domingo, 2 de novembro de 2014

BESgate. Escrutinar em nome dos leitores. Por Luís Rosa. O i publica o melhor de uma investigação que marcou o fim de uma dinastia de poder


BESgate. Escrutinar em nome dos leitores
Por Luís Rosa
publicado em 1 Nov 2014 in (Jornal) i online
Falta descobrir a forma como Ricardo Salgado dominou os políticos nos últimos 20 anos

“O jornalista diz a verdade, o seu trabalho não é preocupar-se com as consequências. A longo prazo a verdade nunca é tão perigosa como uma mentira. Acredito realmente que a verdade liberta os homens.” A frase é de um dos melhores jornalistas de sempre, Ben Bradlee, que morreu recentemente e foi director do “Washington Post” entre 1968 e 1991, e está relacionada com a investigação do caso Watergate, liderada pelo “Post”. A verdade, de facto, não só liberta os homens como é um dos valores jornalísticos essenciais. Sem verdade não há notícia.

A investigação do i sobre as reuniões do Conselho Superior do Grupo Espírito Santo (GES) revelou verdades que Ricardo Salgado e o seu poder quase absoluto conseguiram esconder durante muito tempo da opinião pública. Com a ajuda de uma tropa de choque liderada por delinquentes da comunicação e o estatuto de maior anunciante nacional, Salgado conseguiu domar a comunicação social durante mais de 20 anos.

Desde o dia 1 de Outubro que a jornalista Sílvia Caneco, autora de um excelente trabalho, fez revelações surpreendentes que permitiram aos leitores do i conhecer pormenores das reuniões secretas da cúpula da família Espírito Santo. Do pagamento de comissões dos submarinos aos cinco ramos da família, passando pela guerra aberta entre Salgado e o seu primo José Maria Ricciardi ou pelo fantástico plano de José Honório para salvar o GES e acabando na forma como o ex-líder executivo do GES tentou envolver a família na ocultação do passivo das holdings familiares.

O i tudo revelou de forma fundamentada, séria e deontologicamente correcta, dando a conhecer o que tem interesse público e desvalorizando o que é da esfera privada. Com a informação que temos, seria muito fácil cair na tentação do jornalismo populista. Não o fizemos.

A questão central reside em saber se todos os líderes dos ramos sabiam que a contabilidade das sociedades familiares estava a ser adulterada desde 2008 e qual o conhecimento que os líderes dos clãs tinham das operações de descapitalização que foram feitas no BES aos longo deste ano. O i deixou algumas pistas, mas ainda não foi possível chegar a conclusões. Os trabalhos da comissão parlamentar de inquérito e as investigações do Banco de Portugal, da CMVM e do Ministério Público serão essenciais para chegarmos a uma conclusão.

A investigação do i ao caso BES, é importante referir, não começou agora. Iniciou-se em Novembro de 2012. São dois anos de trabalho intenso e de cruzamento de informações, que também tem tido o contributo fundamental do Carlos Diogo Santos. No início, as nossas notícias não tinham eco na restante comunicação social, como se existisse uma espécie de Muro de Berlim informativo erguido pela tropa de choque de Ricardo Salgado. Mas o muro acabou por ceder. Era inevitável.

O maior elogio que se pode fazer ao trabalho do i sobre o caso BES é que quem queira fazer a história da derrocada do império da família Espírito Santo terá de ler o que publicámos.

Muito falta descobrir sobre este caso – e uma área, a forma como o BES de Ricardo Salgado dominou a classe política nos últimos 20 anos, continua por desbravar com casos concretos. José Honório deu-nos várias pistas quando recordou a cobrança dos favores concedidos ao longo dos últimos 20 anos. A investigação do i ao caso BES vai por isso continuar, com o objectivo de oferecer aos nossos leitores o melhor do jornalismo de investigação que se faz em Portugal e enobrecer o principal objectivo do nosso trabalho: escrutinar os titulares dos poderes públicos e a utilização do dinheiro dos contribuintes em nome da opinião pública. Ao fim e ao cabo, escrutinar em seu nome, caro leitor.

