A Europa sem pudor
Menos solidária e cada vez menos credível, a União Europeia afunda-se
EDITORIAL / PÚBLICO
Jean-Claude
Juncker é um dos dirigentes europeus mais conhecidos. E não é de agora, desde
que se tornou presidente da Comissão. Basta lembrarmo-nos de que foi 18 anos
primeiro-ministro do Luxemburgo (1995-2013, parte dos quais acumulando com o
cargo de titular das Finanças), presidente do Eurogrupo durante oito
(2005-2013) e presidente do Conselho Europeu em dois semestres (1997 e 2005),
para se perceber que Juncker tem sido um dos grandes protagonistas da
construção europeia, para o bem e para o mal. Poderia ter sido rival de Durão
Barroso em 2004, quando este se candidatou à presidência da Comissão Europeia,
mas declinou, porque fora recentemente reeleito primeiro-ministro do seu país. Ironia
das ironias, sucede agora ao português num mandato que se revelou conturbado
mesmo antes de começar. Desde logo pelo inconformismo de David Cameron, que
tudo fez por lhe minar a candidatura. O primeiro-ministro britânico sempre
encarou Juncker como demasiado europeísta e nunca escondeu as diligências para
arranjar alternativas à eleição do luxemburguês. Este não se intimidou e, logo
no primeiro discurso perante o Parlamento Europeu, não hesitou em desafiar a
ortodoxia comunitária, ao condenar o excesso de austeridade e declarar a sua
aposta na criação de empregos e no crescimento económico. Para ajudar, prometeu
apresentar um pacote de 300 bilhões de euros antes do Natal.
Chegará lá? Esta
é a pergunta de um milhão de dólares que, nesta altura, mais deve circular nos
corredores de Bruxelas. Na quinta-feira, uma investigação divulgada por 40
meios de comunicação internacionais revela um esquema secreto, que alegadamente
permitiu a 340 multinacionais fugirem aos impostos nos seus países, através do
Luxemburgo. Este esquema, conhecido já como Luxembourg Leaks, envolve acordos
“perfeitamente legais”, segundo o Guardian, mas revela uma deturpação do
sistema fiscal europeu e uma concorrência desleal entre Estados. Essa fuga ao
fisco terá ocorrido entre 2002 e 2010; logo, durante o consulado de Juncker à
frente do Governo do grãducado. Trata-se de receitas fiscais de milhares de
milhões de euros que vários Estados perderam, acrescentando assim lucros
fabulosos a empresas como a Ikea, Amazon, Google, Pepsi, AIG, Deutsche Bank,
Apple ou a Coach.
A notícia caiu
como uma bomba nos meios políticos europeus e, nesta altura, muita gente se
interroga sobre que consequências terá, quer para Juncker, quer para o colégio
de comissários, quer para o futuro da própria Europa. Se o presidente cair, os
seus comissários também saltam e o processo de eleição volta à estaca zero. Mas
o que fica (ainda) mais em causa é a construção europeia, cuja realidade se
exibe, com a mais despudorada crueza, no esquema agora revelado. Já não se
trata apenas de falta de solidariedade, agora os Estados andam deliberadamente
a enganar-se uns aos outros. Sim, porque Bélgica, Holanda, Malta, Reino Unido
também estão a ser investigados... por práticas mais ou menos idênticas. Que credibilidade e que respeito merece uma Europa assim?
Um esquema que “é fácil, barato e
dá milhões”
Não é certamente
por acaso que o Luxemburgo, um país com 600 mil habitantes ( pouco mais do que
a cidade de Lisboa), tem um PIB per capita quase três vezes superior ao de
países como a Alemanha e o Reino Unido. Os indicadores do Luxemburgo têm muito
a ver com as “vantagens” que a autoridades concedem a quem quer fazer negócio,
que protegem os protagonistas dessas operações de olhares de outras paragens,
nomeadamente das autoridades dos países onde têm o centro dos seus negócios.
O recente
trabalho do Consórcio Internacional para o Jornalismo de Investigação (ICIJ, na
sigla em inglês) veio agora mostrar que ter uma subsidiária no Luxemburgo “é
fácil, é barato e dá milhões”. E mostrou que a engenharia fiscal que o país
permite tem muitas formas de se manifestar.
Os gastos em
instalações são reduzidos. O trabalho do ICIJ diz que um simples edifício (o
número 5 da Rue Guillaume) alberga 1600 empresas, muitas delas tendo apenas uma
caixa de correio. Depois, são várias as ferramentas à escolha.
