segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva: Um barco à deriva. / OBSERVADOR

Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva: Um barco à deriva
02 Novembro 2014 / OBSERVADOR
Reconhecida pelo trabalho ímpar de restauro e artes decorativas, esta Fundação, que até ajudou a restaurar Versailles, teme hoje pelo futuro por causa da tempestade da crise no GES.

Artur Sousa, mestre de cinzelagem, começou aos 14 anos, em 1973, a esculpir e a aprimorar metais. Os dedos calejados têm dificuldade em contar os anos de casa, mas são já 55 de trabalho. Uma vida inteira a gravar os pormenores das peças que vêm da fundição. Uma vida a trabalhar numa arte em que a precisão é um requisito essencial, o que lhe permite olhar com naturalidade para a morosidade do processo – “algumas peças, principalmente as mais pequenas podem demorar 27 horas até estarem prontas, até porque são praticamente polidas à mão”, explica ao Observador com um encolher de ombros.

É um dos 120 funcionários da Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva (FRESS), que até há bem pouco tempo vivia tranquila com o seu museu que alberga a coleção mais preciosa de artes decorativas do país e a escola que formou milhares de alunos.

As próprias ferramentas, os cinzéis, são feitas no interior da oficina porque têm de se adaptar às particularidades de cada novo trabalho e o mercado não tem resposta para esse tipo de exigência. Os cinzéis que nos mostra, por exemplo, foram feitos a partir de molas de colchão que ainda não tinham sido dobradas, adquiridas a um “colchoeiro de Alfama que se queria ver livre delas”.

“Cada peça tem um cunho pessoal e é única no mundo. Por isso, nós conseguimos reconhecer o trabalho dos nossos colegas ao longo de anos”, diz o mestre enquanto mostra com orgulho um molde de uma talha feita por encomenda do filantropo e banqueiro norte-americano, David Rockefeller.

Artur Sousa trabalha na FRESS desde 1973. Cada peça produzida pelos mestres da cinzelagem tem uma identidade própria, impossível de ser reproduzida
© Hugo Amaral/Observador

Na oficina do lado, vive Teresa Romão, que começou a trabalhar na FRESS com apenas 16 anos – era dessa forma que ocupava os seus tempos livres enquanto estudava. Mas aos 19 anos, surgiu a oportunidade e Teresa abraçou a decoração a ouro e a encadernação de livros. São 33 anos dedicados à arte que aprendeu com a mestre Graça Jordão, que em tempos foi aprendiz da fundadora da oficina. Agora, está a “passar o testemunho” a Hugo Silva. “Qualquer dia tenho de me reformar”, diz entre sorrisos.

As réplicas do terramoto que abalou os alicerces do Grupo Espírito Santo (GES) e do banco fazem-se sentir nesta Fundação, que vivia com o dinheiro de mecenato do BES e da Tranquilidade. Hoje, enfrenta sérias dificuldades para sobreviver: o futuro da fundação e dos seus cerca de 120 funcionários, alguns com mais de 40 anos de casa, “é uma incógnita”, segundo confessa Conceição Amaral, diretora do Museu-Escola de Artes Decorativas Portuguesas.
 
Aprendiz e mestre juntos. Nesta oficina já passaram quatro gerações de artesãos
© Hugo Amaral/Observador
Tudo o que se faz nesta oficina, desde a decoração de pastas, de livros, de tampos de secretária, de papeleiras, de jogos de gamão, entre outros objetos, segue um processo tradicional. Na decoração da capa de um livro a ouro fino, por exemplo, é usado um produto à base de clara de ovo e vinagre para preparar a pele antes de ser dourada. Depois, os desenhos são feitos geometricamente, seguindo-se uma demão de azeite que vai servir de cola para agarrar o ouro. No fim, com auxílio de um ferro aquecido, a decoração é gravada na pele do livro. A complexidade do processo é tal que, dependendo do tipo de decoração e do tamanho da peça, pode demorar até uma semana ou mais a estar concluído. O resultado são peças com uma identidade única gravada em cada gesto minucioso.

O trabalho produzido por mestres como o Artur e a Teresa, recorrendo à aplicação e ao ensinamento de técnicas ancestrais em vias de extinção no país, é o “principal ativo da Fundação e morrerá no dia em que ela fechar”, alerta a diretora do museu.

“Se ninguém ensinar a marcenaria artística e a talha, se ninguém souber trabalhar o ouro, se ninguém souber encadernar ou trabalhar e fundir metais, tudo passará a ser feito em fábricas (…) o que torna o mundo todo igual. O que nos pode distinguir sempre é preservar aquilo que nós temos de mais importante e mais raro, aquilo que nos distingue dos outros. E a arte e ofícios decorativos portugueses são ainda, e reforço o ainda, uma marca nacional”, explica Conceição Amaral.

A escola divide-se em Escola Superior de Artes Decorativas (ministra cursos de design de interiores e de mobiliário e de conservação e restauro) e o Instituto de Artes e Ofícios (com cursos mais práticos como a pintura decorativa, a marcenaria embutida, a marcenaria entalhada).

Ao longo dos anos, a FRESS já deixou a sua assinatura em trabalhos de restauro como no Palácio de Versailles, em 1964 (reconstituição da biblioteca de Madame du Barry), ou em mobiliário do Palácio Nacional da Ajuda.
 
Teresa Romão trabalha na fundação há 33 anos. Na foto, está a marcar o ouro. Em alguns casos, todo o processo pode demorar uma semana ou mais
© Hugo Amaral/Observador
"Como acredito que só a Cultura nos pode salvar da crise geral em que vivemos, (...) haverá uma resposta cabal em prol da salvaguarda da fundação"
Vitor Serrão, professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

O perfil educativo da fundação é para Vitor Serrão, professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e especialista em áreas como a História da Arte e a Gestão do Património, a grande mais-valia da instituição, que, a seu ver, tem prestado um “serviço público inestimável”.

“[A fundação] criou um “pólo de ‘saber fazer’ através das oficinas, onde se formaram gerações de mestres e aprendizes que têm assegurado a conservação, restauro e ensino técnico no campo das artes decorativas”, realça ao Observador o professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

António Filipe Pimentel, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, partilha da opinião de Vitor Serrão, sublinhando igualmente o papel da fundação “na formação de técnicos capazes de responder às complexas necessidades da conservação e restauro do património nacional, que é em tudo especial e único”, e deixa antever que, caso a fundação desaparecesse, tal “assumiria as proporções de um verdadeiro desastre nacional”.

“Espero vivamente que sejam encontradas soluções para que a fundação não seja afetada na sua missão. De outro modo e pelas razões expostas, o país iria retroceder meio século num domínio onde o seu papel não foi somente pioneiro como tem sido verdadeiramente missionário”, declara ao Observador o diretor do Museu Nacional de Arte Antiga.

Foi sempre esse o sonho de Ricardo Espírito Santo e Silva: aliar o museu, à missão de transmitir às futuras gerações as artes de conservação, restauro e manufatura tradicionais portuguesas.

O projeto começou a ganhar forma quando Ricardo Espírito Santo e Silva adquiriu um tapete de Arraiolos do século XVII, num antiquário em Torres Vedras – na altura, tinha apenas 17 anos. Mais de três décadas depois, o Museu-Escola materializava-se no Palácio Azurara, em Alfama, no Largo das Portas do Sol, e, em 1949, o edifício, antes património do Estado, era restaurado e decorado pelo arquiteto Raul Lino como uma casa aristocrática do século XVIII. Quatro anos depois, pouco antes de o banqueiro falecer (1955), o museu abre, finalmente, as suas portas ao público.

A obra de Ricardo Espírito Santo e Silva, que, além do museu, conta, hoje, com 19 oficinas de manufatura e restauro e duas escolas, a Escola Superior de Artes Decorativas (ESAD) e o Instituto de Artes e Ofícios (IAO), sobreviveu a tudo: à mudança de regime em 1974 e aos anos quentes que lhe seguiram – que se traduziram numa quebra abrupta da ligação com o Estado; ao progressivo desaparecimento de grandes obras públicas de restauro e de conservação; e à crise que se instalou na Europa e no país.

Todavia, quando o Banco Espírito Santo (BES) começou a dar os primeiros sinais de crise, a FRESS tremeu – em 2012, segundo o relatório de contas da instituição, a FRESS tinha um resultado líquido negativo de 954 mil euros. O BES, para assegurar a sobrevivência da fundação, contribuía com donativos no valor 641 mil euros, mais de dois terços do total de ajudas que a fundação recebia.

Em 2013, novo golpe: a alteração da Lei-Quadro das Fundações implicou a diminuição do subsídio estatal. Progressivamente foram sendo retirados os 200 mil euros de subsídios públicos anuais, canalizados através do Fundo de Fomento Cultural – em 2013, o Fundo sofreu um corte de 30% e em 2014 ainda não foi canalizada nenhuma verba.

Por fim, o “furacão GES” levou, praticamente, todas as pedras que restavam e sustentavam a fundação: em 2012, o mesmo relatório dizia que desde de 2009 até esse ano, a FRESS “terá perdido potencialmente 2,5 milhões de euros de receitas próprias, a uma média de 840 mil euros” por ano.

Hoje, todas as receitas que a FRESS consegue gerar através das propinas das escolas, das visitas ao museu, da venda de obras de arte e da intervenção em obras de restauro e de conservação servem para assegurar os salários dos funcionários – um verdadeiro desafio a cada mês que passa, tal como confessa a diretora do Museu-Escola.

“Nós fazemos uma gestão rigorosíssima e constante de contenção de despesas: não há aumentos de ordenados há dez anos; não há horas extraordinárias há oito anos; não há um único investimento que seja feito que não seja medido, remedido e repensado, (…) não há, em nenhum momento, o mínimo de desperdício (…) Mas o risco de não conseguir pagar salários existe sempre porque o dia-a-dia da instituição não gera receitas suficientes (…) Por isso é que foi sempre preciso um mecenas, mas agora…”, explica Conceição Amaral.

 “Espero vivamente que sejam encontradas soluções para que a fundação não seja afetada na sua missão. De outro modo (..) o país iria retroceder meio século".
António Filipe Pimentel, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga.

Agora, a FRESS vive das encomendas de privados e da intervenção em pequenas obras de restauro e de conservação, porque as “grandes obras são cada vez mais raras”. Daí a necessidade de encontrar novos modelos de mecenato e de procurar novos patronos nacionais ou internacionais. Essa missão não está a ser fácil, porque “a conjetura não é a melhor”, lamenta Conceição Amaral. As negociações estão a acontecer, existem interessados e pessoas com vontade de ajudar, mas o caminho até à autossustentabilidade da fundação será longo.

A disposição das obras manteve-se inalterada desde a morte do fundador. Recentemente, foi feita uma remodelação para responder aos novos desafios
© Hugo Amaral/Observador


A aposta tem passado, também, por conseguir a colaboração de grandes nomes da arte contemporânea portuguesa como Joana Vasconcelos, Filipe Alarcão e Teresa Gonçalves Lobo, para promover a nível nacional e internacional a marca ‘Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva’.

Uma marca nacional reconhecida além-fronteiras. Em 2013, a fundação recebeu o prémio Europa Nostra pelo papel desempenhado na preservação da cultura e das artes europeias. “Há uma perceção de que os portugueses fazem com qualidade” e que “são únicos no mundo a fazer o que fazem”, sustenta a diretora do Museu.

A certa altura, conta Conceição Amaral, um dos responsáveis pela exposição de antiquários da bienal de Paris terá dito, admirado pela qualidade de manufatura do mobiliário português, “Vous êtes les dinosaures”, em português “Vocês são os dinossauros”. Tal como as peças de mobiliário criadas de raiz pela fundação, a joalharia produzida na FRESS é também motivo de “admiração” de marcas como a Chanel, a Hèrmes e a Christian Lacroix, por exemplo, assumidamente “fascinadas” pela arte portuguesa.

Todavia, a crise que assolou a Fundação afetou “drasticamente” a sua capacidade de promoção internacional – este ano estavam previstos dois eventos comerciais em Paris e no Dubai, mas em junho a administração decidiu cancelar a ida, porque, se assim não fosse, “os salários dos funcionários estariam em risco”.

A crise da FRESS é, aliás, extensível a outros setores : além das sérias dificuldades para assegurar o pagamento dos salários todos os meses, a fundação tem dificuldade em responder aos anseios dos pais dos alunos que frequentam as escolas. “As pessoas têm medo do que o futuro possa trazer”, explica Conceição Amaral.

As notícias “alarmantes” da crise da fundação traduziram-se, também, na diminuição de encomendas, porque os clientes têm receio que a instituição não consiga cumprir os seus pedidos.

Perante este cenário, qual é o futuro da Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva? A diretora do Museu-Escola explica: “O que é que a fundação precisa? Das grandes obras de conservação e de restauro, de encomendas nacionais e internacionais, de visitantes, claro, e também de um olhar para esta Fundação como um projeto cultural que serve desígnios nacionais, de conservação, manutenção e transmissão de saberes e materiais da humanidade”.

E o olhar para o património artístico de Portugal não pode estar dependente da necessidade de “rentabilização a todo o custo”, denuncia Vitor Serrão, insatisfeito com a falta de sensibilidade de quem governa para a importância cultural de instituições como a FRESS. O professor catedrático crê, no entanto, que, “apesar da crise do BES, a fundação tem um historial que fala por si” e acrescenta: “Como acredito que só a Cultura nos pode salvar da crise geral em que vivemos, (…) haverá uma resposta cabal em prol da salvaguarda da fundação”.

Para António Filipe Pimentel, a “sobrevivência e garantia da prosperidade das nossas instituições-âncora”, como a FRESS, deve ser “garantida por todos nós”, Governo e sociedade civil.

“Ninguém pode isentar-se dessa tarefa, cujo retorno, aliás, é repartido por todos. O património tem, desde logo, uma capacidade geradora de mais-valias que, mesmo no plano económico, se encontram hoje claramente demonstradas. Ou não fosse a palavra “património” a que designa os ativos nos balanços empresariais – que melhor do que ninguém sabem quanto significa a sua alienação ou comprometimento”, avisa o diretor do Museu Nacional de Arte Antiga.

Conceição Amaral partilha dessa mesma opinião e faz questão de sublinhar que “não é o reforço do financiamento público que se pretende”, até porque “o país não está em condições para isso”. O que a Fundação precisa é que o Estado a promova internacionalmente, que “leve na sua bagagem”, em cada visita diplomática, a marca FRESS e que estabeleça uma ponte com potenciais compradores de outros países, porque a instituição, “por si só, não está em condições de o fazer”.

 
A FRESS está situada em pleno centro histórico de Lisboa
© Hugo Amaral/Observador

“O Estado deve funcionar como uma âncora institucional. (…) Deve olhar para esta fundação como um instrumento importante para o seu discurso cultural, um instrumento importante para a sua afirmação internacional naquilo que é a manufatura, património, saberes e ofícios portugueses, e como um instrumento económico que pode ajudar na promoção e na internacionalização das empresas (…) [Mas] se os Governos sucessivos o têm feito nos últimos tempos? Não”, queixa-se a diretora do Museu-Escola.


O cenário traçado pela diretora do museu não deixa espaço para dúvidas: “Imagine um barco: um barco fantástico, mas que está à deriva. Há uma tempestade enorme, não sabe para onde tem de ir e ninguém lhe diz onde é o porto… É assim que está a Fundação neste momento”, resume.

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