O i publica o melhor de uma investigação que marcou o fim de uma dinastia de poder
Por Sílvia Caneco
publicado em 1 Nov 2014 / 2-11-2014 / (Jornal) i online

Durante um mês, o i revelou como a família Espírito Santo viveu os dias da derrocada. De frente para uma montanha de dívidas que se avolumava, para irregularidades que iam sendo destapadas, perante pressões do Banco de Portugal e das investigações que começavam noutros países, foram muitos os segredos que foram sendo revelados nas reuniões do Conselho Superior do GES. O i faz hoje o resumo de uma história que se poderia contar em 11 capítulos

A história dos últimos dias da família Espírito Santo ficou registada nas reuniões do Conselho Superior do grupo – o órgão da cúpula onde estavam representados os cinco principais ramos do clã. As regras em torno do Conselho criado no início dos anos 90 eram muito claras: o que ali era dito, ali devia ficar. O sigilo teria de ser total. Afinal, era naquelas reuniões que deveriam ser discutidas todas as decisões importantes relacionadas com o futuro do grupo. O i mergulhou durante um mês nestas reuniões e revelou uma panóplia de segredos. Contados na primeira pessoa pelos principais protagonistas da família.

Salgado, então líder do BES, bem que foi pedindo para que os telemóveis ficassem fora da sala das reuniões. A atitude preventiva não foi suficiente para que os segredos ficassem guardados nas salas da casa da Rua de São Bernardo, junto ao Jardim da Estrela, e no edifício virado para a Rua Barata Salgueiro, onde regularmente se reuniam.

A novela dos dias da derrocada conta-se com confissões sobre irregularidades, discussões sobre dinheiros e comissões, intrigas familiares, defesas e ataques a Ricardo Salgado – consoante a fase –, medos de processos e detenções e planos, muitos planos, para salvar o Grupo Espírito Santo (GES). Que também passaram por responsáveis políticos.

I. Uma família dividida

Durante meses, as reuniões da cúpula do Grupo Espírito Santo (GES) foram os bastidores de uma luta pelo poder que, em parte, já tinha saltado para os jornais: os primos Ricardo Salgado e José Maria Ricciardi entraram em clima de guerra fria.

A 7 de Novembro de 2013, Ricciardi abandonou a reunião a meio, furioso por não poder expressar o seu voto sobre a continuidade de Salgado na liderança do BES. Só os mais velhos elementos da família tinham direito de voto, segundo os estatutos do Conselho Superior: o pai, António Ricciardi, apoiou Salgado, e logo de seguida o filho bateu com a porta. “Eu não estou aqui a fazer nada.”

José Maria sentiu-se denegrido com as notícias que tinham saltado para os jornais e deu início a um longo fim-de-semana de comunicados, que obrigou Salgado e Ricardo Abecassis (o primo que representava o BESI no Brasil) a irem a sua casa.

No dia 11, José Maria Ricciardi era um homem isolado. Foi a mais longa e mais crispada reunião do Conselho Superior. José Maria não resistiu aos impulsos e levantou a voz. Salgado controlou-se: nem quando Ricciardi ameaçou revelar publicamente as razões por que não lhe tinha dado um voto de confiança, Salgado subiu o tom. O encontro, marcado para horas antes de uma reunião do Conselho de Administração do BES, começou com uma imposição a Ricciardi que o líder do BES Investimento (BESI) já adivinhava: ou rectificava o comunicado, ou teria de deixar o grupo.

“Se sair e se propuseres isso, já reflecti, e irei revelar publicamente as razões que me levaram a não te dar o voto de confiança. (…) Depois não me venhas dar o ónus de ter acabado com o GES. Tu não me vais imolar publicamente, nem correr comigo, por coisas que eu não fiz”

José Maria Ricciardi, 11 de Novembro de 2013

O presidente do BESI sentiu que o queriam “imolar” e começou por recusar. Salgado também começou por recusar uma conversa em privado. Só ao fim de muitas trocas de acusações, e insistências da família para resolverem as suas divergências, os primos saíram para falar a sós numa outra sala. O que lá aconteceu é das poucas coisas que ainda estão em segredo. Para a praça pública o que saltou foram só as cenas finais: um comunicado em que ambos faziam um pacto de tréguas.