A norte-americana
FedEx, empresa de transporte de mercadorias, criou subsidiárias no Luxemburgo
por onde fez passar os lucros obtidos com a operação no México, na França e no
Brasil, beneficiando de uma taxa de imposto de 0,25%. Uma companhia
farmacêutica britânica, a Shire, tinha filiais no Luxemburgo que concediam
empréstimos avultados a companhias irmãs e a taxas de juro que podiam chegar
aos 10%.
A investigação
cita também o caso da cadeia IKEA, que começou por criar uma subsidiária no
Luxemburgo e esta, por sua vez, criou outra na Suíça, ambas com a finalidade de
beneficiar de taxas mais favoráveis. Mesmo o fundo de pensões da função pública
canadiana utilizou uma filial no Grão-Ducado para reduzir os rendimentos
obtidos com os investimento que realizou em imobiliário na Alemanha.
José Manuel Rocha / 8-11-2014 / PÚBLICO
ICIJ criou redacção virtual para
o LUXLEAKS
Será quase tão
avançada como na sua época a nave da saga Star Trek: a Enterprise, a plataforma
digital criada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação
(ICIJ) para trabalhar o caso LuxLeaks, foi um instrumento essencial para que a
equipa de mais de 80 jornalistas em 26 países funcionasse numa redacção virtual
global e trabalhasse em conjunto as 28 mil páginas que compõem o processo.
A descrição é
feita por Marina Walker Guevara, a chamada “gestora de projecto” do caso
LuxLeaks. “Os documentos centrais da investigação eram incrivelmente
complexos”, pelo que a sua análise requeria uma profunda especialização
financeira e conhecimentos locais” da realidade de alguns países onde as
empresas operam.
A investigação
começou há seis meses, quando a ICIJ teve acesso aos documentos. Depois de
algumas dúvidas — porque os casos da engenharia fiscal da Fiat e da Amazon no
Luxemburgo eram públicos e a União Europeia já tinha aberto investigações
também aos paraísos fiscais da Irlanda e Holanda —, em Junho, uma equipa de 40
jornalistas mergulhou a fundo na documentação.
Seguiram-se meses
de “trabalho de investigação entediante e silencioso”, para passar a pente fino
todos os contratos fiscais entre as empresas e o Governo luxemburguês, liderado
por Jean-Claude Juncker, mas também, por exemplo, as contas das empresas, as
leis de cada país. E somaramse muitas “negas”: tanto a PricewaterhouseCoopers,
que assessorou as empresas e o Estado luxemburguês, assim como este último e
responsáveis das grandes empresas, fizeram do silêncio a palavra de ordem,
descreve Marina Guevara.
M.L.
Eurodeputados querem que Juncker
explique se ajudou empresas a fugir aos impostos
O que está em causa não é evasão fiscal, mas sim a legislação do Luxemburgo
e os pactos assinados com multinacionais, enquanto o presidente da Comissão era
primeiro-ministro
Clara Barata /
8-11-2014 / PÚBLICO
Durante muitos
anos, o Luxemburgo, governado por Jean-Claude Juncker, abriu as portas às
grandes multinacionais, como a Pepsi, a Ikea, a Fiat ou a Amazon, entre outras,
para que aliviassem a carga fi scal que teriam de pagar nos seus países,
aproveitando- se da legislação generosa do grão-ducado. Agora, na semana em que
assumiu a presidência da Comissão Europeia, Juncker está a ser convocado por
vários grupos parlamentares para ir prestar esclarecimentos no Parlamento
Europeu (PE) sobre estes negócios.
O “planeamento
fiscal” oferecido por bancos e consultoras financeiras aos seus clientes com
toda a normalidade não é tecnicamente um crime, como a evasão fiscal. Por isso
Jean-Claude Juncker, que foi primeiro-ministro do Luxemburgo entre 1995 e 2013,
e antes disso ministro das Finanças, poderá até dizer-se de consciência
tranquila, quando for ao PE.
Mas fica em causa
a sua independência para liderar o inquérito aberto no ano passado pela
Comissão Europeia sobre os modelos que vários Estados europeus — como a
Holanda, a Irlanda, Malta, Chipre e o Reino Unido — oferecem a grandes empresas
para possibilitar a elisão fiscal.
