sexta-feira, 5 de julho de 2019

“António Mexia disse-me que o meio artístico não estava a apreciar o meu trabalho”



ENTREVISTA PEDRO GADANHO
“António Mexia disse-me que o meio artístico não estava a apreciar o meu trabalho”

Na sua primeira entrevista desde que deixou, no último dia de Junho, o Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, o seu primeiro director faz um balanço positivo da passagem pelo MAAT ao qual diz ter trazido “reconhecimento internacional”. Considera o meio artístico português fechado e acredita que a sua saída foi provocada por um “mexerico”.

Isabel Salema  5 de Julho de 2019, 7:30

Uma semana depois de ter saído da direcção do Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT), onde chegou em 2015 com a sua experiência de curador de arquitectura do Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque, Pedro Gadanho diz nesta entrevista que esperava ter visto o seu contrato renovado por mais três anos, uma vez que era renegociável. Não foi essa a vontade de António Mexia, líder executivo da EDP e também presidente da fundação cultural do grupo, que irá substituir o arquitecto por um novo director que deverá ser anunciado antes do final deste mês.

No final de Agosto, o arquitecto Pedro Gadanho regressa aos Estados Unidos com uma bolsa de um ano atribuída pela Graduate School of Design da Universidade de Harvard​, a prestigiada Loeb fellowship, para se focar na investigação: “Apercebi-me de que os museus não são a melhor plataforma para comunicar sobre questões graves que estão a acontecer, como a crise climática. Se calhar, estar a actuar mais directamente na cidade, seja com artistas, arquitectos ou outros actores, é mais importante neste momento.”

Quais são as razões da sua saída da direcção do MAAT? Por que é que não ficou mais três anos, como era expectável?
A administração da Fundação EDP não quis renovar o contrato. Uma coisa perfeitamente legítima, que não pude se não aceitar. Na altura, fiquei abalado, porque se soubesse garantidamente que só vinha trabalhar três anos no lançamento do museu era provável que não largasse a posição que tinha no MoMA, um museu de prestígio internacional. Mas, como eram essas as regras do jogo, entrámos numa negociação que foi francamente positiva. Pela minha experiência, sugeri que poderia não ser assim tão rápido encontrar um novo director, disponibilizando-me para fazer a transição durante nove meses e garantindo também a conclusão de uma programação aprovada dois meses antes.

Por que é que não houve a renovação do contrato?
Não me foram dadas razões.

E que leitura faz?
Houve uma explicação que me foi dada por António Mexia muito directamente. Que tinha “sondado” o meio artístico e que este não estava a apreciar o trabalho que eu estava a fazer. Como não fui confrontado com factos concretos, não tinha grandes razões para contrapor fosse o que fosse. Apesar de tudo, claro que o meu balanço é um pouco mais positivo do que isso. A nível do reconhecimento internacional, foi feito um trabalho difícil, que é afirmar um novo museu a partir de uma condição periférica como a cidade de Lisboa, apesar de esta estar a viver um bom momento de visibilidade, com uma programação que pudesse ser respeitada pelos pares. A esse nível, pelo que fui circulando exteriormente, sei que houve um reconhecimento internacional do museu, porque só assim é que certos artistas acabavam por aceitar convites para trabalhar com o MAAT.

Como é que vê esse meio que supostamente não gosta do seu trabalho? Qual é a reflexão que faz sobre essa opinião, agora que passaram nove meses sobre o anúncio da saída?
Terão de ser outras pessoas a fazer a avaliação. Só posso dar a minha própria impressão que é, claro, parcial. Nunca senti que houvesse um feedback público sobre o trabalho que estava a ser feito.


Além da visibilidade internacional, que balanço faz do trabalho de um museu que tem uma missão, reflectida no nome, ligada à arte, arquitectura e tecnologia?
Devo dizer que o balanço é muito positivo, porque sempre me senti privilegiado por estar numa posição que era quase contracorrente em relação a um museu de arte moderna e contemporânea em Portugal. Em que havia a possibilidade, o budget  — 1,5 milhões de euros anuais —, de fazer um programa realmente ambicioso. Fizemos 18 exposições por ano, um ritmo muito intenso, graças a uma equipa fantástica, que teve o apoio da Fundação EDP. Fazer muito num curto período de tempo é o lado mais positivo da experiência.

Lançar um museu é uma experiência única, podia ter corrido mal mas quanto a mim correu muito bem, inclusive a nível da imagem da EDP. Foi um contributo positivo para a imagem da EDP.


Não é difícil trabalhar um leque tão alargado de temas: arte, arquitectura e tecnologia?
Curiosamente sempre vi isso ao contrário. O facto de trabalhar arte contemporânea, a base da colecção da Fundação EDP, relacionada com arquitectura, cidade e tecnologia, era estar a afunilar.