As notícias nos jornais abrandaram, mas nem por isso os dois primos desavindos deixaram de ter picardias nas reuniões da família. José Maria Ricciardi insistia em ser prudente e em deixar registado naquelas reuniões que estava perante papéis, relatórios e contas que desconhecia ou que não compreendia. Salgado acusava-o constantemente de falta de solidariedade.

Um dos maiores problemas surgiu em Dezembro de 2013 à volta de uns números: os da esmagadora dívida da Espírito Santo International (mais de 6 mil milhões) e do seu buraco (1,3 mil milhões). Enquanto Salgado dizia ter sido apanhado de surpresa e empurrava as explicações para José Castella, controller financeiro do GES, e Francisco Machado da Cruz, o “comissaire aux comptes” do Luxemburgo que durante anos tinha tratado das contas da holding, três representantes dos cinco ramos da família – Manuel Fernando Espírito Santo, Ricardo Abecassis Espírito Santo e José Maria Ricciardi pediam apenas uma coisa: explicações. Como é que 1,3 mil milhões de euros nunca tinham sido registados nas contas? Salgado resumiu tudo a uma “distracção”.

E se num dia desapareciam do radar as dúvidas sobre a ocultação das contas, logo surgia outro drama: ora Salgado reprimia Abecassis por aquele ter dado uma entrevista, ora censurava Ricciardi por ter falado ao telefone com o primeiro-ministro, durante a privatização da EDP e da REN; ora Abecassis ripostava contra o ordenado de José Honório (150 mil euros por mês, mas já lá vamos) ora Abecassis se queixava de não ter oportunidades e de ter um salário que mal daria para pagar as contas.

Dinheiro, processos judiciais e sucessão, eis os temas que mais fracturavam a família.José Maria Ricciardi, Ricardo Abecassis e Pedro Mosqueira do Amaral (filho de Mário Mosqueira do Amaral, que morreu em Março de 2014) foram os que mais fizeram perguntas a Salgado entre Novembro de 2013 e Julho de 2014. Ainda assim, na mente de quase toda a família, Salgado permaneceria líder quase incontestado até ao dia em que foi detido e interrogado pelo juiz Carlos Alexandre: se for possível marcar uma linha, foi nessa data que a família lhe virou as costas. O então líder do BES tornarava-se uma fonte de sarilhos. E agora, o que aconteceria ao nome Espírito Santo?

II. Comissões dos submarinos

A reunião de 7 de Novembro de 2013 ajudou a desvendar um dos maiores segredos da família Espírito Santo: os cinco principais representantes do clã confessavam ter recebido em 2004 cinco milhões dos cerca de 30 milhões de euros pagos à Escom a título de serviços de consultoria pelo consórcio alemão que vendeu os submarinos a Portugal. Um milhão de euros cada um.

A história, avançada na íntegra pelo i nas edições de 1 e 2 de Outubro, trazia ainda mais um elemento surpreendente: Salgado confessava que o rasto da comissão paga à Escom – empresa detida a 67% pelo GES, estando o restante capital nas mãos de Hélder Bataglia – não se esgotava nos 5 milhões que terão ido para os membros do Conselho Superior do GES nem nos 15 milhões que teriam ido para os gestores da Escom constituídos arguidos no caso dos submarinos: Helder Bataglia, Pedro Ferreira Neto e Luís Horta e Costa.

“Deram-nos 5 a nós e eles [os administradores da Escom] guardaram 15”

Ricardo Salgado, 7 de Novembro de 2013

“E vocês têm todo o direito de perguntar: mas como é que aqueles três tipos receberam 15 milhões? A informação que temos é que há uma parte que não é para eles. Não sei se é ou não é. Como hoje em dia só vejo aldrabões à nossa volta… Os tipos garantem que há uma parte que teve de ser entregue a alguém em determinado dia”

Ricardo Salgado, 7 de Novembro de 2013

A revelação contou-se nestas palavras: “E vocês têm todo o direito de perguntar: mas como é que aqueles três tipos receberam 15 milhões? A informação que temos é que há uma parte que não é para eles. Não sei se é ou se não é. Como hoje em dia só vejo aldrabões à nossa volta... Os tipos garantem que há uma parte que teve de ser entregue a alguém em determinado dia.”

