sábado, 27 de julho de 2019

João Camargo: "Estado demitiu-se: 'não tenho quadros, nem orçamento para gerir a floresta... que se lixe'"



João Camargo: "Estado demitiu-se: 'não tenho quadros, nem orçamento para gerir a floresta... que se lixe'"

Pinhais Interior e de Leiria são bomba relógio

No seu livro Portugal em Chamas, aborda a tendência para Portugal arder mais do que o resto da Europa e o risco de considerar os incêndios de Verão coisas normais. A fatalidade é agora normalidade?
O  que distancia 2017 dos outros anos, é o facto de terem morrido tantos portugueses nos incêndios. Em 2003 e 2005, as áreas ardidas também foram grandes e morreram pessoas, mas nunca tinham sido tantas. Foi uma falha no sistema de protecção dos cidadãos, aliada a fogos fora da época. Em Junho, em Pedrogão Grande, e em Outubro, em várias zonas, entre elas o Pinhal de Leiria. Isto significa que o modo como Estado planifica a protecção de pessoas e das florestas não funciona. A época de incêndios deixou de ser os três meses do pico do Verão e terá de ser muito mais alargada. A onda de calor que aconteceu há poucos dias na Europa, ocorreu em Junho, não foi no pico do Verão, onde seria mais normal verificar-se. Tendemos a habituar-nos à anormalidade, como se ela fosse a normalidade, pois temos memória curta. Claro que eventos traumáticos, com mais de uma centena de mortos, ajudam-nos a esquecer mais devagar.

Não obstante, essa pedagogia da catástrofe, após os discursos de boas intenções e de algumas modificações legislativas, não se apercebe que haja acções determinantes no terreno, especialmente, nas zonas afectadas.
Logo a seguir, houve algum ímpeto e confrontação pública para mudar algumas coisas, mas, depois, os mesmos mecanismos que nos levaram ao abandono das áreas florestais, à situação de descontrolo total no ordenamento florestal, à proliferação de espécies perigosas e inflamáveis em monoculturas, como o eucalipto e o pinheiro, e aos incêndios descontrolados e mortais de 2017, contribuíram para que nada se fizesse. São precisos milhares de vigilantes e guardas da natureza, se se decidir reclamar as terras sem dono e expandir a área pública... e Portugal é o País da Europa com menor área pública florestal. Na verdade, o Estado demitiu-se. Disse: "não tenho quadros, nem orçamento para gerir a floresta... que se lixe." E está-se a lixar. O Pinhal Interior e o Pinhal de Leiria são uma bomba relógio. Vai voltar a acontecer grandes incêndios. Nos próximos dez anos, basta a biomassa aumentar e, a seguir, vir um ano de seca, e o cenário repete-se. Se a onda de calor que atingiu o centro da Europa, na semana passada, aqui tivesse chegado, haveria as condições ideais para um cenário igual ao de 2017.

Quais são os mecanismos que refere?
São mecanismos fortíssimos e planificados. Nada disto acontece por acaso. Estou a falar das empresas produtoras de papel e celulose, como a Navigator ou a Altri, que têm quadros que fazem, permanentemente lobby, e, outras vezes, estão no próprio poder político. Os quadros da Navigator, da Altri e da indústria das celuloses estão dentro do Governo, quer sendo ministros, secretários de Estado, chefes de departamento,,,

Leia aqui a primeira parte desta entrevista
“Temos de planificar o País para uma escassez de alimento, como não vivemos há dois séculos”

Mas o sector, em 2018, gerou lucros líquidos de 372 mil milhões de euros…
Falta subtrair a estes lucros o custo para o País, suportados pelos contribuintes, com prevenção e combate aos incêndios, protecção das populações e destruição de bens pessoais e empresas? Falta. Este é um sector altamente lucrativo, mas as contas dessas empresas são, como acontece com outros negócios, estritamente aquilo a que lhes diz respeito internamente. Elas têm cerca de 300 mil hectares, com plantações próprias, que, dizem, ardem menos do que as outras. E até é verdade, mas por um motivo simples. Elas têm corpos profissionais de bombeiros-sapadores e processos de limpeza permanentes nessas plantações. O problema? É que eles abastecem-se não apenas dessas áreas próprias, mas também dos restantes 700 mil hectares de eucalipto que estão plantados no resto do território e não têm quaisquer gestão ou limpeza.