Se a programação for vista nesse sentido, é bastante coesa e direccionada, porque trata dessas relações interdisciplinares entre a arte contemporânea e as outras duas, explorando interligações entre aspectos da realidade actualmente muito presentes. Nesse sentido, o programa pôde ser menos autoral, menos uma escolha de uma rede pessoal de artistas.

Qual foi a exposição que melhor simbolizou essa leitura do programa que delineou?
A mais importante e que continua a gerar frutos é, sem dúvida, Ecovisionários: Arte e Arquitectura após o Antropoceno [2018], que está agora no Matadero, em Madrid, e em Novembro vai para a Royal Academy, em Londres. É uma exposição verdadeiramente internacional, porque foi uma parceria entre quatro instituições, os museus Bildmuseet (Suécia), HeK (Suíça), o Laboral (Espanha) e o MAAT, sobre um tema que se tem revelado cada vez mais incontornável: a crise climática e as suas consequências no nosso quotidiano. Cruza as visões de artistas e de arquitectos com reflexões sobre ambiente construído, recursos, energia, extracção.

O facto de não ter havido nenhuma repercussão mediática sobre a exposição em Portugal — zero de crítica e de reflexão —, talvez tenha gerado em mim o choque de querer mudar de contexto. Fomentar o debate é a função de uma exposição como esta.


O que é que isso diz sobre a capacidade de comunicar da exposição?
Diz, obviamente, em primeiro lugar, algo sobre a capacidade do museu de posicionar esse tema junto dos media, mas também diz muito sobre o interesse dos media portugueses em reflectir sobre certas questões.

Para mim, representou um momento-chave em que percebi que talvez o museu não seja a instituição que permite lançar debates públicos importantes.

O que explica a minha escolha de ir para Harvard fazer um curso quase de reciclagem e voltar à ideia de cidade, de forma mais abrangente. Foi importante como reflexão pessoal para perceber onde queria colocar-me a partir de um momento em que me envolvi com um assunto como as alterações climáticas, que considero absolutamente urgente e que me convocou de forma total.

Em relação ao meio artístico português como é que vê o seu trabalho no MAAT?
Nós cumprimos de forma rigorosa aquilo que foi o propósito inicial: manter uma programação equilibrada entre a presença de artistas portugueses e estrangeiros. A estratégia era não só permitir novos diálogos entre artistas, mas atrair um público que, não conhecendo os artistas portugueses, viesse por causa de um nome internacional mais conhecido. Queríamos um equilíbrio entre as mid career survey de artistas portugueses, os project rooms de artistas portugueses, o Cinzeiro 8 dedicado a projectos mais emergentes e depois exposições colectivas, que também tinham artistas portugueses, sobre temas mais internacionais, que nos permitiam trazer nomes internacionais para o museu.

Na Sala Oval, tratava-se de convidar artistas de renome internacional que tivessem capacidade de trabalhar num espaço de mais de 1000 metros quadrados. Era um equilíbrio procurado, capaz de oferecer um balanço e uma plataforma realmente internacional. Ser só um museu que mostra artistas portugueses não é, necessariamente, ser capaz de revelar esses artistas portugueses a uma audiência mais internacional.


E por que é que esse meio aparentemente não se reviu nesse trabalho?
Não faço ideia. Isso para mim foi apenas um mexerico.

Acha que é injusto?
Não acho que é justo nem injusto. Acredito que haja pessoas dentro do meio que se revêem noutro tipo de programação. Também por isso considero positivo que agora venha alguém que possa oferecer essa outra versão que agrade mais a esse suposto meio da arte portuguesa.

A verdade é que o meio da arte portuguesa é muito fechado, é provinciano. Está a fazer esse esforço de internacionalização, mas ainda assim está pouco habituado a consumir arte internacional. Talvez por isso, às vezes, cause algum incómodo quando surgem alguns nomes internacionais em destaque.

Sentiu alguma dificuldade em fazer a transição de uma curadoria mais ligada à arquitectura, que é a sua formação, para uma de arte contemporânea?
Não, não.


Esse défice também não pode ser seu?
Pode ser. Num meio muito auto-protector, as pessoas que olhassem de um modo superficial para aquilo que era o meu background, achando que eu vinha de fora do campo da arte, podiam considerar que era, à partida, um défice. Mas a verdade é que o meu mestrado foi em arte e arquitectura e a partir daí estive sempre ligado ao campo da arte contemporânea. Já no MoMA as minhas exposições foram muito baseadas na intercessão da arte e da arquitectura, aproveitando o facto de estar em contacto com uma colecção absolutamente incrível, como Endless House, Intersections of Art and Architecture, com obras de Bruce Nauman e Louise Bourgeois, entre muitos outros.

Trabalhou no Departamento de Arquitectura do MoMA…
… as pessoas também podem estar a fazer uma confusão entre as funções de curadoria e de direcção.