A reunião acabaria sem o nome do elemento-mistério. Mas com os detalhes suficientes para perceber que Salgado terá exigido que Manuel Fernando Espírito Santo assinasse uma carta que deveria conter a assinatura dos representes da família que tinham direito de voto no Conselho Superior do GES. A carta, assinada no fim de 2013, pretendia ser “um acto de gestão que institucionalizasse a decisão” tomada nove anos antes. Essa carta, explicava Salgado, era fundamental  para o processo judicial. Que, frisava, mais cedo ou mais tarde seria tornado público.

Manuel Fernando tinha afinal um argumento simples para não assinar: o montante inscrito na carta não correspondia ao montante que tinha recebido, dividido em duas tranches.

III. Salvação de Durão Barroso

Como é que se pode salvar um grupo em apuros? Foi a pergunta que varreu as cabeças de directores financeiros, administradores e membros do Conselho Superior do GES pelo menos desde Dezembro de 2013, altura em que o Banco de Portugal  começou a lançar ultimatos: era preciso não deixar que a dívida da área não financeira do grupo contaminasse o banco.

Foram vários e diversificados os planos apresentados nas reuniões do conselho superior: um dia queria vender-se activos, noutro pedir empréstimos à Caixa Geral de Depósitos, noutro ir buscar novos accionistas. Mas o mais importante de todos os planos foi delineado por um elemento externo à família e em quem os Espírito Santo depositaram todas as esperanças. José Honório, ex-braço direito de Pedro Queiroz Pereira na Portucel, e que mais tarde viria a ser o número dois de Vítor Bento na administração do Novo Banco, negociou ser senior adviser da Rioforte, uma das holdings do grupo, por 150 mil euros por mês.

O valor que anualmente representaria um gasto superior a 2,1 mil milhões de euros (pois haveria carro, seguro, eventuais bónus) esteve longe de agradar todos os membros de uma família mas Salgado fez questão de passar uma mensagem: até podiam estar “quase pobres”, mas se havia homem que merecia aquele investimento em Portugal esse homem era José Honório.

O gestor, que foi apresentado à família logo em Dezembro, já trazia a lição estudada. Mas que a família se deixasse de ilusões: por melhor que fosse o seu plano financeiro, nem todos os esforços técnicos valeriam. O GES só poderia ser salvo com apoio institucional. E o melhor era ir directamente às mais importantes instâncias.

“Se esta casa conseguir que o Durão Barroso tenha uma conversa privada, sem mais ninguém, com o Presidente da República e com o primeiro-ministro a explicar que está muito preocupado, esse é o maior apoio que se pode ter”

José Honório, 17 de Abril de 2014

Para concretizar o plano de acção, aconselhava Honório, era preciso ir directamente ao presidente da Comissão Europeia. Afinal, “era amigo da casa e a casa” também era “amiga dele”. Depois, caberia a Durão Barroso falar directamente e em privado com Cavaco e Passos Coelho e colher apoios na Comissão para travar eventuais problemas no Luxemburgo e na Suíça.

Salgado adiantou que ia telefonar a Barroso e, se preciso fosse, iriam ter com ele a Bruxelas. A mensagem a passar, insistia Honório, era aparentemente simples: o que estava em causa não era um banco, não era um grupo, não era uma família, mas um país.

O homem que viria a ser o braço-direito de Vítor Bento tinha ainda outros conselhos a dar à família: estava na hora de o grupo cobrar favores. “A fama que esta casa tem no mercado é que tem ajudado muita gente desde sempre. Acho que está na altura de cobrar favores. Fazer uma relação das entidades e das pessoas a quem podem cobrar valores e o montante que podem cobrar.”

As reuniões do Conselho Superior do GES nunca deixaram claro se Honório, Salgado ou outros membros do Conselho Superior terão chegado a falar com o então presidente da Comissão Europeia, se Durão  Barroso terá pedido apoios a algum responsável político e onde é que a teia de alegadas influências terá sido quebrada.