Na semana passada, o jornal Público noticiou que um quarto das árvores em Portugal são eucaliptos, porém, quem conduzir pelo centro e norte do País fica com a sensação de que será muito mais. É só uma sensação ou os números estão correctos?
Falei com algumas pessoas que me disseram que esse inventário estava bastante mal feito. Mas atenção, 25% da floresta nacional ser eucalipto é elevadíssimo. Proporcionalmente, Portugal tem a maior área de eucalipto do mundo. Mais do que a Austrália, de onde a árvore é nativa. Parece que a nossa floresta autóctone é só eucalipto. Basta conduzir pelas estradas e ficarmos com a impressão que estamos na Austrália ou Tasmânia.

Mas o eucalipto não é uma árvore “má”. Cresce rápido, produz oxigénio e matéria-prima importante, e dá lucro fácil.
Em si, não tem nada de mal. Porém, é altamente competitiva e exclui com facilidade a existência de outras plantas à sua volta, especialmente a floresta autóctone resiliente ao fogo. Esses dois factos, associados ao clima em mutação para condições extremas, são muito desvantajosos para Portugal. O coberto florestal, para ser estável, precisa de uma combinação de várias especiais vegetais e de micro-organismos. E o eucalipto garante que isso não existe. É um deserto verde. As bactérias que aqui existem no solo têm uma enorme dificuldade em digerir as suas folhas e casca, que caiem ao chão, promovendo a acumulação de carga térmica, pronta a arder. Numa floresta - o eucaliptal e o pinhal são plantações artificiais - há um manto de terra negra, vivo, com húmus, mosquitos e plantas delicadas, que não existe com o eucalipto, que produz óleos inflamáveis e tóxicos, que dificultam a degradação das folhas e cascas aumentando a sua perigosidade no caso de incêndio. É uma planta que evoluiu com o fogo e beneficia dele. As chamas raramente o matam e após um incêndio, elimina a concorrência e rebenta com vigor. Além disso, destrói a água que há no solo. Não pode crescer rapidamente, se não for voraz a retirar nutrientes e água do chão. Muitos dos nossos solos são muito pobres e, mesmo assim, o eucalipto consegue proliferar neles, e retira a água do sistema e baixa os níveis freáticos. Neste momento, é impossível de erradicar de Portugal. Além de estar a crescer, espontaneamente, em muitos sítios, é preciso arrancá-lo em profundidade com máquinas pesadas. É um resistente e sobrevivente. É uma árvore admirável.

O presidente da Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal, Vítor Poças, afirma que metade do eucalipto existente em Portugal seria suficiente, se fosse apurado, e plantado em áreas que lhe são propícias. Por que se continua, neste momento ilegalmente, a plantá-lo?
As multinacionais do sector vendem papel para o mundo inteiro. Portugal é um sítio perto do centro da Europa, onde os terrenos valem pouco, paga-se pouco pelas árvores, não se paga nada pela destruição causada e conseguimos mandar papel baratinho para Europa toda. A Navigator é uma grande multinacional portuguesa? É. Tem Governos sucessivos que lhe estendem a passadeira para usufruir de mais de 10% do território nacional. Não paga nenhuma das consequências ambientais do que faz. Só tem benefícios. Agora, em vez do eucalipto, anda-se a plantar oliveiras… Tudo o que sejam monoculturas de espécies são abortos ambientais e económicos no longo prazo.

Espécies como o sobreiro seriam mais interessantes?
Coexiste com outras espécies, dentro de um ecossistema complexo que se chama montado. Seguramente, o sobreiro é muito mais rentável, por árvore, do que o eucalipto. Ambientalmente e em termos de estabilidade biológica dos terrenos, é incomparavelmente mais favorável para Portugal. É resistente ao fogo, mas cresce mais lentamente. Temos de pensar o que queremos. A rentabilidade económica é um processo mediado pelo Estado e são os Estados que criam as condições para os mercados funcionarem. Muito do valor dado ao eucalipto veio de incentivos públicos, nos anos 80 e 90, quando condições legislativas para a proliferação da espécie e incentivos às indústrias construiram a ideia de rentabilidade da indústria da pasta de papel. É um processo que pode ser feito - bem feito - com outras espécies mais interessantes.