No MAAT, eu reservei para mim projectos muito específicos que falavam claramente de relações entre arte e arquitectura e convidei muitos curadores de arte contemporânea para fazerem exposições de arte contemporânea. Aliás, houve abertura para convidar curadores portugueses que não vejo noutros museus, porque nós demos visibilidade institucional a alguns curadores pela primeira vez. Se calhar, como houve uma direcção mais aberta, ou menos imune a interesse do campo artístico, tivemos uma abertura excepcional a outros olhares.

A direcção teve a função de lançar o museu, deve fazer a sua gestão, garantindo, por exemplo, que as exposições abrem na data em que estão programadas. A partir da missão da Fundação EDP, deve garantir um apoio ao meio, não só aos artistas mas também aos curadores, a todos os actores do campo.

PÚBLICO -Foto  A estratégia era não só permitir novos diálogos entre artistas, mas atrair um público que, não conhecendo os artistas portugueses, viesse por causa de um nome internacional mais conhecido"
Fui curador de cerca de doze exposições em mais de 50. Co-curador, porque sempre trabalhei em co-curadoria. Também achava que esse era o diálogo interessante e produtivo.

Como é que olha para o edifício depois de um convívio de quatro anos?
Ao contrário do que foi também a percepção do meio arquitectónico, que resistiu obviamente a uma linguagem a que não estão habituados, o edifício é extremamente convidativo. Conseguiu vencer a resistência de um público mais geral à arquitectura contemporânea e activou aquela área da cidade.

Sempre disse que seria um desafio a programação contornar essa atractividade tão grande do edifício. Levámos agora o Xavier Veilham para a cobertura para responder, ironicamente, a essa transformação do edifício quase num bellevue, num novo ponto de vista da cidade.

Qual é o espaço que gosta mais de programar?
Procurei não ir contra os espaços, até pela minha sensibilidade de arquitecto, mas adaptar-me à sua natureza. Daí ter definido, desde muito cedo, tipologias de exposições para espaços diferentes. A Sala Oval tem a vantagem de não ser o white cube tradicional, de seguir a linha de projectos site-specific.


O diálogo que se constrói entre artista e curadoria para dominar aquele espaço é muito interessante.

Por isso, o edifício de Amanda Levete foi fácil de trabalhar?
Para mim foi fácil porque defini uma estratégia, mas lembro-me de ter tido logo no início reacções de curadores do mundo da arte contemporânea a dizer que era um espaço difícil.

O que é que não fez e gostava de ter feito?
Depois da afirmação da programação, gostaria de ter começado a conversar mais com os vizinhos em Belém. Usar a dimensão catalisadora do edifício para melhorar urbanisticamente aquela zona da cidade.

Apesar da nova ponte do MAAT, continua a haver problemas infra-estruturais de acesso, não há transportes públicos para chegar ao museu e a cidade continua separada. A via rápida de acesso ao museu pode ser redesenhada para haver mais passeio. Como é que a presença do museu pode ajudar a cidade a desenvolver-se.

Tive visitantes estrangeiros, que não conheciam a cidade, que não conseguiam chegar ao MAAT porque não encontravam a passagem e tinham que apanhar um Uber. Apesar de aparentemente o museu ser um atractivo turístico, pelos números que me foram sendo dados, a percentagem de visitantes estrangeiros continuava a ser muito reduzida. Tínhamos cerca de 15% de visitantes estrangeiros quando o potencial seria 60%. Os visitantes estrangeiros não conseguem chegar ao MAAT.

Por que é que as dificuldades que encontrou no MAAT o fazem desconfiar do museu como uma plataforma indicada para abordar certos problemas?
Apercebi-me de que os museus não eram a melhor plataforma para comunicar sobre questões graves que estão a acontecer como a crise climática. Percebi que se calhar estar a actuar mais directamente na cidade, seja com artistas, seja com arquitectos ou outros actores, é mais importante. As cidades são, se calhar, as unidades territoriais onde vão acontecer mais transformações face à crise climática.

Isso quer dizer que vai voltar à arquitectura?
À arquitectura e à cidade. Aliás, o meu início de carreira está ligado à cidade com o Centro de Cultura Urbana Contemporânea (CUC), uma associação que formei e que foi, antes da Porto 2001, uma plataforma para ler a cidade, estudá-la e fazer propostas curatoriais. Harvard é uma oportunidade de ouro, fantástica, não patrocinada pela EDP, é bom que se sublinhe.

A fellowship permite-me ter um ano merecido de investigação a absorver tudo o que são os recursos de Harvard e que pretendo direccionar exactamente para o conhecimento actual do tema. A crise climática, a crise ambiental e como é que a arquitectura vai ter que mudar e adaptar-se, alterar um paradigma de dois mil anos. Esse é o meu projecto para o futuro, implica fazer consultadoria a nível de cidades, de think tanks internacionais, voltar ao registo freelance mas oferecendo um contributo para um tema absolutamente urgente.


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