Fundação Ricardo Espírito Santo e
Silva: Um barco à deriva
02 Novembro 2014
/ OBSERVADOR
Reconhecida pelo trabalho ímpar
de restauro e artes decorativas, esta Fundação, que até ajudou a restaurar
Versailles, teme hoje pelo futuro por causa da tempestade da crise no GES.
Artur Sousa,
mestre de cinzelagem, começou aos 14 anos, em 1973, a esculpir e a
aprimorar metais. Os dedos calejados têm dificuldade em contar os anos de casa,
mas são já 55 de trabalho. Uma vida inteira a gravar os pormenores das peças
que vêm da fundição. Uma vida a trabalhar numa arte em que a precisão é um
requisito essencial, o que lhe permite olhar com naturalidade para a morosidade
do processo – “algumas peças, principalmente as mais pequenas podem demorar 27
horas até estarem prontas, até porque são praticamente polidas à mão”, explica
ao Observador com um encolher de ombros.
É um dos 120
funcionários da Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva (FRESS), que até há bem
pouco tempo vivia tranquila com o seu museu que alberga a coleção mais preciosa
de artes decorativas do país e a escola que formou milhares de alunos.
As próprias
ferramentas, os cinzéis, são feitas no interior da oficina porque têm de se
adaptar às particularidades de cada novo trabalho e o mercado não tem resposta
para esse tipo de exigência. Os cinzéis que nos mostra, por exemplo, foram
feitos a partir de molas de colchão que ainda não tinham sido dobradas,
adquiridas a um “colchoeiro de Alfama que se queria ver livre delas”.
“Cada peça tem um
cunho pessoal e é única no mundo. Por isso, nós conseguimos reconhecer o
trabalho dos nossos colegas ao longo de anos”, diz o mestre enquanto mostra com
orgulho um molde de uma talha feita por encomenda do filantropo e banqueiro
norte-americano, David Rockefeller.
Artur Sousa
trabalha na FRESS desde 1973. Cada peça produzida pelos mestres da cinzelagem
tem uma identidade própria, impossível de ser reproduzida
© Hugo
Amaral/Observador
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Na oficina do
lado, vive Teresa Romão, que começou a trabalhar na FRESS com apenas 16 anos –
era dessa forma que ocupava os seus tempos livres enquanto estudava. Mas aos 19
anos, surgiu a oportunidade e Teresa abraçou a decoração a ouro e a
encadernação de livros. São 33 anos dedicados à arte que aprendeu com a mestre
Graça Jordão, que em tempos foi aprendiz da fundadora da oficina. Agora, está a
“passar o testemunho” a Hugo Silva. “Qualquer dia tenho de me reformar”, diz
entre sorrisos.
As réplicas do
terramoto que abalou os alicerces do Grupo Espírito Santo (GES) e do banco
fazem-se sentir nesta Fundação, que vivia com o dinheiro de mecenato do BES e
da Tranquilidade. Hoje, enfrenta sérias dificuldades para sobreviver: o futuro
da fundação e dos seus cerca de 120 funcionários, alguns com mais de 40 anos de
casa, “é uma incógnita”, segundo confessa Conceição Amaral, diretora do
Museu-Escola de Artes Decorativas Portuguesas.
Aprendiz e mestre
juntos. Nesta oficina já passaram quatro gerações de artesãos
© Hugo
Amaral/Observador
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Tudo o que se faz
nesta oficina, desde a decoração de pastas, de livros, de tampos de secretária,
de papeleiras, de jogos de gamão, entre outros objetos, segue um processo
tradicional. Na decoração da capa de um livro a ouro fino, por exemplo, é usado
um produto à base de clara de ovo e vinagre para preparar a pele antes de ser
dourada. Depois, os desenhos são feitos geometricamente, seguindo-se uma demão
de azeite que vai servir de cola para agarrar o ouro. No fim, com auxílio de um
ferro aquecido, a decoração é gravada na pele do livro. A complexidade do
processo é tal que, dependendo do tipo de decoração e do tamanho da peça, pode
demorar até uma semana ou mais a estar concluído. O resultado são peças com uma
identidade única gravada em cada gesto minucioso.
