Chipre é apenas o último aviso sério de que tudo pode ainda correr muito mal
À beira do desastre?
Por Teresa de Sousa
24/03/2013 in Público
1. O título deste texto tem a virtude de se aplicar tanto a Portugal como à Europa. Comecemos pela segunda. Chipre é apenas o último aviso sério de que tudo pode ainda correr muito mal. Primeiro, assistimos à extraordinária falta de senso político do Eurogrupo sobre as suas próprias decisões. O ministro das Finanças da Holanda, o seu novo presidente, ainda nem aqueceu o lugar e já nos faz ter imensas saudades de Jean-Claude Juncker. Dois dias depois, graças às notas da videoconferência entre os representantes dos ministros (a que os olhos da Reuters tiveram acesso), comprovámos que a doença é séria. Reconheceram que estava instalado de novo o caos, que era preciso estudar maneiras de "murar" a ilha de Chipre de forma a evitar o "contágio" e ter planos de contingência para uma eventual saída do euro. Quando a Europa volta a colocar em cima da mesa a possibilidade de expulsar um país do euro, não vale a pena tentar desvalorizar a gravidade da situação. O próprio ministro holandês reconheceu no Parlamento Europeu que Chipre poderia desencadear uma crise sistémica. Já ouvimos esta história outras vezes. Voltámos à Primavera de 2010? Não se aprendeu nada? Não se fez nada?
A intervenção decisiva do BCE no Verão passado foi apenas uma trégua, que permitia aos líderes europeus ganhar tempo para tomar as decisões de fundo de que estamos à espera. Mario Draghi disse-o inúmeras vezes. Ouvimos mil vezes os responsáveis europeus dizer que era preciso separar a dívida dos bancos da dívida dos Estados. A união bancária, com os seus três pilares, foi saudada como um grande salto em frente. Depois, verificou-se que Berlim não tinha pressa. Na última cimeira europeia de 2012 percebeu-se que nada estaria operacional antes das eleições alemãs. A crise de Chipre seria facilmente resolvida se as coisas estivessem mais avançadas.
2. Mas há uma questão política bem mais grave por trás da crise de Chipre. Está na moda dizer que Chipre é um caso à parte, que nunca devia ter entrado na União nem, muito menos, no euro. Este argumento (curiosamente, muito usado em Portugal) é duplamente perigoso. Em primeiro lugar, porque se fundamenta numa realidade que já não existe e que não voltará. Os saudosistas da velha boa Europa ocidental que existia antes da queda do Muro, que são também os maiores críticos do alargamento, incorreram num erro de base: pensar que a implosão do império soviético, com a consequente libertação da Europa de Leste, permitiria à Europa manter-se igual a si própria, no seu pequeno e próspero recanto ocidental. Isso nunca seria possível, até porque, entretanto, o mundo também mudou profundamente à sua volta, obrigando a Europa a ganhar autonomia estratégica e a actuar em função disso. Cumpriu o seu grande objectivo: integrar todo o continente. Pagou o preço nos Balcãs. Tinha de pagar também o preço de incluir uma muito maior diversidade económica, cultural e política. Na altura, deu muito jeito à Alemanha, que queria estabilidade na sua fronteira Leste e novos mercados para as suas empresas. É esta realidade que é ignorada por aqueles que olham para Chipre como uma entidade descartável. O problema é que, quando se vai por aí, está a escolher-se um caminho muito perigoso. Porque a pergunta seguinte pode ser esta: e Portugal deveria ter entrado? E a Grécia? E a Espanha? E por aí adiante, variando apenas a argumentação. Não há um caminho mais rápido para destruir a integração europeia, precisamente quando ela se torna mais necessária.
3. Acrise do euro deu à Europa uma extraordinária oportunidade de se renovar. A Alemanha está a tentar aproveitá-la para redefinir uma união monetária à sua imagem e semelhança. Mas esgota-se aí. Não tem uma visão estratégica da Europa. Não consegue assumir um papel de liderança política que vá para lá dos cálculos imediatos sobre o que aguentam ou não os contribuintes alemães. Liderar tem um custo elevado que alemães não estão dispostos a pagar.
