domingo, 2 de novembro de 2014

O Brasil regressou à realidade. Que não é muito simpática, por TERESA DE SOUSA


OPINIÃO
O Brasil regressou à realidade. Que não é muito simpática
TERESA DE SOUSA 02/11/2014 - PÚBLICO
O que Lula fez foi imenso. O que falta fazer também é. Para que não se perca o que já se fez.

1.Como acontece nas democracias, o dramatismo da campanha eleitoral vai desaparecendo, a vida volta ao normal, a política segue muitas vezes por linhas tortas nos bastidores. A vitória de Dilma foi curta. O tom que ela adoptou foi de conciliação e de diálogo, embora não sejam características que definam a sua natureza.

 A sua margem de manobra é estreita, não tanto pelos 51 milhões que votaram no seu principal rival, mas pela sua relativa fraqueza face a Lula da Silva e face ao próprio PT. Tem de contar também com um Congresso onde o PT perdeu 18 lugares, embora ainda seja o maior partido, mas sobretudo com um PMDB, o seu principal aliado, que não gostou de ver algumas faltas de solidariedade nas escolhas de governadores. A luta pela liderança da Câmara e do Senado já começou, com o PMDB a fazer valer a sua importância. Dilma terá ainda de contar com vários pequenos e médios partidos que constituem a sua base no Congresso e que, como de costume, querem cobrar em ministérios (são 39 para satisfazer toda a gente) o seu apoio à Presidente.

Na quinta-feira, para demonstrar que as coisas não serão fáceis, a Câmara de Deputados rejeitou um decreto que a Presidente tinha enviado, no qual se defendia a ideia um tanto ou quanto peregrina da criação de “conselhos populares” para envolver mais os cidadãos na política.

No seu discurso de vitória, a Presidente elegeu a reforma do sistema político como a prioridade do seu governo, afastando a atenção da economia que é o seu maior problema. Há anos que se arrastam no Congresso propostas para essa grande reforma que ninguém contesta ser necessária (28 partidos são manifestamente um mau sinal). Face ao bloqueio, outra das suas ideias para levar este objectivo adiante é a realização de um plebiscito que consulte o povo sobre o caminho a seguir, antes de o Congresso aprovar uma reforma, condicionando-a aos seus resultados. A lista de perguntas seria vasta e complexa. A ideia tem muito poucos adeptos. Os deputados dizem e com razão que primeiro é a vez deles e só depois as alterações constitucionais exigidas podem ser submetidas a referendo. A Presidente já veio dizer que não faz questão no plebiscito.

2.Mas a dificuldade maior de Dilma talvez seja o seu “padrinho político”, que ainda não lhe perdoou o facto de não o ter consultado para decidir candidatar-se ao segundo mandato. Lula toca na questão central: a economia que não cresce. Essa divergência incómoda concentra-se neste momento na escolha do ministro da Fazenda, lugar crucial para dar confiança aos agentes económicos e aos investidores, que de algum modo Dilma alienou – ao contrário de Lula que, quando chegou ao Planalto, em 2003, tratou de escolher um ministro da Fazenda altamente competente e moderado e um prestigiado para presidir ao Banco Central. Lula pôs a correr os seus nomes, de acordo com as notícias dos jornais, incluindo o do CEO do Bradesco, o maior banco privado do Brasil. Dilma sabe que a sua escolha será decisiva para restituir a confiança dos empresários e dos mercados para que invistam mais. Como diz Delfim Neto, um velho político prestigiado e sagaz, numa entrevista à Carta Capital (revista bastante pró-PT), se alguma coisa não for feita o Brasil corre o risco de perder o nível investimento das agências de rating e isso seria muito mau. Neto, que votou em Dilma, diz na mesma entrevista que a escolha é “crescer ou crescer”, para obviar a esse risco e para conseguir manter as políticas sociais que são o grande legado de Lula e da Presidente.

O problema é que Dilma passou a campanha a dizer que as suas opções económicas estavam certas, apostando no consumo interno, na intervenção da banca pública para sustentar o crédito e em menor exigência em relação à inflação a favor de um desemprego muito baixo. Culpou a economia internacional pelas suas dificuldades e criticou Aécio Neves por apostar na subida dos juros de referência. Está agora confrontada com a necessidade de contrariar, em parte, aquilo que defendeu na campanha. Ninguém estava à espera da decisão do Banco Central do Brasil de subir a taxa de juro de 11% para 11,25%, prometendo subir mais, dois dias depois das eleições, produzindo um efeito positivo nos mercados. A subida teve a aprovação de Dilma, porque ajuda a controlar a inflação que já está no tecto superior da margem de dois por cento acima ou abaixo dos 4,5% fixados pelo Governo. Mas também controla o crédito às famílias, pesando no mesmo sentido. O secretário do Orçamento também já veio dizer que o Governo enviará para o Congresso um “rectificativo” para rever as metas do superavit primário (1,9% do PIB) para um valor inferior e também para anunciar que são precisas mais medidas de controlo da despesa do Estado. São tudo surpresas pouco agradáveis mas que também indicam, dizem os analistas, que Dilma percebeu o que tem pela frente: pôr a economia a crescer. Em circunstâncias bem mais difíceis das que Lula usufruiu, com a entrada em cena da China e a sua sede insaciável de “commodities” que o Brasil produz em larguíssima escala. O abrandamento da própria economia chinesa mais o fraco crescimento mundial alteram drasticamente este factor de crescimento. Nos últimos anos, a indústria não se preparou para aumentar as exportações, contando com o mercado interno, que agora vai ter de esfriar um pouco. O preço do petróleo baixa e o investimento no pré-sal é colossal. A lista de dificuldades é numerosa. A margem de manobra política de Dilma mais estreita.

Mas os seus problemas não ficam por aqui. Alguma imprensa sugere que Lula já fez saber aos seus próximos que se quer candidatar de novo ao Planalto em 2018. Não há certezas, naturalmente. Se for para a frente com a ideia (muito pouco feliz) de voltar a concorrer ao Planalto (em vez de preservar o lugar na História que já conquistou), quererá ter uma palavra nos quatro anos do segundo mandato de Dilma.

3.Na noite eleitoral, Aécio Neves saudou S. Paulo e agradeceu-lhe a esmagadora vitória que lhe concedeu. Lula investiu fortemente no Estado que é também o seu, durante toda a campanha. Não conseguiu melhor do que 35%. Alguns comentadores mais radicais chegaram a argumentar que, sem contar com S. Paulo, a diferença entre os dois candidatos seria muito maior. O problema é que não se pode apagar do mapa um Estado com mais de 40 milhões de habitantes, que produz quase um terço da riqueza do país e que é a sua poderosa base industrial. Aécio chamou-lhe muralha contra o PT. A questão está em saber se o Governador do Estado, Geraldo Alckmin (do PSDB), candidato derrotado por Lula em 2006 (por uma grande diferença) e José Serra, o senador que se candidatou em 2002 e em 2010 com resultados muito pouco significativos, deixam o espaço aberto a Aécio, que é mineiro mas que esteve quase lá. Muita gente diz que afastar Aécio em 2018 não será possível. Sobretudo se o senador de Belo Horizonte fizer aquilo que promete, ou seja, liderar a oposição ao Governo no Congresso. Geraldo Alckmin e José Serra nunca fizeram uma oposição forte a Lula, e sobretudo, nunca reivindicaram a herança de FHC, que governou o Brasil em tempos de vacas magras e que o PT tratou de denegrir todos os dias desde que chegou ao Planalto, para fazer esquecer aquilo em que foi crucial para o país. Aécio fez o contrário. 

Acompanhar a campanha eleitoral sem ter um conhecimento suficiente da história brasileira do período da redemocratização levaria qualquer um a considerar que FHC era o culpado de tudo, incluindo dos buracos na sua rua. Salvaguardando as devidas distâncias (FHC foi considerado um dos maiores sociólogos do século XX e o responsável pelo Plano Real que tirou o Brasil do atoleiro económico em que se encontrava), o anterior Presidente funciona como uma espécie de Sócrates: quando há qualquer problema a culpa é dele. O PSDB tentou descolar-se do seu legado. Aécio restabeleceu a realidade dos factos, lembrando que FHC foi crucial para devolver ao Brasil a credibilidade internacional. Teve de enfrentar a crise financeira que começou na Ásia, em 1997, contaminou a Rússia e se abateu sobre a América Latina, incluindo o Brasil. Conseguiu reduzir uma dívida colossal. Criou as condições para que Lula chegasse ao Planalto com um país economicamente estabilizado. Lula teve a inteligência de preservar o seu legado. FHC também regressou à ribalta nestas eleições.


Mas o maior desafio do PSDB também não é fácil: precisa de convencer os brasileiros que não é o partido dos ricos e dos quase ricos, numa sociedade que, apesar da Bolsa Família, da Minha Casa Minha Vida, ainda é profundamente desigual. Como dizia FHC, “O Brasil não é um país pobre, é um país injusto”. O que Lula fez foi imenso. O que falta fazer também é. Para que não se perca o que já se fez.

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