O trabalho
produzido por mestres como o Artur e a Teresa, recorrendo à aplicação e ao
ensinamento de técnicas ancestrais em vias de extinção no país, é o “principal
ativo da Fundação e morrerá no dia em que ela fechar”, alerta a diretora do
museu.
“Se ninguém
ensinar a marcenaria artística e a talha, se ninguém souber trabalhar o ouro,
se ninguém souber encadernar ou trabalhar e fundir metais, tudo passará a ser
feito em fábricas (…) o que torna o mundo todo igual. O que nos pode distinguir
sempre é preservar aquilo que nós temos de mais importante e mais raro, aquilo
que nos distingue dos outros. E a arte e ofícios decorativos portugueses são ainda,
e reforço o ainda, uma marca nacional”, explica Conceição Amaral.
A escola
divide-se em Escola Superior de Artes Decorativas (ministra cursos de design de
interiores e de mobiliário e de conservação e restauro) e o Instituto de Artes
e Ofícios (com cursos mais práticos como a pintura decorativa, a marcenaria
embutida, a marcenaria entalhada).
Ao longo dos
anos, a FRESS já deixou a sua assinatura em trabalhos de restauro como no
Palácio de Versailles, em 1964 (reconstituição da biblioteca de Madame du
Barry), ou em mobiliário do Palácio Nacional da Ajuda.
Teresa Romão
trabalha na fundação há 33 anos. Na foto, está a marcar o ouro. Em alguns
casos, todo o processo pode demorar uma semana ou mais
© Hugo
Amaral/Observador
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"Como
acredito que só a Cultura nos pode salvar da crise geral em que vivemos, (...)
haverá uma resposta cabal em prol da salvaguarda da fundação"
Vitor Serrão,
professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
O perfil
educativo da fundação é para Vitor Serrão, professor catedrático na Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa e especialista em áreas como a História da
Arte e a Gestão do Património, a grande mais-valia da instituição, que, a seu
ver, tem prestado um “serviço público inestimável”.
“[A fundação]
criou um “pólo de ‘saber fazer’ através das oficinas, onde se formaram gerações
de mestres e aprendizes que têm assegurado a conservação, restauro e ensino
técnico no campo das artes decorativas”, realça ao Observador o professor
catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
António Filipe
Pimentel, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, partilha da opinião de
Vitor Serrão, sublinhando igualmente o papel da fundação “na formação de
técnicos capazes de responder às complexas necessidades da conservação e
restauro do património nacional, que é em tudo especial e único”, e deixa antever
que, caso a fundação desaparecesse, tal “assumiria as proporções de um
verdadeiro desastre nacional”.
“Espero vivamente
que sejam encontradas soluções para que a fundação não seja afetada na sua
missão. De outro modo e pelas razões expostas, o país iria retroceder meio
século num domínio onde o seu papel não foi somente pioneiro como tem sido
verdadeiramente missionário”, declara ao Observador o diretor do Museu Nacional
de Arte Antiga.
Foi sempre esse o
sonho de Ricardo Espírito Santo e Silva: aliar o museu, à missão de transmitir
às futuras gerações as artes de conservação, restauro e manufatura tradicionais
portuguesas.
O projeto começou
a ganhar forma quando Ricardo Espírito Santo e Silva adquiriu um tapete de
Arraiolos do século XVII, num antiquário em Torres Vedras – na altura, tinha
apenas 17 anos. Mais de três décadas depois, o Museu-Escola materializava-se no
Palácio Azurara, em Alfama, no Largo das Portas do Sol, e, em 1949, o edifício,
antes património do Estado, era restaurado e decorado pelo arquiteto Raul Lino
como uma casa aristocrática do século XVIII. Quatro anos depois, pouco antes de
o banqueiro falecer (1955), o museu abre, finalmente, as suas portas ao público.
