domingo, 7 de julho de 2019

Uma história de pasmar



Uma história de pasmar

Foi doado mais dinheiro do que era necessário. Parte do dinheiro foi mal gasto, outra parte não foi sequer levantada.

António Barreto
7 de Julho de 2019, 8:00

Em Junho de 2017, na região de Pedrógão Grande e municípios vizinhos, um fogo florestal destruiu vidas, fazenda e empresas. Tratou-se de um dos incêndios mais mortíferos de que há registo em Portugal e no mundo desde 1900. Resultaram 65 mortos, sendo que, três meses depois, mais 50 se acrescentariam noutras localidades da região Centro. Os acontecimentos comoveram a opinião pública nacional e estrangeira.

Parece que o ano de 2017 foi severo nas condições climatéricas. Seca e vento em excesso. Material combustível também. Diz toda a gente que o mau ordenamento foi responsável. Há décadas, aliás, que se diz exactamente a mesma coisa: segundo as autoridades, a culpa é do ordenamento florestal, dos proprietários, das queimadas e dos acidentes provocados. Para a opinião em geral, àqueles responsáveis, acrescentam-se as autoridades. E nos meios mais maledicentes diz-se também, não sem alguma razão, que comerciantes, madeireiros e fornecedores de equipamentos de combate aos incêndios ajudam ao drama. Em 2017, voltou a referir-se essa lista de causas, com a ajuda da desordem nas aldeias e nas quintas. Mas havia leis que determinavam o ordenamento e definiam o que se pode e não pode fazer.

As plantações excessivas e descontroladas de resinosos e eucaliptos foram responsabilizadas. Assim como as plantações ilegais e selvagens de espécies combustíveis em condições muito perigosas. Mas há regulamentos que contrariam esta desordem ou impedem a plantação selvagem. Tudo isto se sabe há décadas. E há décadas se repete.

Foi patente a insuficiência de prevenção, a fraqueza dos avisos e a mediocridade dos trabalhos de precaução. Foram ineficazes os mecanismos de alerta. Mas havia regulamentos. Os meios de combate foram insuficientes, sabia-se aquilo de que se precisava, mas esperava-se que talvez não fosse necessário. As autoridades garantiram na altura que nada faltava, havia aviões e helicópteros, assim como pronto-socorros e toda a espécie de veículos e outros meios. A Protecção Civil tinha sido reorganizada meses antes dos incêndios. Vários dirigentes nacionais, regionais e locais, de confiança política, tinham sido nomeados poucos meses antes. Havia instituições, leis e despachos.

O sistema de comunicações, de longe o mais caro dos que foram apresentados ao Governo e o mais custoso jamais construído em Portugal, não foi capaz de funcionar competentemente em plena crise, quando era mais necessário. Mas estava tudo no contrato e nos termos de referência. Até estava previsto que poderia falhar quando fosse mais preciso.

Governo, instituições de prevenção e sistemas de combate, aos tropeções, deram mostras de má coordenação e fizeram o possível por culpar os outros, quaisquer que fossem, desde que fossem outros. Mas estava tudo escrito e previsto. E o Governo sempre protegeu os seus membros, os seus dirigentes e os seus nomeados.

Em cima das crises políticas resultantes dos incêndios de Pedrógão, o primeiro-ministro partiu de férias, que já estavam marcadas antes. Ministros directamente responsáveis revelaram-se atabalhoados e irresponsáveis, a mostrar serviço em vez de prestar serviço, a exibirem-se na televisão e a atrapalhar as operações em vez de ajudarem a organizar os meios de combate.

No rescaldo, o nervosismo foi total e esteve visível nos relatórios de análise dos incêndios e suas consequências. Houve secretismo nas conclusões, chegou a considerar-se que a identidade dos mortos era segredo de justiça. Os vários relatórios, antagónicos nas conclusões, revelaram influências políticas em assuntos técnicos. A investigação dos factos, dos estragos e das vítimas foi tardia, insuficiente e incompetente. O ordenamento e a temperatura são citados por quase toda a gente. Mas uns acrescentam que foi uma “trovoada seca”, outros afirmam que foi “mão criminosa” e outros ainda garantem que se tratou de uma “descarga eléctrica” da responsabilidade da EDP.

O Governo tentou demonstrar que as responsabilidades eram dos proprietários, das empresas, dos bombeiros, das autarquias e dos fornecedores de material de luta contra os incêndios. O Estado pôs em causa as autarquias e os bombeiros. Os bombeiros revoltaram-se contra as estruturas de prevenção e o governo. As autarquias criticaram o governo, os bombeiros e a prevenção. Todos, menos o Governo, criticaram o SIRESP, que se revelara um desastre. O Governo garantiu que o sistema era bom. Dois anos depois, sem avaliar a legalidade do concurso nem a justeza dos contratos de concessão, o governo nacionalizou o SIRESP.

Milhares de pessoas, centenas de empresas e dezenas de associações e fundações deram dinheiro para reparar casas, ajudar a criar emprego, refazer explorações agrícolas, agasalhar e alimentar pessoas. Foi doado mais dinheiro do que era necessário. Parte do dinheiro foi mal gasto, outra parte não foi sequer levantada. Até hoje, as principais entidades responsáveis não prestaram contas.

O dinheiro para ajudar as pessoas a refazer as suas vidas, casas e explorações chegou tarde, algum ainda não chegou, mas os governantes e os autarcas garantiram sempre que o dinheiro tinha sido entregue. Muita gente, Estado, funcionários, proprietários, autarcas e empresas roubaram, desviaram e enganaram.

A Polícia Judiciária e o Ministério Público terminaram as investigações e a instrução de processos nos quais são arguidos mais de meia centena de pessoas acusadas de terem cometido crimes por negligência ou de terem desviado fundos de emergência, inventado casas para reconstrução e outras habilidades. Entre os arguidos há autarcas, bombeiros, comerciantes e funcionários locais.

O principal desenvolvimento positivo de toda esta história, além da solidariedade expressa, ficou a cargo da Provedora de Justiça que determinou o montante das indemnizações a que teriam direito as famílias das vítimas. Todo esse trabalho foi feito a tempo e sem contestação.

Nos dois anos seguintes, o Governo substituiu os ministros que defendeu, os altos funcionários que protegeu e os encarregados da Protecção Civil que nomeou. Nacionalizou o SIRESP, sem sequer lhe ter atribuído responsabilidades nos falhanços. Comprou mais helicópteros e aviões, que afinal estavam em falta. Mudou de fornecedores de equipamentos que, em última análise, não eram de confiança. Não analisou as falhas do Governo, nem as da Administração Pública. Parece não haver lições a retirar. Nem erros a evitar. Até ao dia em que, por um Verão quente e seco…

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