O problema é que, entretanto, se abriu um vazio político no coração da Europa. As instituições europeias deixaram de funcionar. A Comissão é hoje uma pálida sombra de si própria, sem grande credibilidade nem capacidade para pesar a favor de um novo equilíbrio de poder que respeite os princípios fundadores da integração europeia. O Conselho Europeu transformou-se numa entidade estranha em que há 27 líderes à volta da mesa mas as decisões são apenas de um, mesmo que as tenha negociado previamente com alguns parceiros mais relevantes. O seu presidente não consegue sustentar uma única posição que contrarie a vontade alemã. Viu-se em Dezembro, quando Herman van Rompuy apresentou o seu roteiro para uma "genuína" união económica e monetária e viu o seu trabalho olimpicamente ignorado pela chanceler. Na última cimeira, a maioria dos governos queria discutir a sério a questão do crescimento. É penoso ler as conclusões do Conselho.
Podemos argumentar longamente sobre a boa vontade alemã, o direito que tem de defender os seus interesses e até nos méritos de impor aos seus parceiros um conjunto de regras e de reformas que garantam a estabilidade do euro no longo prazo. Como gostam de dizer os analistas alemães, "no gain without pain". O problema é que os ganhos não são óbvios e a dor está a ter efeitos devastadores nas economias do Sul e a criar problemas políticos e sociais explosivos. O problema é que nem Berlim, nem as instituições europeias, nem Paris (cuja fraqueza também já não é disfarçável) conseguem olhar para a Europa e definir uma visão de longo prazo onde as várias peças se encaixem e os vários países se possam reconhecer.
Quando o impensável se torna banal, quando a confiança dos europeus está a ser destruída todos os dias, quando se cava uma profunda divisão entre o Norte e o Sul, é a própria integração europeia que começa a estar em causa.
4. E isso leva-nos a Portugal. O clima político agravou-se subitamente. O rastilho foi a sétima avaliação da troika e a confissão pública do ministro das Finanças de que quase todas as previsões para 2012 e, portanto, para 2013, estavam erradas. Podem dizer-nos todos os dias que, sem a troika, não teríamos dinheiro para pagar salários. Mas já ninguém, nem o Governo, consegue defender uma receita que está a levar ao desastre. A desmoralização nas hostes da maioria é evidente. A desorientação também. O que se compreende, quando a grande convicção política de Pedro Passos Coelho não foi confirmada pela prática. Primeiro, endireitam-se os desequilíbrios financeiros, depois o crescimento florirá como a Primavera. O Governo está cada vez mais isolado. A coligação cada vez mais agitada. O Partido Socialista percebeu que tinha de acelerar a corrida e anunciou a "ruptura". Mas nem por isso consegue aparecer aos olhos dos portugueses como uma alternativa viável. "Basta de sacrifícios" quer dizer exactamente o quê? Sabemos que não podemos continuar como se nada fosse. Não sabemos qual é o outro caminho.
Uma das coisas mais razoáveis que ouvi nos últimos dias sobre como sair daqui foi dita por Fernando Ulrich quando substituiu Lopo Xavier na Quadratura do Círculo. "Só com um enorme voluntarismo". Reunindo as principais forças económicas, sociais e políticas em redor de 10 ou 15 objectivos muito precisos. Sempre me pareceu mais ou menos evidente que não seria possível tirar o país do atoleiro sem a convergência dos partidos do arco da governação. A arrogância do Governo, convencido que tinha a receita certa e que estava destinado a salvar a pátria, impediu qualquer aproximação ao PS, tornando-a hoje tão impossível como indispensável. Pode ser que a crise de Chipre faça soar as campainhas. Provavelmente com outros protagonistas.
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