Passos Coelho reagiu à notícia do i dizendo que não teve com Durão Barroso qualquer “conversa específica” sobre o BES e que em nenhum momento lhe foi proposta uma “reacção mais ou menos amiga” do governo em relação ao banco. Durão Barroso, em entrevista à Visão, limitou-se a dizer: “Não me pronuncio sobre casos na Justiça. E creio que o primeiro-ministro já desmentiu isso.” Passos Coelho, Durão Barroso e Cavaco Silva nunca responderam directamente às perguntas do i.

IV.  Ultimatos e cedências

Dezembro de 2013 foi o mês em que a desgraça começou a desabar sobre os Espírito Santo. E chegou sob a forma de ultimato. No dia 3, às 19h da tarde, Salgado recebeu uma carta assinada pelo vice-governador Pedro Duarte Neves: o BdP dizia-se surpreendido com “o inusitado acréscimo” do passivo financeiro da Espírito Santo International (ESI), garantia que a dimensão da dívida era “susceptível de pôr em causa a solvência da ESI” e dava apenas 27 dias ao grupo para executar um plano de ring fencing, isto é, o grupo teria de isolar o BES de todos os riscos emergentes das entidades não financeiras.

Entre outras coisas, o GES teria de constituir até 31 de Dezembro uma conta bancária com o montante equivalente à dívida emitida pela ESI junto de clientes do BES, ou seja, com o montante de cerca de 1700 milhões de euros. Ricardo Salgado olhou para o calendário, protestou junto do Banco de Portugal e apresentou alternativas. Vinte dias depois, numa nova carta, o regulador apresentou um novo plano de acção diluído no tempo e mais próximo do que o GES tinha proposto.

O GES não cumpriu o plano e em Março foi obrigado a constituir uma provisão de 700 milhões de euros. Apesar de já a 3 de Dezembro o regulador ter alertado para a falência da ESI, e de ter sido constituída essa provisão por incumprimento do plano, só seis meses depois toda a família viria a ser afastada da liderança do BES.

Os alarmes só começaram a disparar quando o prospecto do aumento de capital do BES divulgado em Maio referiu que na origem dos problemas da ESI tinham estado “irregularidades materialmente relevantes”. Ainda assim, em Julho, o BdP, que negou ao i “qualquer redução no grau de exigências” no plano de reestruturação que traçou para o grupo, continuava a afirmar que a situação do banco estava “sólida” e não havia risto sistémico.

Mas voltemos atrás, ao dia em que o supervisor fez um ultimato ao grupo. Salgado, que tinha tido um encontro no BdP nesse mesmo dia, às 16h da tarde, agarrou no telefone, furioso, três horas depois. Como não conseguiu falar com o governador Carlos Costa, que estava em Frankfurt, ligou ao vice-governador e disse-lhe: “Esta carta é inexequível, inexequível.”

O então líder do BES começou a fazer contas: já só tinha 27 dias para executar o plano do supervisor. Mobilizou uma equipa de trabalho, decidiu que teriam de “adoptar uma postura mais radical” junto do BdP e no dia 5 de Dezembro voltou a ligar para o vice-governador a avisar que iria enviar um “documento de reflexão extremamente confidencial”. Às 20h desse mesmo dia, o então presidente do BES foi chamado de novo à sede do regulador. Carlos Costa recebeu-o com uma frase arrasadora: “Este documento revela uma surpresa da vossa parte pela carta que receberam mas nós é que estamos verdadeiramente surpreendidos com o aumento do endividamento do grupo.

O encontro deu origem a uma nova carta para o Banco de Portugal e, a 17 de Dezembro, Salgado voltou a reunir-se com o supervisor. Nesse mesmo dia, Salgado deu uma boa notícia à família: teria chegado “a uma plataforma de entendimento” com o supervisor bancário.

V. Eurofin, a “caixa negra”

Um difícil esquema de transações financeiras entre o BES, o GES e uma sociedade suíça chamada Eurofin Securities veio a público no dia em que Carlos Costa revelou as duas alegadas irregularidades que terão conduzido à resolução que separou o Novo Banco do bad bank em que ficariam todos os activos tóxicos e problemáticos do GES.

O esquema triangular que envolvia operações de compra e recompra de títulos entre aquelas três entidades determinou um registo de perdas nas contas semestrais do BES no valor total de 1249 milhões de euros e também não ficou de fora das conversas do Conselho Superior do GES.

