O sintoma grego para um novo
espaço político na Europa
António
Guerreiro 03/02/2015 - PÚBLICO
A vitória do Syriza é um desafio
com que a Europa tem de se confrontar, ao mesmo tempo que obriga a pensar a
política, tanto em termos práticos como na teoria, a partir de novos conceitos
e novas categorias. O filósofo italiano Antonio Negri tem sido um dos
protagonistas da renovação do pensamento político, à altura das novas
realidades.
O filósofo italiano
Antonio Negri, autor de uma extensa e muito influente obra de filosofia
política, nomeadamente de três livros de enorme repercussão que escreveu com
Michael Hardt (Empire, Multitude e Commonwealth), esteve em Lisboa para um seminário
na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, a
convite do Instituto de História de Arte Contemporânea, e participou num outro
seminário organizado pela Unipop, no Hospital Júlio de Matos, no âmbito de um
projecto de exposição de trabalhos artísticos e de investigação, coordenado por
Paulo Mendes e Emília Tavares: O Tempo e o Modo – Para Um Retrato da Pobreza em
Portugal.
Conversámos com ele dois
dias antes das eleições na Grécia. A crise grega, o surgimento do movimento
Syriza e a sua implantação, o desafio e a novidade política que ele representa,
quando já era previsível a sua vitória nas eleições, foram o principal tema da
conversa que se segue e sobre o qual Antonio Negri tem intervindo publicamente
em várias ocasiões, sobretudo através de artigos em revistas e em volumes
colectivos (por exemplo, Le Symptôma grec, Éditions Lignes, 2014; um livro cuja
ficha técnica diz “Imprimé en Europe”). O nome de Negri não consta no entanto
de um apelo muito difundido, assinado por nomes importantes de escritores,
filósofos e intelectuais europeus e americanos, publicado no Libération a 21 de
Fevereiro de 2012. Chamava-se esse apelo, da iniciativa da revista grega
Aletheia, e à qual se associou a revista francesa Lignes (cf. Lignes 39, “Le devenir grec de l’ Europe néolibérale”,
Outubro de 2012), “Salvemos o povo grego dos seus salvadores”.
Sobre o que estava em
jogo nessas eleições Negri é peremptório: “Há a fortíssima pressão de uma
dinâmica interna da União Europeia, mas há também uma situação nova: o facto de
o movimento vitorioso não querer que a Grécia saia da Europa. Não se trata da
velha esquerda completamente fechada, bloqueada no antieuropeísmo. Há,
portanto, forças no interior da Europa que decidiram iniciar uma luta democrática
para mudar a política europeia.” Na medida em que representa a esquerda na
Europa e não contra a Europa, o Syriza, tal como o Podemos, em Espanha (mas
Negri tem o cuidado de não assimilar um ao outro, de sublinhar que se
distinguem tanto no plano da cultura política, como na história de cada um
deles), já nada tem a ver com as velhas organizações comunistas e introduz uma
ruptura com “o extremismo do centro”, que Negri define desta maneira: “Há uma
esquerda social-democrata, em toda a Europa, que se tornou completamente
centrista. São partidos que fizeram alianças com a direita e cuja política
passou a ser de centro-direita, capturando a social-democracia.”
Deste ponto de vista, a
importância do Syriza consistiria na possibilidade que ele oferece por enquanto
– em nenhum momento Negri lhe passa cheques em branco – de ser uma nova figura de organização
política, dotada de uma dimensão crítica, não fechada no pensamento único
económico e capaz de resgatar a social-democracia ao “extremismo do centro” que
representa, há muitos anos, o quadro político de gestão da crise na Europa.
Reconstruir, hoje, uma hipótese social-democrata, como diz ser a tarefa do
Syriza e do Podemos, significa “definir um projecto reformista capaz de
enfrentar a crise bem patente de uma social-democracia caracterizada nos seus
termos tradicionais, tendo em conta as transformações profundas que atravessam
tanto o capital como o trabalho”.
No actual contexto
europeu, apresentar um programa próximo de princípios da social-democracia
(como é, diz Negri, o programa do Syriza) já é uma aventura política que merece
a classificação de “radical”. A ocasião que se apresenta hoje na Grécia e
poderá apresentar-se ainda este ano em Espanha é a da “abertura de espaços
políticos novos na Europa”, algo que até há pouco estava completamente
bloqueado. Mas Negri coloca essa possibilidade sob condições: “É preciso que a
afirmação eleitoral do Syriza não se transforme imediatamente, como tantas
vezes aconteceu na história da esquerda, numa cristalização.” Dito de outro
modo, é preciso que todo o sucesso dê lugar a um movimento expansivo, ou, na
linguagem conceptual de Negri, inaugure “um processo constituinte” – o que
significa que não é o resultado eleitoral que representa, em si mesmo, uma
“vitória”.
