segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Os magistrados e as pressões sobre o Tribunal Constitucional

Feita esta longa declaração de interesses, importa perguntar se a defesa vigorosa de que a Lei do Orçamento é inconstitucional, por órgãos que representam a classe profissional dos juízes e do Ministério Público, não consubstancia, ela mesma, uma pressão inadmissível sobre o Tribunal Constitucional? Como aceitar que juízes e magistrados do Ministério Público - que podem, aliás, em casos concretos, ter de apreciar a questão da constitucionalidade de normas orçamentais - expressem publicamente um juízo sobre essa questão? Não impende também sobre eles um dever de recato e de reserva quanto à apreciação pública, política e jurídica de uma lei? Não são, pelo menos seis dos treze juízes do Tribunal Constitucional, juízes de carreira, porventura filiados na Associação Sindical?"

Os magistrados e as pressões sobre o Tribunal Constitucional

Como aceitar que juízes e magistrados do Ministério Público expressem publicamente um juízo sobre essa questão?

1. Já não sei quantas vezes escrevi aqui, neste mesmo espaço, que as decisões do Tribunal Constitucional e as suas linhas jurisprudenciais podem e devem ser discutidas na esfera pública. E que tanto podem ser discutidas as decisões já tomadas como as eventuais decisões a tomar, nada havendo de necessariamente censurável na feitura de prognose ou daquilo a que a politóloga alemã Christine Landfried ironicamente chamou a "astrologia constitucional". As decisões proferidas ou a proferir pela jurisdição constitucional são de tal modo importantes que, numa democracia, não se compreenderia que elas não fossem objecto de debate e de escrutínio público. De resto, nunca é de mais lembrar que a Constituição não é um condomínio fechado de magistrados, juristas em geral e actores políticos. A Constituição vem a ser uma ágora de referência de todos os cidadãos e, por conseguinte, tem de reconhecer-se a todos eles o direito e a capacidade de a interpretar e de formular opinião a respeito dos seus dizeres e opções.

2. Naturalmente, as coisas mudam de figura quando falamos dos outros poderes do Estado, designadamente do Governo ou do Presidente da República. Parece razoável que o Governo e os seus membros, em especial a propósito de legislação que tenham aprovado ou que tenham proposto ao Parlamento, usem de um dever de prudência, reserva e recato. A observância desta "discrição constitucional" em nada implica que o Governo não transmita ao Tribunal, pelos canais processuais próprios, a sua posição quanto à conformidade ou desconformidade à Constituição de qualquer acto normativo. E também não obsta a que, numa situação que repute de grave, esclareça o país e a opinião pública sobre as suas razões para sustentar a constitucionalidade de um diploma. Mas, como regra, deverá evitar o confronto institucional, para que não medre nenhuma suspeita ou labéu de tentativa de pressão sobre um poder cuja nota essencial vem a ser a independência.

3. Este final de semana, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público tomou posição quanto à Lei do Orçamento e à nova orgânica judiciária. E o mesmo fez, se bem que em termos ligeiramente mais brandos, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Pondo de lado, ao menos por hoje, as questões relativas à organização judiciária, não devem passar em claro as afirmações produzidas pelos respectivos presidentes, Rui Cardoso e Mouraz Lopes (na foto), dois notáveis magistrados. Ambos criticaram veementemente as supostas pressões que o Governo (e não só) tem vindo a fazer sobre o Tribunal Constitucional. Ambos consideraram que os cortes nos vencimentos e pensões de magistrados do Ministério Público e de juízes, previstos na proposta de Lei do Orçamento, violam clamorosamente a Constituição.

4. De há muito, também nestas páginas, que exprimi as maiores dúvidas quanto à admissibilidade e à conveniência de os juízes disporem de uma organização sindical. E, com argumentos menos robustos, fiz valer as mesmas dúvidas e resistências para o hemisfério dos magistrados do Ministério Público. Não parece curial que titulares de órgãos de soberania - e, bem assim, oficiais públicos directamente implicados na administração de uma função soberana - se possam organizar corporativamente numa lógica sindical. E que disponham, por exemplo, do direito à greve.

5. Ao mesmo tempo, em obra antiga e em artigo recente (PÚBLICO, 13 de Novembro de 2012), vim defender a ideia - altamente impopular - de que mexer no estatuto remuneratório e nas garantias sociais de juízes e magistrados é uma decisão perturbadora do princípio da independência judicial. E que, idealmente, estes titulares de funções soberanas deveriam estar protegidos contra essas variações de estatuto económico-social. Algo que nada tem de inédito, pois está salvaguardado explicitamente pela velha Constituição americana (com extensão aos próprios benefícios sociais). É óbvio que um corte geral sobre toda a função pública e cargos políticos equiparados não visa, directa e intencionalmente, os magistrados enquanto tais e, portanto, não pretende atingir a sua independência. Em todo o caso, erra quem julga que a independência judicial é dissociável de um componente estatutário de vezo económico e social.

6. Feita esta longa declaração de interesses, importa perguntar se a defesa vigorosa de que a Lei do Orçamento é inconstitucional, por órgãos que representam a classe profissional dos juízes e do Ministério Público, não consubstancia, ela mesma, uma pressão inadmissível sobre o Tribunal Constitucional? Como aceitar que juízes e magistrados do Ministério Público - que podem, aliás, em casos concretos, ter de apreciar a questão da constitucionalidade de normas orçamentais - expressem publicamente um juízo sobre essa questão? Não impende também sobre eles um dever de recato e de reserva quanto à apreciação pública, política e jurídica de uma lei? Não são, pelo menos seis dos treze juízes do Tribunal Constitucional, juízes de carreira, porventura filiados na Associação Sindical?
Que as organizações sindicais de magistrados denunciem aquilo que consideram atentados à independência de qualquer órgão jurisdicional parece tolerável. Coisa bem diversa, e deveras censurável, é que aproveitem o ensejo para, elas próprias, exercerem pressão em sentido contrário. O desabafo de um juiz ou de um corpo de juízes em face do Tribunal Constitucional não parece valer menos do que a palavra de um ministro ou de um dignitário internacional. Naturalmente, nada do que vem dito impede que, nos momentos e locais adequados (em audições no Parlamento, em pareceres solicitados ou em audiências com os membros do Governo), externem a sua posição jurídica, administrativa, política e corporativa sobre leis ou projectos de lei. Mas uma coisa é certa: mesmo vinda do poder judicial, uma pressão não deixa de ser pressão.
Eurodeputado (PSD). Escreve à terça-feira paulo.rangel@europarl.europa.eu

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