Ricardo Abecassis Espírito Santo fez questão de deixar claro, logo em Dezembro, que a Eurofin para si era “uma caixa preta” – “Nem entendo bem o que é que se passa lá dentro” –, ao mesmo tempo que insistia em perguntar que tipo de investimentos é que tinham sido feitos com ou através daquela sociedade suíça especializada em serviços financeiros.

Salgado remeteu explicações para o administrador Amílcar Morais Pires e para a directora financeira Isabel Almeida. Adiantou apenas que estavam em causa “emissões de obrigações do banco que foram compradas”, que esse esquema a dada altura tinha deixado “de funcionar” e, numa alusão a Alexandre Cadosch, presidente da Eurofin,  sublinhou: “O Sr. Cadosch tem feito um jeitão ao grupo em várias áreas.”

“Aquilo era uma caixa negra. Desde Janeiro deste ano até terem saído fizeram uma fraude. Criaram um prejuízo brutal no BES para fingir que era a Eurofin que pagava dinheiro de volta.”

José Maria Ricciardi, 24 de Julho de 2014

Quando o nome da Eurofin voltou a ser citado nas reuniões do Conselho Superior do GES já os prejuízos estavam a ser evidenciados no balanço semestral do banco. No dia em que Salgado estava detido e a família marcou uma reunião de emergência, José Maria Ricciardi fez questão de explicar aos membros da família o que estava em causa: uma “fraude” que tinha causado “um prejuízo brutal para o BES.”

“Essa massa toda que veio da Eurofin foi toda introduzida fraudulentamente pelo DFME [Departamento Financeiro de Mercados e Estudos do BES]. São uns valores absolutamente astronómicos. A Isabel Almeida parece que confessou. Aquele dinheiro que veio da Eurofin para a conta escrow [conta que o grupo teve de constituir por determinação do BdP] parece que é tudo prejuízo do BES. Emissões de obrigações depois recompradas... aquilo é uma conta astronómica. Centenas de milhões de euros que vinham para a escrow account e que era prejuízo do BES”, explicou o líder do BESI.

O esquema complexo está a ser investigado pelo Ministério Público e pelo Banco de Portugal. Em poucas linhas, explica-se assim: o Departamento Financeiro de Mercados e Estudos do BES usou em 2014 uma série de sociedades-veículo criadas pela Eurofin – mas que se suspeita serem controladas pelo BES – numa operação que visou retirar 800 milhões de euros do banco para pagar dívida do grupo. O BES emitiu obrigações cupão zero a 40 anos com uma taxa de juro implícita de 7%. Essas obrigações chegaram a clientes do BES com gestão discricionária de carteiras, mas a uma taxa de juro de 4%.

No final, uma última acção do BES que terá sido executada no mês de Julho transformou as perdas potenciais em perdas reais para o banco: o BES desatou a recomprar aqueles instrumentos de dívida e o prejuízo foi de tal ordem que precipitou o colapso do GES.

VI. Os milhões do construtor

Presente ou comissão? Nem uma coisa nem outra. Salgado disse à família que os 14 milhões de euros que recebeu do construtor José Guilherme eram assunto do “foro pessoal”.

A fuga ao esclarecimento – que violava o princípio de que dentro do Conselho Superior do GES tudo era falado até à exaustão e decidido por consenso – deixou o luso-brasileiro Ricardo Abecassis Espírito Santo à beira de um ataque de nervos. “Se um director meu receber um presente de um cliente, o que lhe vou dizer?”, perguntava o representava dos negócios da família no Brasil. Mas nem a provocação levou Salgado a abrir o jogo: o então presidente do BES praticamente proibiu os restantes membros da família de fazerem perguntas sobre o assunto. “Não aceito mais conversas sobre esta matéria”, rematou.

Ricardo Abecassis, primo em segundo grau de Salgado, ainda insistiu, dizendo que a história do “presente” de 14 milhões dado pelo construtor civil da Amadora tinha causado um “desgaste muito grande” na imagem do então líder do BES e do grupo. E deixando claro que não acreditava nas explicações de Salgado: “E desculpe-me mas até agora não aceito a justificação que foi dada, acho que não é normal, não posso aceitar que o presidente de um banco receba um presente de um cliente desta magnitude. Isto leva a que todos os funcionários do banco possam receber presentes dos clientes e justificar que são seus amigos.”

