na
Turquia, o hediondo crime de Nice e o "Brexit" – sublinha
a pesada tendência para a desintegração que atinge fortemente o
Médio Oriente e a Europa.
Neste cenário, a
Turquia está no olho do furacão. É um país europeu e
médio-oriental e por isso vítima directa da desintegração nas
duas regiões. Na sua fronteira desenrola-se uma terrível guerra,
que já provocou 300 mil mortos e que a atinge directamente, seja
pelos graves atentados terroristas de que foi alvo, seja pelo
agravamento da questão curda. Se já somos todos testemunhas do
enorme impacto da situação no Médio Oriente, imaginemos o que
sucederia se Portugal ou a França fizessem fronteira com a Síria…
As consequências de
um golpe militar na Turquia seriam trágicas – basta recordar o que
sucedeu no Egipto, com a deposição de um governo democraticamente
eleito. Muitos dos que votaram no Partido Justiça e Desenvolvimento,
o AKP, e muito particularmente milhares dos seus militantes, vieram
para a rua e travaram o golpe enfrentado os tanques. Para o golpe
triunfar, os militares golpistas teriam que ter assassinado milhares
de civis.
Os que fora da
Turquia se entusiasmaram com o provável sucesso do golpe militar,
como o fez a BBC, cometem um erro gravíssimo. A tentação de
legitimar um golpe militar num país democrático é autodestrutiva,
especialmente num momento em que as forças antidemocráticas e
nacionalistas crescem na União Europeia, pondo em risco o seu
futuro.
Internacionalmente,
o impacto da vitória de um golpe militar na Turquia seria
devastador. Num país europeu, membro da NATO e do Conselho da
Europa, candidato a membro da União, com quem foi assinado um
controverso acordo para gerir o fluxo de refugiados, esse cenário
seria um terrível precedente.
O impacto do golpe
militar no Médio Oriente, já desintegrado e em guerra, seria
particularmente grave. O sucesso do golpe seria recebido com alegria
por todos os ditadores na região, antes de tudo por Assad, que
encontraria num novo poder turco um aliado para destruir a oposição
democrática, a única que o põe em perigo. O General Sisi
encontraria um aliado para continuar a sua política de repressão de
todos os críticos do seu regime. Experiências democráticas como a
da Tunísia estariam fortemente em risco. A vitória dos golpistas
seria uma péssima notícia para os três milhões de refugiados
sírios que a Turquia recebeu, ainda para mais quando Erdogan havia
anunciado recentemente um plano para oferecer a nacionalidade turca a
centenas de milhares de refugiados.
A Turquia está
profundamente polarizada e a vitória de um golpe militar mergulharia
o país numa situação de caos e, eventualmente, de guerra civil. A
derrota do golpe poderá, no entanto, agravar a polarização e criar
uma situação perigosa, sobretudo no que se refere à preservação
dos direitos e liberdades.
Nos últimos anos, o
Presidente Erdogan tem tomado medidas de concentração do poder e
muitos na Europa vêem nessas medidas uma tendência de criação de
uma teocracia – o AKP é um partido islamista –, que poria em
causa a herança autoritária laica de Atatürk. O paradoxo da
Turquia é que foi um partido islamista que democratizou o país.
Aceite formalmente como candidata à adesão em 1999, por
corresponder aos critérios democráticos de Copenhaga, as
negociações formais começaram em 2005, já com o AKP no poder. O
que muitos europeus têm dificuldade em compreender é que foram
islamistas que saíram à rua em defesa da legalidade democrática.
A União não foi
capaz de levar a bom porto a adesão da Turquia, em grande medida com
base em argumentos culturalistas – uma União definida por alguns
como um clube cristão que não podia aceitar um país muçulmano,
como afirmou o então candidato à Presidência de França, Nicolas
Sarkozy. A influência da integração no processo de consolidação
da democracia em Portugal, por exemplo, acabou assim por não
funcionar na Turquia.
A derrota dos
golpistas será um momento de verdade para o projecto de uma Turquia
democrática. O Presidente Erdogan tem que vencer a tentação de
utilizar esta vitória sobre os golpistas para concentrar ainda mais
poder, e sobretudo deve garantir um processo jurídico justo aos
golpistas e evitar uma caça às bruxas. Para que a Turquia volte a
ser um elemento de esperança no Médio Oriente, Erdogan deve unir o
país e retomar o processo de consolidação democrática.
Para a União
Europeia é igualmente um momento de verdade, pois terá que
demonstrar que respeita a legitimidade democrática, mesmo que um
qualquer acto eleitoral dê a vitória a um partido islamista. A
União deveria não só condenar energicamente a tentativa de golpe
como assumir, de uma vez por todas, que a Turquia é um país
europeu. Não pode persistir qualquer dúvida em relação à posição
europeia: nenhum golpe, fracassado ou bem-sucedido, encontrará
compreensão ou a prossecução de uma "política realista"
por parte da União, nenhum Governo militar ou que saia de um golpe
poderá ser reconhecido. Este compromisso da União Europeia poderia
ser afirmado com uma alteração da política conciliatória face à
ditadura militar instalada no Cairo, mostrando que a luta contra o
Daesh não justifica alianças com regimes que violam gravemente os
direitos humanos.
A União não pode
sucumbir à tentação de assumir uma política dita realista, um
caminho que as imposições e ameaças a Estados membros, como
Portugal ou a Grécia, ou o cínico tratamento dado dos refugiados,
prenuncia. Este tipo de política põe directamente em causa a razão
de ser da integração europeia. A defesa dos direitos fundamentais,
na ordem interna e internacional, é condição necessária para a
unidade da União e logo para a sua sobrevivência.
Sem comentários:
Enviar um comentário