“O
Estado sou eu”: Erdogan e a democracia como caminho para o
autoritarismo
José Pedro Teixeira
Fernandes
18/07/2016 –
PÚBLICO
Se
Erdogan andava a procurar forma de se livrar do que entravava o seu
caminho político, a tentativa de golpe de estado deu-lhe o pretexto
perfeito.
1. Bernard Lewis, um
dos grandes historiadores do Islão, qualificou, nos anos 1990, a
Turquia como a única democracia muçulmana. Apesar de não existir
um conceito consensual de democracia, podemos aceitar, como correcta,
nos seus traços fundamentais, a qualificação. Mas a Turquia tem
muitas especificidades que a qualificação genérica como democracia
esconde. A compreensão destas é fundamental para percebermos o seu
modo de funcionamento político. Importa recuar no tempo, à maneira
como a República da Turquia se constituiu em 1923. O abandono da
legitimidade islâmica que caracterizava o Estado teocrático otomano
não foi a expressão de uma vontade popular, mas a vontade de uma
elite modernizadora e secularista liderada por Mustafa Kemal Atatürk.
A sua criação foi autoritária. É essa dupla herança — a de uma
elite secularizadora autoritária e de uma maioria da população
agarrada ao Islão tradicional e às instituições sociais e
políticas —, que explica a complexa política turca e a
dificuldade de uma cultura democrática e pluralista. Permite
compreender melhor as raízes mais profundas do drama que a
democracia turca vive após a recente tentativa de golpe de estado
falhada.
2. O Estado secular
na Turquia nunca teve um apoio incondicional da maioria da população.
Se tivesse sido sujeito a uma escolha democrática, provavelmente nem
teria emergido sequer. Só o enorme prestígio de Atatürk, ganho na
guerra contra a Grécia e os Aliados da I Guerra Mundial, de
1919-1992 — num momento particularmente crítico da história do
povo turco —, permitiu a sua concretização. Mas a ideia de
secularismo político apenas se enraizou nas principais instituições
ligadas ao Estado e dele dependentes: o exército, o aparelho
judicial, a administração pública, as escolas públicas e
universidades. Estas, de facto, dominaram a vida política da Turquia
durante décadas, até um passado recente. Após a II Guerra Mundial,
a democracia foi funcionando, intermitentemente, mas como uma
democracia de serviços mínimos, essencialmente confinada a um jogo
eleitoral. Ao longo do tempo não emergiu uma cultura democrática e
pluralista generalizada. Nem nos sectores seculares, habituados a
deter o poder, nem nos ligados ao Islão político, ou islamismo,
relegados, durante décadas para a oposição devido a mecanismo
democraticamente duvidosos.
3. A chegada ao
poder dos conservadores-islamistas do Partido da Justiça e
Desenvolvimento (AKP), em finais de 2002, entusiasmou muitos na União
Europeia. Numa leitura superficial, Recep Tayyip Erdogan, o seu
líder, era o grande reformador para uma Turquia democrática e
consentânea com os valores europeus. Na época, os militares tinham
a democracia sob controlo, e os golpes de estado estavam bem
presentes na memória. A própria ordem constitucional da Turquia
resultava do golpe de estado de 1980 do general Kenan Evren e da
Constituição de 1982, elaborada sob tutela militar e aprovada
depois em referendo pela população. Provavelmente, foi um excesso
de optimismo, ou uma ingenuidade. Foi também um subestimar
complexidade dos processos histórico-políticos do país. O equívoco
de leitura foi ainda alimentado pelos automatismos de pensamento.
Muitos interpretaram os processos políticos na Turquia como se
estivéssemos em sociedades ocidentais. De uma realidade observável
e objectiva — a democracia imperfeita e questionável em muitos
aspectos, desde logo devido a um peso anormal dos militares na vida
política — inferiu-se que a alternativa, o AKP, vinda da sociedade
civil, seria democratizadora. Afinal, tinha ganho eleições de forma
livre e democrática, o que é inteiramente verdadeiro.
4. Mas isso não era
história toda. Erdogan é um político extremamente hábil. Percebeu
que precisaria de ter aliados externos para consolidar o seu poder,
muito frágil no início. A adesão à União Europeia e as reformas
que esta exigia eram perfeitas para esse objectivo. Empenhou-se, e
muito, em pô-las em prática. Foi rápido a fazê-las nos primeiros
anos, especialmente quando permitiam enfraquecer os seus inimigos
internos: os militares e o aparelho judicial. Soube usar
magistralmente a falta de plena liberdade democrática na Turquia,
nomeadamente em matéria religiosa, para transformá-la em mais
Islão, e mais votos para o seu partido. O resto veio por créscimo,
associado, também, ao seu sucesso económico. Erdogan não mudou de
um democrata reformista à maneira europeia, para um líder
autoritário com uma agenda conservadora-islamista, como muitos
julgam. O seu poder é que aumentou. O resto é a consequência
natural disso. As eleições legislativas de 2007 e 2011 mostram-lhe
ter na mão a maioria sociológica no eleitorado turco. Revertida a
estrutura de poder a seu favor, o entusiasmo pela adesão à União
Europeia dissipou-se. De qualquer maneira, era útil manter o
processo em aberto por razões de interesse de política externa e de
prestígio interno.
5. Na noite de 15
para 16 de Julho ocorreu na Turquia mais um golpe de estado — este
falhado — cujos contornos são pouco claros. Tal acto é
inequivocamente condenável do ponto de vista democrático. Os
partidos da oposição, incluindo o Partido Republicano do Povo
(CHP), a principal oposição do centro-esquerda secularista, foram
unânimes em condená-lo. Mostraram uma atitude democrática
apreciável. As entorses à democracia, não se resolvem com
atropelos ainda maiores e mais graves. Quanto à sua autoria, as
teorias abundam, incluindo as da conspiração. Algumas atribuem-no
de forma mais ou menos absurda, ao próprio Recep Tayyip Erdogan.
Quanto a este último, não tem dúvidas: o golpe de estado teve a
autoria do seu antigo aliado da mesma área política — agora rival
e inimigo, Fethullah Gülen —, em conjunto com os sectores
militares e da sociedade civil que o apoiavam. Provavelmente,
precisaremos de mais tempo e distanciamento histórico para
percebermos os contornos exactos dos acontecimentos e a autoria real
do golpe. A informação disponível é confusa e bastante
instrumentalizada pelos vários actores envolvidos. Se a factualidade
é controversa, já quanto ao ganhador político não há quaisquer
dúvidas. Objectivamente favoreceu, e muito, Erdogan e o seu projecto
de transformar a Constituição da Turquia num sistema
presidencialista à sua medida. Mais do que nunca, pode agora ter o
caminho aberto.
6. Se Erdogan andava
a procurar uma forma de se livrar do que entravava o seu caminho
político — seja no exército, seja no sistema judicial, seja nos
sectores da sociedade civil que lhe faziam oposição —, a
tentativa de golpe de estado deu-lhe o pretexto perfeito. Milhares de
militares, polícias, juízes e outros já foram detidos ou afastados
dos cargos. Na sua retórica política habitual trata-se de
prosseguir a luta contra o “Estado paralelo”. Só que essa
qualificação é usada não só contra os que actuam à margem da
lei e dos princípios democráticos, mas também para atacar muitos
dos que se lhe opõem. Assim, parecem fazer parte desse “Estado
paralelo” uma parte importante dos seus críticos políticos e da
imprensa que lhe faz oposição. Os anteriores ataques à liberdade
de imprensa, com perseguições a jornalistas e encerramento de
jornais, levantam, por isso, muitas dúvidas sobre a bondade da
qualificação. Mais: pretender reintroduzir a pena de morte para
punir os participaram na tentativa de golpe de estado é uma violação
fundamental dos princípios do Estado de Direito e dos Direitos
Humanos. Nulla poena sine lege, nullum crimen sine lege, são, ou
deveriam ser, princípio básicos de um Estado de Direito e garantias
fundamentais de um cidadão em matéria penal em qualquer parte do
mundo, mais ainda num candidato à adesão à União Europeia.
7. "O Estado
sou eu" é uma frase atribuída a Luis XIV de França que este
provavelmente nunca terá proferido. Apesar da inverdade da autoria,
captou a imagem de um poder absoluto, concentrado nas mãos de um
único governante. Erdogan não é Luís XIV, nem a história do
Ocidente é a história do Islão e do Império Otomano. Além do
mais, chegou ao poder em eleições democráticas, as quais ganhou, e
de forma expressiva, várias vezes. É bom deixar isto claro. Mas o
grande problema é o que parece ser, cada vez, mais a sua concepção
instrumental de democracia. Não a parece ver como um fim, em si
mesmo, de uma boa sociedade, mas como um instrumento para os seus
objectivos políticos. A democracia poderá ser descartada, ainda que
parcialmente, quando já não for útil. Neste sentido, parece ter um
quadro mental que faz lembrar o dito “O Estado sou eu”.
Naturalmente que, sendo assim, não pode haver também um “Estado
paralelo”, no sentido de um contrapoder, mesmo quando este é
legítimo por regras democráticas e pluralistas. Luís XIV afirmava
ser rei pela graça divina. Erdogan, nas suas próprias palavras, diz
agora que o golpe de Estado foi “uma graça divina” que vai
permitir limpar o exército. Na realidade, o que parece mais estar em
marcha é uma purga generalizada dos seus adversários políticos.
Tristes dias para o futuro da democracia na Turquia e um problema
grave para a União Europeia já imersa em em várias crises.
Investigador
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