A obra de Ricardo
Espírito Santo e Silva, que, além do museu, conta, hoje, com 19 oficinas de
manufatura e restauro e duas escolas, a Escola Superior de Artes Decorativas
(ESAD) e o Instituto de Artes e Ofícios (IAO), sobreviveu a tudo: à mudança de
regime em 1974 e aos anos quentes que lhe seguiram – que se traduziram numa
quebra abrupta da ligação com o Estado; ao progressivo desaparecimento de
grandes obras públicas de restauro e de conservação; e à crise que se instalou
na Europa e no país.
Todavia, quando o
Banco Espírito Santo (BES) começou a dar os primeiros sinais de crise, a FRESS
tremeu – em 2012, segundo o relatório de contas da instituição, a FRESS tinha
um resultado líquido negativo de 954 mil euros. O BES, para assegurar a
sobrevivência da fundação, contribuía com donativos no valor 641 mil euros,
mais de dois terços do total de ajudas que a fundação recebia.
Em 2013, novo
golpe: a alteração da Lei-Quadro das Fundações implicou a diminuição do
subsídio estatal. Progressivamente foram sendo retirados os 200 mil euros de
subsídios públicos anuais, canalizados através do Fundo de Fomento Cultural –
em 2013, o Fundo sofreu um corte de 30% e em 2014 ainda não foi canalizada
nenhuma verba.
Por fim, o
“furacão GES” levou, praticamente, todas as pedras que restavam e sustentavam a
fundação: em 2012, o mesmo relatório dizia que desde de 2009 até esse ano, a
FRESS “terá perdido potencialmente 2,5 milhões de euros de receitas próprias, a
uma média de 840 mil euros” por ano.
Hoje, todas as
receitas que a FRESS consegue gerar através das propinas das escolas, das
visitas ao museu, da venda de obras de arte e da intervenção em obras de
restauro e de conservação servem para assegurar os salários dos funcionários –
um verdadeiro desafio a cada mês que passa, tal como confessa a diretora do
Museu-Escola.
“Nós fazemos uma
gestão rigorosíssima e constante de contenção de despesas: não há aumentos de
ordenados há dez anos; não há horas extraordinárias há oito anos; não há um
único investimento que seja feito que não seja medido, remedido e repensado,
(…) não há, em nenhum momento, o mínimo de desperdício (…) Mas o risco de não
conseguir pagar salários existe sempre porque o dia-a-dia da instituição não
gera receitas suficientes (…) Por isso é que foi sempre preciso um mecenas, mas
agora…”, explica Conceição Amaral.
“Espero
vivamente que sejam encontradas soluções para que a fundação não seja afetada
na sua missão. De outro modo (..) o país iria retroceder meio século".
António Filipe
Pimentel, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga.
Agora, a FRESS
vive das encomendas de privados e da intervenção em pequenas obras de restauro
e de conservação, porque as “grandes obras são cada vez mais raras”. Daí a
necessidade de encontrar novos modelos de mecenato e de procurar novos patronos
nacionais ou internacionais. Essa missão não está a ser fácil, porque “a
conjetura não é a melhor”, lamenta Conceição Amaral. As negociações estão a
acontecer, existem interessados e pessoas com vontade de ajudar, mas o caminho
até à autossustentabilidade da fundação será longo.
A disposição das
obras manteve-se inalterada desde a morte do fundador. Recentemente, foi feita
uma remodelação para responder aos novos desafios
© Hugo
Amaral/Observador
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A aposta tem
passado, também, por conseguir a colaboração de grandes nomes da arte
contemporânea portuguesa como Joana Vasconcelos, Filipe Alarcão e Teresa
Gonçalves Lobo, para promover a nível nacional e internacional a marca
‘Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva’.
Uma marca
nacional reconhecida além-fronteiras. Em 2013, a fundação recebeu o
prémio Europa Nostra pelo papel desempenhado na preservação da cultura e das
artes europeias. “Há uma perceção de que os portugueses fazem com qualidade” e
que “são únicos no mundo a fazer o que fazem”, sustenta a diretora do Museu.
A certa altura,
conta Conceição Amaral, um dos responsáveis pela exposição de antiquários da
bienal de Paris terá dito, admirado pela qualidade de manufatura do mobiliário
português, “Vous êtes les dinosaures”, em português “Vocês são os dinossauros”.
Tal como as peças de mobiliário criadas de raiz pela fundação, a joalharia produzida
na FRESS é também motivo de “admiração” de marcas como a Chanel, a Hèrmes e a
Christian Lacroix, por exemplo, assumidamente “fascinadas” pela arte
portuguesa.
Todavia, a crise
que assolou a Fundação afetou “drasticamente” a sua capacidade de promoção
internacional – este ano estavam previstos dois eventos comerciais em Paris e
no Dubai, mas em junho a administração decidiu cancelar a ida, porque, se assim
não fosse, “os salários dos funcionários estariam em risco”.
A crise da FRESS
é, aliás, extensível a outros setores : além das sérias dificuldades para
assegurar o pagamento dos salários todos os meses, a fundação tem dificuldade
em responder aos anseios dos pais dos alunos que frequentam as escolas. “As
pessoas têm medo do que o futuro possa trazer”, explica Conceição Amaral.
As notícias
“alarmantes” da crise da fundação traduziram-se, também, na diminuição de
encomendas, porque os clientes têm receio que a instituição não consiga cumprir
os seus pedidos.
Perante este
cenário, qual é o futuro da Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva? A diretora
do Museu-Escola explica: “O que é que a fundação precisa? Das grandes obras de
conservação e de restauro, de encomendas nacionais e internacionais, de
visitantes, claro, e também de um olhar para esta Fundação como um projeto
cultural que serve desígnios nacionais, de conservação, manutenção e
transmissão de saberes e materiais da humanidade”.
E o olhar para o
património artístico de Portugal não pode estar dependente da necessidade de
“rentabilização a todo o custo”, denuncia Vitor Serrão, insatisfeito com a
falta de sensibilidade de quem governa para a importância cultural de
instituições como a FRESS. O professor catedrático crê, no entanto, que,
“apesar da crise do BES, a fundação tem um historial que fala por si” e
acrescenta: “Como acredito que só a Cultura nos pode salvar da crise geral em
que vivemos, (…) haverá uma resposta cabal em prol da salvaguarda da fundação”.
Para António
Filipe Pimentel, a “sobrevivência e garantia da prosperidade das nossas
instituições-âncora”, como a FRESS, deve ser “garantida por todos nós”, Governo
e sociedade civil.
“Ninguém pode
isentar-se dessa tarefa, cujo retorno, aliás, é repartido por todos. O
património tem, desde logo, uma capacidade geradora de mais-valias que, mesmo
no plano económico, se encontram hoje claramente demonstradas. Ou não fosse a
palavra “património” a que designa os ativos nos balanços empresariais – que
melhor do que ninguém sabem quanto significa a sua alienação ou
comprometimento”, avisa o diretor do Museu Nacional de Arte Antiga.
Conceição Amaral
partilha dessa mesma opinião e faz questão de sublinhar que “não é o reforço do
financiamento público que se pretende”, até porque “o país não está em
condições para isso”. O que a Fundação precisa é que o Estado a promova
internacionalmente, que “leve na sua bagagem”, em cada visita diplomática, a marca
FRESS e que estabeleça uma ponte com potenciais compradores de outros países,
porque a instituição, “por si só, não está em condições de o fazer”.
A FRESS está
situada em pleno centro histórico de Lisboa
© Hugo
Amaral/Observador
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“O Estado deve
funcionar como uma âncora institucional. (…) Deve olhar para esta fundação como
um instrumento importante para o seu discurso cultural, um instrumento
importante para a sua afirmação internacional naquilo que é a manufatura,
património, saberes e ofícios portugueses, e como um instrumento económico que
pode ajudar na promoção e na internacionalização das empresas (…) [Mas] se os
Governos sucessivos o têm feito nos últimos tempos? Não”,
queixa-se a diretora do Museu-Escola.
O cenário traçado
pela diretora do museu não deixa espaço para dúvidas: “Imagine um barco: um
barco fantástico, mas que está à deriva. Há uma tempestade enorme, não sabe
para onde tem de ir e ninguém lhe diz onde é o porto… É
assim que está a Fundação neste momento”, resume.
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