Para reforçar a ideia de que a história dava uma má imagem do grupo, Abecassis contou que até no Brasil lhe perguntavam “se o presidente recebia comissões de clientes”.
Salgado não queria ouvir a palavra “comissões” nem a palavra “presentes”. O que interessava, disse à família, é que a sua idoneidade não estava posta em causa: tinha-se “munido dos pareceres necessários para que o assunto ficasse esclarecido”, já tinha ido duas vezes ao Banco de Portugal e o supervisor teria concordado que era um asunto do foro pessoal.

VII. O bónus para afastar PQP

A parceria empresarial entre o grupo de Pedro Queiroz Pereira e o Grupo Espírito Santo durou oito décadas. Terminou em Novembro de 2013, quando já nada podia reaproximar o empresário conhecido pelas iniciais PQP e Ricardo Salgado, que há anos estavam numa guerra aberta. O que não se sabia, e que o i revelou, é que a separação das águas só aconteceu porque o GES pagou um bónus de 5 milhões de euros a Maude Queiroz Pereira, uma das irmãs de PQP, para que vendesse a sua participação ao irmão.

Segundo Ricardo Salgado, aquele valor “extra” tinha sido a única alternativa para forçar a irmã do empresário a assinar um acordo. Só assim o dono da Semapa abandonaria os 7% que detinha na Espírito Santo Control, holding da família Espírito Santo, e o GES deixaria a Cimigest e a Sodim, empresas accionistas do grupo Semapa.

A decisão não agradou a todos os elementos da família. Ricardo Abecassis Espírito Santo – que teve um papel fundamental nas negociações com Pedro Queiroz Pereira, juntamente com Francisco Cary, vice-presidente do BESI e o ex-ministro Eduardo Catroga – indignou-se por se estar a gastar 5 milhões de euros para resolver aquele conflito num momento em que todos os tostões eram fundamentais para a sobrevivência do grupo: “Incomoda-me que a gente tire do nosso bolso 5 milhões de euros para ajudar a Maudezinha [diminutivo da irmã de PQP] a vender a participação para o Pedro. É uma decisão que até podemos fazê-la, mas é aqui do Conselho Superior. Porque é dinheiro que a gente vai receber da nossa participação, e numa altura em que o grupo precisa de dinheiro sempre são 5 milhões de euros. E para convencer a Maudezinha a vender a gente está a adoçá-la com mais cinco. Mas são cinco que fazem falta."

Salgado tentou desdramatizar aquele pagamento: que não se preocupassem que, pelas suas contas, não teriam grande prejuízo.

VIII. A cruz das contas

O nome de Francisco Machado da Cruz foi um dos mais repetidos nas reuniões do Conselho Superior do GES. E começou a sê-lo muito antes de o país ter ouvido falar do “comissaire aux comptes” que teria alterado as contas da Espírito Santo International desde 2008.

Publicamente, o líder do BES trouxe o seu nome para a praça pública, responsabilizando-o pela ocultação dos 1300 milhões de euros nas contas da holding. Entre quatro paredes, a história foi outra. Ou melhor, as histórias foram outras, consoante as datas: em reuniões de Janeiro e Fevereiro, Salgado defendeu-o, pediu à família que o protegesse, sugeriu que poderia ser útil noutro cargo e até enviou o currículo da sua mulher a um amigo; em Julho, confrontado com uma carta em que Machado da Cruz pedia uma indemnização por estar sem salários, Salgado virou-lhe as costas.

Vamos por partes. Afinal, o contabilista tinha decidido demitir-se ou tinha sido forçado a demitir-se? Salgado insistiu sempre na tecla de que o contabilista é que se enganara e que as contas que assinou apareciam feitas. Mas até alguns membros do Conselho Superior do GES pareciam duvidar da história. José Manuel Espírito Santo chegou a dizer a Salgado: “Ele [Machado da Cruz] diz que pediu a demissão a teu pedido.” Pedro Mosqueira do Amaral questionou mais do que uma vez se o contabilista não teria assumido as culpas para fazer um favor à família e ao grupo: “Sempre pensei que o Francisco nos estava ali a ajudar um pouco ao assumir e passar a culpa para cima.”