Antonio Negri tem sido,
em várias ocasiões, um crítico do partido enquanto forma de representação (ele
é manifestamente inadequado para as novas formas de construção do “comum”) e,
por conseguinte, entende que há limites a ultrapassar que um partido, qualquer
que ele seja, jamais conseguirá. Daí, esta reivindicação que encontramos num
dos seus textos: “Aquilo de que precisamos é de uma atitude ‘experimental’, de
abertura visando a construção e a consolidação de uma nova trama de
contrapoderes, de novas instituições, de experiências de auto-organização
social.” É a isto, que é em suma a construção do comum, que ele chama um
“programa constituinte”. Na sua perspectiva, nada se pode resolver pela simples
reivindicação de uma “soberania nacional”. O seu contributo para o volume
colectivo Le Symptôma grec (que nasceu, aliás, de um colóquio na Universidade
Paris-8, em Janeiro de 2013) chama-se “Do fim das esquerdas nacionais aos
movimentos subversivos para a Europa”. Aí, começava por afirmar: “Quando se
fala de mundialização dos mercados, fala-se também de uma limitação imposta à
soberania dos Estados-nação. Na Europa ocidental, o erro essencial das
esquerdas nacionais foi o de não compreender que a mundialização era um
fenómeno irreversível.”
E, num texto recente que
assina juntamente com Sandro Mezzadra (disponível no site EuroNomade),
"Para uma política das lutas: Syriza, Podemos e Nós", podemos ler: “É
evidente que as eleições gregas não serão simplesmente eleições ‘nacionais’
(...), é na realidade o equilíbrio geral das instituições europeias que está
aqui em jogo – um equilíbrio que se redefiniu nestes últimos anos pela gestão
da crise.” E, mais à frente: “Nestas condições, a partida que o Syriza está
prestes a jogar é evidentemente complicada; e, do interior da esquerda europeia
e em nome de um pretenso realismo político, as posições que propõem cenários
lineares de superação do neoliberalismo e da austeridade através de um regresso
à soberania nacional parecem-nos francamente ingénuas.”
Voltando a esse texto
sobre o fim das esquerdas nacionais, sublinhemos a afirmação de que a esquerda
europeia tem sido incapaz de construir uma alternativa ao neoliberalismo,
precisamente porque nunca pôs em questão o Estado-nação de maneira consequente
e à altura da nova ordem em que vivemos. Lutar contra a crise a um nível
europeu, “reabrir uma perspectiva de luta no terreno realista da construção
subversiva de uma Europa unida”, eis aquilo a que Antonio Negri apela, tentando
contrariar o que tem sido a tendência dominante da esquerda europeia.
Sabemos que a propósito
da Grécia e do modo como a Europa tem gerido a crise da dívida dos países do
Sul já muito se falou em pós-democracia. Um outro filósofo italiano, Giorgio
Agamben, numa conferência que proferiu há pouco mais de um ano em Atenas, vai
ainda mais longe: “O paradigma governamental dominante na Europa de hoje não só
não é democrático como não pode sequer ser considerado político.” E acrescenta:
“A sociedade europeia já não é uma sociedade política: é algo totalmente novo
para o qual falta ainda uma terminologia apropriada.” Negri faz uma crítica da
democracia desde que começou a trabalhar sobre Espinosa, o filósofo que lhe forneceu
o conceito de multidão e o conceito de democracia da pluralidade, “a democracia
que determina, na pluralidade, as formas que são aquelas em que se constitui a
sociedade”. E acrescenta: “É evidente que a democracia hoje já não funciona. E
temos de pensar como superar, como ir além desta democracia.”
E quanto ao “comum” que
os movimentos políticos hoje procuram, em que consiste ele e que “gramática
política” constitui? Negri explica: “Por ‘comum’ entendo o seguinte: há hoje
uma cooperação social extremamente aprofundada no trabalho, que se tornou, na
nossa época, cada vez mais, trabalho intelectual, cognitivo, algo que se
realiza na Net, nas redes. Há uma nova realidade que podemos dizer que já é
antropológica, na medida em que faz parte do espírito das pessoas, que é o
espírito de participação. E isso é absolutamente fundamental na definição do
‘comum’, enquanto estrutura produtiva que se tornou cada vez mais cooperativa,
intelectual, cognitiva. Hoje, mesmo os trabalhadores de uma fábrica são
trabalhadores cognitivos. O trabalho manual, tradicional e de massa foi
empurrado, por exemplo, para a China. Mas aí está-se a dar uma transformação
impressionante. Há hoje mais engenheiros na China do que em toda a Europa.”
Isto significa obviamente que o discurso dos velhos partidos comunistas chegou
ao fim. E que a qualidade social e as características cognitivas da produção,
na medida em que permitem aos trabalhadores organizarem de maneira autónoma as
suas próprias redes sociais de trabalho, tornam obsoleto e absurdo que se
continue a impor as oito horas de trabalho. Diz Negri: “Se ainda perdura esse
horário de trabalho, é apenas por uma regra completamente disciplinar e idiota.
Por outro lado, afirma, “o direito de cada cidadão a um rendimento mínimo,
independente do trabalho e já não entendido como assistência social, vai
tornar-se uma questão cada vez mais presente”.
O “comum”, tal como Negri o entende, está relacionado com essa “nova
antropologia", a revolução em curso que permite a reapropriação daquilo
que se produziu – isto é, o novo proletariado já não é massificado e tem
autonomia, na medida em que é o conhecimento, a dimensão cognitiva, que
constitui parte do “capital fixo”.
Sem comentários:
Enviar um comentário