domingo, 17 de março de 2013
Chipre, a anatomia de um desfalque.
Chipre, a anatomia de um desfalque
O Eurogrupo introduziu o confisco e a arbitrariedade nas práticas políticas da União Europeia
Editorial Hoje / Público
18/03/2013
As palavras já são conhecidas. Uma vez mais, não havia alternativa. De entre todas, esta solução era a menos "dolorosa". Mas o inqualificável resgate a Chipre aprovado pelos ministros do Eurogrupo na madrugada de sábado mostra que o valor das palavras na União Europeia está a sofrer uma forte desvalorização. Onde existiam cidadãos europeus com direitos, existem hoje cidadãos cujos depósitos bancários podem ser taxados sem aviso prévio, como aconteceu em Chipre. A dor tornou-se uma moeda política na UE. A arbitrariedade e o desprezo absoluto pelas regras estabelecidas e pelos valores da União tornaram-se comuns. Por tudo isto, o que se passou este fim-de-semana é uma página negra na História da Europa. As consequências desta decisão absurda serão imprevisíveis para a UE - provavelmente, serão tudo menos indolores -, mas o que já está feito diz muito sobre aquilo em que a UE se transformou. Evidentemente, trata-se de Chipre. Uma "parvónia" com um milhão de habitantes que representa apenas 0,2 % do PIB europeu. Uma irrelevância onde os europeus decidiram suspender as regras, nomeadamente a garantia sobre os depósitos bancários na Europa. Afirmando depois que isso não acontecerá em mais lado nenhum. Mas, como ninguém estava à espera que isso acontecesse em Chipre, a incerteza está lançada.
A forma escolhida pelo Eurogrupo para revelar a medida é chocante. A decisão foi anunciada na madrugada de sábado, como um ataque de surpresa que cercou as vítimas. E, tratou-se, de facto, de um assalto. Os depósitos confiscados aos cipriotas irão pagar 5,8 mil milhões de euros de um resgate que ascende a dez mil milhões. Ora vale a pena recordar que uma das causas do descalabro das contas de Chipre foi a reestruturação da dívida grega, que custou 4,5 mil milhões de euros à banca cipriota. Por outras palavras, a soma do que os cipriotas vão pagar em depósitos bancários e o que perderam por causa da Grécia, sem terem qualquer responsabilidade, é superior ao total do resgate. Alguém tem coragem de falar em solidariedade?
Como é sabido, 40% desses depósitos estão em poder de oligarcas russos que aproveitaram a forma como o Chipre se converteu numa lavandaria de dinheiro, sob um Governo comunista, diga-se. E, na Alemanha, é voz corrente que a senhora Merkel não podia deixar que o dinheiro dos alemães servisse para resgatar os ganhos desses oligarcas. Mas ninguém se preocupou, durante anos, em evitar que o Chipre evoluísse para um país pouco recomendável. A essa irresponsabilidade soma-se agora outra, a deste resgate punitivo. Desfalque seria a palavra mais adequada para o descrever.
O parlamento cipriota reunirá hoje para deliberar. Tem duas escolhas: a menos ou a mais dolorosa, que é a saída do euro. A democracia tornou-se relativa. E a chantagem substituiu a solidariedade. As palavras mudaram. É essa a verdadeira crise da Europa.
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