Porém, não é feito. Não há vontade política para organizar o território?
Há pressupostos extremamente liberais de que as pessoas têm legitimidade para plantar o que quiserem nos seus teremos. Mas tentem cultivar cânhamo, marijuana, papoila para produzir heroína ou coca e verão que é proibido. A proibição e o favorecimento, são apenas processos administrativos. Falta vontade de aplicar um dos vários excelentes planos de organização territorial, com mapas pormenorizados que indicam as melhores espécies florestais e agro-alimentares a serem plantadas. Há um mapa excelente do Instituto Superior de Agronomia, da arquitecta paisagística Manuela Raposo de Magalhães, que diz, ao metro quadrado, as espécies que fazem sentido em cada terreno, conforme as encostas, vento, qualidade do solo e todas as condições naturais. Acrescenta-se a isto o facto de que o clima alterou-se desde há 20 anos e vai ser diferente no futuro. Temos de pensar a floresta para agora e para o futuro, para acabarmos com os incêndios catastróficos, a rentabilidade e as alterações climáticas. Se tivermos uma floresta estabilizada, conseguiremos ter menos fogo, baixar a temperatura, manter níveis de humidade e lutar contra as secas. Infelizmente, os PDM e a Rede Natura, que deveriam proteger o território e as populações que nele vivem, acabaram por ser usados para especular o valor dos terrenos. As celuloses dão eucaliptos para as pessoas plantarem. Dão! De graça. E facilitam aconselhamento técnico. Muitos proprietários são ausentes e vêem ali uma vantagem económica. Não é uma galinha dos ovos de ouro, é uma galinha de ovos de cobra. Se se cumprir a lei, se se limpar os terrenos, se se arrancarem e replantem novas árvores ao fim dos três cortes que o eucalipto permite, não se ganha qualquer dinheiro. Gasta-se mais. As pessoas não fazem nada disso e deixam o problema para quem vier depois. O êxodo rural e abandono de cerca de 20% do território obriga que haja, ou uma reorganização da propriedade pelo Estado ou alienando a privados. Infelizmente, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas não tem meios nem pessoas. O aparelho do Estado, na área do ambiente e floresta é uma vergonha total. Tem poucas pessoas com quase nenhuma capacidade de actuação e algumas serão incompetentes, e outras serão outras coisas, mas a verdade é que não há gente. O êxodo rural não foi apenas das pessoas, o Estado também abandonou o interior: não há hospitais, nem tribunais, nem esquadras, nem escolas... A ligação que estas pessoas têm com o Estado é apenas pagar impostos e como é já tudo online e automático, provavelmente, nem isso.     

E os incendiários? Há assim tantos ou o público confunde a expressão usada nos relatórios oficiais "fogo com origem na acção humana" com "fogo criminoso"?
A origem humana dos fogos são as indústrias, os caminhos-de-ferro e as faíscas, as estradas e os cigarros, as linhas de alta tensão que tocam em árvores, como terá acontecido em Pedrogão Grande. Toda a interacção humana que se cruze com o ambiente florestal, pode resultar em fogos acidentais e de "origem humana". Em Portugal, existe uma percentagem de fogo posto, mas está em linha com o resto da Europa. Não é o crime que explica a quantidade de incêndios que cá existem! Há três factores fundamentais, como refiro no meu livro: o clima em profunda mutação, mais quente e com mais condições para a biomassa arder, um nível elevadíssimo de abandono das propriedades, e as monoculturas de eucalipto e pinheiro. Imputamos responsabilidades a pessoas, quando a responsabilidade é sistémica. Não digo que não possam existir esquemas planeados para beneficiar interesses. Há, por exemplo, quem queira um terreno barato e, para o comprar, desvaloriza-o lançando fogo.

O que vai acontecer às plantações de eucalipto portuguesas quando, a médio prazo, as plantações que estão a ser feitas em África começarem a ser usadas como matéria-prima?
Vão desvalorizar ainda mais. Já se começa a perceber o desinteresse das empresas de celulose por Portugal. O que essas empresas estão a fazer em África é gravíssimo. Estão a arrancar floresta nativa para plantar eucaliptos. Vivi em Moçambique e vi-o acontecer em áreas gigantescas. A prazo iremos ficar afogados em eucalipto e não teremos para onde o escoar, porque o que vem de África é mais barato. Este processo acelera a desertificação a que o território nacional está a ser sujeito. Poderíamos ter uma floresta que nos ajudasse a contrariar esse problema. Seria preciso um enorme esforço humano, com presença muito frequente de pessoas… Deveria ser um desígnio nacional evitar a desertificação, mas está a acontecer o contrário.

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