O que está em
causa não é a fuga aos impostos, a evasão fiscal, que passa pela ocultação de
informações, falsas declarações. A elisão fiscal é um abuso dos métodos legais
para diminuir a carga tributária sobre as empresas — por exemplo, abrindo uma
sucursal de uma empresa no Luxemburgo, que faz um empréstimo oneroso à
casa-mãe, o que permite reduzir em muito os impostos a pagar pela empresa
original. Várias empresas, como a gigante de electricidade E.ON, aproveitaram-
se das condições fiscais generosas do Luxemburgo e de outros países da União
Europeia, como a Irlanda, beneficiando duplamente destes paraísos fiscais
dentro da UE.
Uma fuga de
informação de quase 28 mil páginas de documentos confidenciais (apelidada
“LuxLeaks”), tratada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de
Investigação (ver http://www.icij.org/) deu origem a artigos em jornais de
vários países, publicados na quinta-feira. Revelam que o Luxemburgo assinou,
entre 2002 e 2010, pactos secretos com 340 multinacionais, que lhes permitiam
pagar apenas 2% de imposto comercial, em vez dos 28,6% que oficialmente teriam
de pagar no Luxemburgo.
Estes acordos (
tax rulings) foram assinados enquanto Juncker era primeiro-ministro — aliás,
foi ele que transformou o Luxemburgo numa grande praça financeira: 40% do
produto interno bruto depende dos serviços financeiros.
Segredo de
Polichinelo
A legislação do
grão-ducado não o torna um pária por ter permitido estes negócios com as
maiores empresas do mundo — não se pode dizer que estas revelações sejam uma
enorme surpresa. “Era um segredo de Polichinelo que o Luxemburgo é um paraíso
fiscal, mas o país tinha conseguido escapar ao radar, em parte porque os seus
responsáveis políticos e os seus banqueiros o negavam”, afirmou à AFP Ronen
Palan, professor de Política Internacional na City University de Londres. Jean-Claude
Juncker, por exemplo, conseguiu que uma jornalista francesa se retractasse, há
alguns anos, de ter usado a expressão “paraíso fiscal”, numa reportagem sobre o
seu país.
Na quinta-feira,
Juncker manteve a cabeça baixa — não compareceu a uma evento promovido em
Bruxelas, com a desculpa de que Jacques Delors, um anterior presidente da
Comissão, que deveria estar presente, estava doente e também não iria. Deixou o
seu porta-voz, Margaritis Schinas, enfrentar a imprensa, para dizer que “o sr. Juncker
já teve a ocasião de se expressar claramente sobre o tema da fiscalidade”,
relata o Le Monde. “Ele advoga uma maior harmonização fiscal”, afirmou. “Ele
está sereno. Se fosse mais jovem, diria que está cool. Fiquemos pelo sereno”,
disse ainda Schinas, segundo o Guardian.
Éuma atitude
diferente do político que, na véspera, tinha acusado os primeiros-ministros
italiano e britânico de mentirem aos seus eleitores. E garantia que não se deixaria
intimidar. “Eu não tremo face aos primeiros-ministros”, afirmou, depois da
primeira reunião da sua equipa de comissários europeus, que entrou em funções a
1 de Novembro.
Mas, na falta de
esclarecimentos de Juncker, coube ao actual primeiro-ministro luxemburguês,
Xavier Bettel, e ao ministro das Finanças, Pierre Gramegna, prestarem
esclarecimentos. Bettel garantiu que a legislação do seu país “é compatível com
os padrões comunitários e com os da Organização para a Cooperação Económica e o
Desenvolvimento”.
Numa sala a
abarrotar de jornalistas estrangeiros, relata o El País, Gramegna admitiu que,
“às vezes, o que é legal pode não ser eticamente compatível com as normas” e
declarou-se disposto a colaborar com Bruxelas. Sublinhou, no entanto, que
outros países têm legislações semelhantes. “Isto não se pode resolver só num
país, é preciso agir em cooperação.”
Não existe uma
harmonização fiscal na União Europeia — algo a que os Vinte e Oito têm
resistido ferozmente. Juncker tinha, todavia, dado garantias de que se
empenharia em impor uma maior transparência — eo seu porta-voz sublinhou que o
presidente da Comissão continua comprometido com esse objectivo. A nova
comissária da Concorrência, a dinamarquesa Margrethe Vestager, continuará a
investigar as práticas do Luxemburgo, que parecem típicas de “ajudas estatais
ao investimento” que em alguns casos foram consideradas ilegais. “A
investigação será levada até ao fim”, assegurou o porta-voz de Juncker.
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