IX. A Escom:vendida ou não?

Salgado anunciou em Novembro aquele que seria o ponto final de uma longa história de entraves na venda da Escom.  Finalmente o assunto que pairava desde 2010 estava encerrado. Disse à família que a venda da empresa estava fechada por um total de 145 milhões de euros: o GES iria receber 93 milhões de euros, que se somavam aos 52 milhões que o grupo já tinha recebido de sinal da petrolífera Sonangol.

Mas a verdade é que o assunto da Escom que Salgado dizia estar resolvido em Novembro de 2013 deixou de estar em Dezembro. Numa nova reunião do conselho superior, Salgado apresentou uma nova versão: afinal, o negócio ainda não se tinha concretizado, a Escom continuava a ser uma das preocupações do Banco de Portugal, era preciso continuar a financiar a empresa com empréstimos e o grupo, por precaução, já tivera de fazer uma provisão de 250 milhões de euros para salvaguardar o risco da não concretização do acordo.

Apesar de o negócio ter continuado num impasse, Salgado contava como tinha recebido dinheiro pela empresa que não tinha chegado a sair das mãos do grupo. Os 52 milhões de euros de sinal tinham entrado nas contas da Espírito Santo Resources, uma holding da área não financeira do grupo.

X. Quando o parceiro ameaçou

A aliança estratégica entre o BES e o Crédit Agricole durou três décadas e chegou ao fim em Maio, com o desmantelamento da Bespar. Mas não foi nesse momento que os principais responsáveis do banco francês se chatearam com o Grupo Espírito Santo. Em Janeiro, Salgado até correu para Paris para tentar evitar a tragédia. Quando chegou a Lisboa, tinha a tragédia à porta: representes do Crédit Agricole tinham ido ao Banco de Portugal ameaçado romper com o grupo. Xavier Musca, número dois do presidente do Conselho de Administração do Crédit Agricole e ex-chefe de gabinete de Sarkozy, chegou mesmo a ligar a Salgado com uma imposição: o Crédit Agricole não aceitaria “em nenhuma circunstância” ser “penalizado” por uma empresa do GES. Caso fosse registada uma imparidade no BES – e, por arrasto, o banco francês tivesse de assumir parte desse prejuízo – o Crédit Agricole, dizia Musca, desmarcar-se-ia “imediatamente da parceria”, passaria para o lado dos accionistas minoritários e interporia um processo contra a administração do banco, contra os auditores da KPMG e contra o BdP.

Uma agressividade jamais vista num parceiro de 30 anos que regularmente ganhou dinheiro com o banco e com os investimentos que fez connosco”, lamentou Salgado.

XI. Os dias do desespero final

Os últimos dias de Julho transformaram-se numa autêntica tragédia para os Espírito Santo.  A montanha de dívidas era gigante, os emails de credores não paravam de cair na caixa de correio, os depósitos não paravam de sair do banco, não havia dinheiro em caixa, não havia seguro suficiente para cobrir despesas com advogados, não havia dinheiro para andar de aviões a jacto e até havia membros da família que deviam dinheiro ao grupo.

“Passar a vida na prisão com os colombianos e mais não sei o quê… Passei esta noite a pesquisar na internet acordos de extradição com Portugal, só para verem, nem dormi.”

Jorge Penedo, administrador da filial do BES no Panamá, 18 de Julho de 2014

No meio disto, havia ainda administradores com preocupações maiores: e se fossem presos? Jorge Penedo, que tinha exercido funções de administrador no Banco Espírito Santo do Panamá (o ES Bank, uma filial da Espírito Santo Finantial Group), estava em pânico: com receio de ser preso naquele país da América Latina tinha passado a noite a estudar acordos de extradição com Portugal.


No meio de tanta desgraça, ainda valia a pena acreditar na marca Espírito Santo? Salgado, directo, pôs fim às dúvidas com uma frase gelada: “O grupo acabou e eu não tenho forma de o recuperar."

Sem comentários: