O
Daesh e a vingança do Sul do Mediterrâneo sobre a Europa
José Pedro Teixeira
Fernandes
27/07/2016 –
PÚBLICO
A
liberdade, a democracia e a Europa, tal como a conhecemos, não são
realizações eternas. Apenas se perpetuarão no futuro se tiverem
continuadores à altura dos sacrifícios das gerações anteriores.
1. Ao início da
manhã de 26 de Julho ocorreu mais um acto de terror. Agora numa
igreja em Saint-Étienne-du-Rouvray, perto de Ruão, em França. O
padre, Jacques Hamel, de 86 anos, foi barbaramente assassinado
(degolado). Um dos fiéis ficou ferido em estado grave. No Iraque e
na Síria as minorias cristãs e as suas igrejas são um alvo
frequente da barbárie islamista-jihadista. Na guerra civil da
Argélia, em 1996, vários monges do convento de Nossa Senhora do
Atlas, em Tibhirine, foram raptados e brutalmente assassinados. O
impressivo filme de Xavier Beauvois, Dos Homens e dos Deuses (2010),
deu a conhecer a perturbadora tragédia ao grande público. Mas isso
ocorreu no Sul do Mediterrâneo. Quanto ao Iraque e à Síria são no
Médio Oriente. Infelizmente, aí a violência e terror fazem,
frequentemente, parte do dia-a-dia. Este acto de terror é o primeiro
no género, em França e na Europa. Ataca-a no plano simbólico e no
cerne do mais sagrado cristão. Não é que não tivesse já sido
tentado anteriormente. Em Abril de 2015, Sid Ahmed Ghlam, um
estudante argelino de informática, foi detido por planear atacar
igrejas em Villejuif, nos arredores de Paris. Em simultâneo estaria
também a planear um atentado contra a basílica do Sagrado Coração
de Montmartre, em Paris.
2. Há um século
atrás os europeus procuravam europeizar, à força, o Sul do
Mediterrâneo e Médio Oriente. Um fluxo imparável de pessoas e de
ideias dirigia-se do Norte para o Sul e Oriente. Estavam dotados de
superioridade tecnológica e demográfica, ambas associadas a uma
convicção profunda de superioridade dos seus valores e cultura. Tal
como outras partes do mundo, as sociedades do Mediterrâneo Sul e
Oriental foram alvos da sua expansão e opressão colonial. Ao longo
do século XIX, a Argélia e a Tunísia ficaram sob domínio francês
e o Egipto sob domínio britânico. No início do século XX, a Líbia
ficou sob domínio italiano e Marrocos sob domínio francês e
espanhol. Após a I Guerra Mundial (1914-1918), e o acordo
Sykes-Picot (1916), os restos do Império Otomano do Médio Oriente
passaram para controlo europeu. A Síria e Líbano para o domínio da
França. O Iraque, a Jordânia e Israel / Palestina para o controlo
da Grã-Bretanha. Menos de um século depois, estamos a assistir a um
movimento histórico inverso. A superioridade demográfica está a
Sul. Um fluxo imparável de pessoas vem daí para a margem Norte do
Mediterrâneo, seja por fugir da guerra, seja por miseráveis
condições económicas, atraído pela riqueza e bem-estar. Traz
consigo uma convicção profunda da superioridade dos seus valores
islâmicos. Apenas a supremacia tecnológico-militar se mantém a
Norte. Mas nem sempre é usada da melhor maneira, como se viu nas
desastrosas intervenções no Iraque e na Líbia. Amplificam o
sentimento de injustiça e revolta a Sul.
3. Os europeus estão
confusos, amedrontados e politicamente à deriva. Ao longo das
últimas décadas, foram absorvendo os problemas e conflitos do Sul
do Mediterrâneo, sem perceberem que o processo em curso era esse.
Estavam habituados a verem-se o centro do mundo, a que as suas
guerras civis fossem guerras mundiais. Tinham a ilusão de ter uma
cultura e valores universais. Todos os povos a admiravam e queriam
imitar. Na segunda metade do século XX, o extraordinário sucesso
das Comunidades Europeias, hoje União Europeia, alimentou a ilusão.
Julgavam ter entrado numa era de paz perpétua. A Europa era o
perturbador do mundo. Se a Europa se pacificava e reconciliava
consigo própria, o mundo também ficava em paz. E o mundo deixava os
europeus em paz. Nada de mais enganador. Ao longo da história, a
Europa — uma pequena península do grande continente asiático —,
esteve quase sempre acossada e na defensiva. Durante o largo período
medieval, os impérios árabes eram largamente superiores e ameaçaram
dominar todo o seu Sul. As cruzadas foram um episódio menor, uma
ferida no domínio árabe-islâmico do Mediterrâneo. No Renascimento
e até ao seculo XVIII, o Império Otomano dominava não só a
maioria do Sudeste europeu como era o maior poder militar,
provavelmente só comparável ao Império Romano na Antiguidade. A
Oriente, na Ásia, a Índia e a China sempre foram hegemónicas,
excepto num relativamente curto período histórico, do século XIX à
II Guerra Mundial. Provavelmente, estamos a voltar a um padrão de
normalidade histórica, que os europeus das actuais gerações
ignoravam, estupidificados por uma mentalidade que os reduz a meros
homo economicus.
4. No imaginário
europeu, o Daesh (Estado Islâmico) parece ocupar um lugar
equivalente à Hidra de Lerna da mitologia grega da Antiguidade
Clássica. Um monstro humanamente invencível — só Héracles
conseguiu derrotar a hidra —, com corpo de dragão e várias
cabeças de serpente. Após uma cabeça cortada, outra crescia no seu
lugar. Tinha capacidade de se regenerar dos golpes sofridos e um
hálito e sangue venenosos. Em território europeu, só no último
mês, uma quase contínua sucessão de acontecimentos trágicos
parece sugerir uma nova hidra. A 14 de Julho, no dia nacional da
França, um atentado cometido pelo tunisino Mohamed Lahouaiej
Bouhlel, com um camião, matou dezenas de pessoas em Nice, sendo
reivindicado pelo Daesh. A 18 de Julho, um jovem refugiado, de
nacionalidade afegã, ou eventualmente paquistanesa, Riaz Khan
Ahmadzai, atacou, com uma faca e um machado, passageiros num comboio
em Würzburg, no Sul da Alemanha, também em nome do Daesh. A 24 de
Julho um refugiado sírio a quem foi negado asilo na Alemanha, fez-se
explodir em Ansbach, na Baviera, onde decorria um festival de música.
Afirmava agir em nome de Alá e proclamava fidelidade ao líder do
Daesh, Abu Bakr al-Bagdadi, prometendo vingar-se dos “alemães que
se colocam no caminho do Islão”. Para a mentalidade secular
europeia, é um passadismo incompreensível que julgava ultrapassado
pela evolução e progresso.
5. O Daesh, como
organização, não é uma hidra. Longe disso. Nos últimos meses
sofreu pesadas derrotas no Iraque e na Síria, os seus principais
territórios. Na Líbia, onde tem também implantação territorial,
está a ser combatido, aparentemente com sucesso. Não significa que
não continue a ter um poder temível. Os recentes atentados
terroristas no Iraque e no Afeganistão mostram isso. Na Europa, os
atentados terroristas, de Paris, a 13 Novembro de 2015, e de
Bruxelas, a 22 Março de 2016, foram executados por indivíduos com
algum tipo de ligações orgânicas ao Daesh. Já os mais recentes
atentados de Nice, Würzburg e Ansbach não mostram essa ligação
orgânica. Mas se a hidra não existe ao nível da organização,
existe no plano ideológico. O problema é complexo. A ideologia
islamista-jihadista incentiva à prática de actos de violência e
terror sobre todos os que designa como inimigos do Islão. Está em
crescendo. Há uma distinção que pode ser útil para separarmos o
que é terrorismo feito em nome do Daesh, do terrorismo da autoria do
próprio Daesh. É usual em matéria criminal. Distingue autoria
material de autoria moral. A autoria material refere-se a quem
executa. A autoria moral refere-se ao instigador, àquele que induz
outrem à prática do acto. O Daesh é hoje o grande instigador. As
populações do Sul do Mediterrâneo que, por qualquer razão, não
se integram na Europa, são o terreno onde a sua ideologia fanática
procura executantes. Alimenta um terrorismo atomizado e inorgânico,
como autor moral. Pretende provocar um apocalíptico choque de
civilizações entre a Europa e o Islão.
6. Em 2084. O Fim do
Mundo (trad. port., Quetzal, 2106), o escritor argelino de língua
francesa, Boualem Sansal, capta a angústia existencial face aos
avanços do islamismo radical. Como esta ideologia totalitária viaja
de Sul para Norte do Mediterrâneo, sabe bem do que fala. A
experiência da guerra civil da Argélia nos anos 1990, opondo o
exército aos islamistas da Frente Islâmica de Salvação — que
pretendiam instaurar um Estado islâmico —, marcou-o profundamente.
O livro é uma distopia que interage com o 1984 de George Orwell.
Sinais dos tempos, não imagina nenhuma ideologia totalitária
secular de origem europeia, como se prefigurava em meados do século
XX. Não é daí que virá o futuro totalitarismo para governar a
humanidade. Na parte interior da capa do livro há uma citação
daquelas que ficam gravadas na memória — e muito tempo a remoer
dentro da cabeça de quem o lê. “Nos somos governados por Wall
Street — mas esse sistema totalitário que esmagou todas as
culturas encontrou no seu caminho qualquer coisa realmente
inesperada: a ressurreição do Islão. É o totalitarismo islâmico
que vai dominar, porque se apoia sobre uma divindade e uma juventude
que não tem medo da morte, enquanto a globalização se apoia no
dinheiro, no conforto das coisas inúteis e perecíveis.” Cabe às
actuais gerações perceberem o aviso. A liberdade, a democracia e a
Europa, tal como a conhecemos, não são realizações eternas.
Apenas se perpetuarão no futuro se tiverem continuadores à altura
dos sacrifícios das gerações anteriores.
Investigador
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