João Camargo:
"Estado demitiu-se: 'não tenho quadros, nem orçamento para gerir a
floresta... que se lixe'"
Pinhais Interior
e de Leiria são bomba relógio
No seu livro
Portugal em Chamas, aborda a tendência para Portugal arder mais do que o resto
da Europa e o risco de considerar os incêndios de Verão coisas normais. A
fatalidade é agora normalidade?
O que distancia 2017 dos outros anos, é o facto
de terem morrido tantos portugueses nos incêndios. Em 2003 e 2005, as áreas
ardidas também foram grandes e morreram pessoas, mas nunca tinham sido tantas.
Foi uma falha no sistema de protecção dos cidadãos, aliada a fogos fora da
época. Em Junho, em Pedrogão Grande, e em Outubro, em várias zonas, entre elas
o Pinhal de Leiria. Isto significa que o modo como Estado planifica a protecção
de pessoas e das florestas não funciona. A época de incêndios deixou de ser os
três meses do pico do Verão e terá de ser muito mais alargada. A onda de calor
que aconteceu há poucos dias na Europa, ocorreu em Junho, não foi no pico do
Verão, onde seria mais normal verificar-se. Tendemos a habituar-nos à
anormalidade, como se ela fosse a normalidade, pois temos memória curta. Claro
que eventos traumáticos, com mais de uma centena de mortos, ajudam-nos a
esquecer mais devagar.
Não obstante,
essa pedagogia da catástrofe, após os discursos de boas intenções e de algumas
modificações legislativas, não se apercebe que haja acções determinantes no
terreno, especialmente, nas zonas afectadas.
Logo a seguir,
houve algum ímpeto e confrontação pública para mudar algumas coisas, mas,
depois, os mesmos mecanismos que nos levaram ao abandono das áreas florestais,
à situação de descontrolo total no ordenamento florestal, à proliferação de
espécies perigosas e inflamáveis em monoculturas, como o eucalipto e o
pinheiro, e aos incêndios descontrolados e mortais de 2017, contribuíram para
que nada se fizesse. São precisos milhares de vigilantes e guardas da natureza,
se se decidir reclamar as terras sem dono e expandir a área pública... e
Portugal é o País da Europa com menor área pública florestal. Na verdade, o
Estado demitiu-se. Disse: "não tenho quadros, nem orçamento para gerir a
floresta... que se lixe." E está-se a lixar. O Pinhal Interior e o Pinhal
de Leiria são uma bomba relógio. Vai voltar a acontecer grandes incêndios. Nos
próximos dez anos, basta a biomassa aumentar e, a seguir, vir um ano de seca, e
o cenário repete-se. Se a onda de calor que atingiu o centro da Europa, na
semana passada, aqui tivesse chegado, haveria as condições ideais para um
cenário igual ao de 2017.
Quais são os
mecanismos que refere?
São mecanismos
fortíssimos e planificados. Nada disto acontece por acaso. Estou a falar das
empresas produtoras de papel e celulose, como a Navigator ou a Altri, que têm
quadros que fazem, permanentemente lobby, e, outras vezes, estão no próprio
poder político. Os quadros da Navigator, da Altri e da indústria das celuloses
estão dentro do Governo, quer sendo ministros, secretários de Estado, chefes de
departamento,,,
Leia aqui a
primeira parte desta entrevista
“Temos de
planificar o País para uma escassez de alimento, como não vivemos há dois
séculos”
Mas o sector, em
2018, gerou lucros líquidos de 372 mil milhões de euros…
Falta subtrair a
estes lucros o custo para o País, suportados pelos contribuintes, com prevenção
e combate aos incêndios, protecção das populações e destruição de bens pessoais
e empresas? Falta. Este é um sector altamente lucrativo, mas as contas dessas
empresas são, como acontece com outros negócios, estritamente aquilo a que lhes
diz respeito internamente. Elas têm cerca de 300 mil hectares, com plantações
próprias, que, dizem, ardem menos do que as outras. E até é verdade, mas por um
motivo simples. Elas têm corpos profissionais de bombeiros-sapadores e
processos de limpeza permanentes nessas plantações. O problema? É que eles
abastecem-se não apenas dessas áreas próprias, mas também dos restantes 700 mil
hectares de eucalipto que estão plantados no resto do território e não têm
quaisquer gestão ou limpeza.
Na semana
passada, o jornal Público noticiou que um quarto das árvores em Portugal são
eucaliptos, porém, quem conduzir pelo centro e norte do País fica com a
sensação de que será muito mais. É só uma sensação ou os números estão
correctos?
Falei com algumas
pessoas que me disseram que esse inventário estava bastante mal feito. Mas
atenção, 25% da floresta nacional ser eucalipto é elevadíssimo.
Proporcionalmente, Portugal tem a maior área de eucalipto do mundo. Mais do que
a Austrália, de onde a árvore é nativa. Parece que a nossa floresta autóctone é
só eucalipto. Basta conduzir pelas estradas e ficarmos com a impressão que
estamos na Austrália ou Tasmânia.
Mas o eucalipto
não é uma árvore “má”. Cresce rápido, produz oxigénio e matéria-prima
importante, e dá lucro fácil.
Em si, não tem
nada de mal. Porém, é altamente competitiva e exclui com facilidade a
existência de outras plantas à sua volta, especialmente a floresta autóctone
resiliente ao fogo. Esses dois factos, associados ao clima em mutação para condições
extremas, são muito desvantajosos para Portugal. O coberto florestal, para ser
estável, precisa de uma combinação de várias especiais vegetais e de
micro-organismos. E o eucalipto garante que isso não existe. É um deserto
verde. As bactérias que aqui existem no solo têm uma enorme dificuldade em
digerir as suas folhas e casca, que caiem ao chão, promovendo a acumulação de
carga térmica, pronta a arder. Numa floresta - o eucaliptal e o pinhal são
plantações artificiais - há um manto de terra negra, vivo, com húmus, mosquitos
e plantas delicadas, que não existe com o eucalipto, que produz óleos
inflamáveis e tóxicos, que dificultam a degradação das folhas e cascas
aumentando a sua perigosidade no caso de incêndio. É uma planta que evoluiu com
o fogo e beneficia dele. As chamas raramente o matam e após um incêndio,
elimina a concorrência e rebenta com vigor. Além disso, destrói a água que há
no solo. Não pode crescer rapidamente, se não for voraz a retirar nutrientes e
água do chão. Muitos dos nossos solos são muito pobres e, mesmo assim, o
eucalipto consegue proliferar neles, e retira a água do sistema e baixa os
níveis freáticos. Neste momento, é impossível de erradicar de Portugal. Além de
estar a crescer, espontaneamente, em muitos sítios, é preciso arrancá-lo em
profundidade com máquinas pesadas. É um resistente e sobrevivente. É uma árvore
admirável.
O presidente da
Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal, Vítor Poças,
afirma que metade do eucalipto existente em Portugal seria suficiente, se fosse
apurado, e plantado em áreas que lhe são propícias. Por que se continua, neste
momento ilegalmente, a plantá-lo?
As multinacionais
do sector vendem papel para o mundo inteiro. Portugal é um sítio perto do
centro da Europa, onde os terrenos valem pouco, paga-se pouco pelas árvores,
não se paga nada pela destruição causada e conseguimos mandar papel baratinho
para Europa toda. A Navigator é uma grande multinacional portuguesa? É. Tem
Governos sucessivos que lhe estendem a passadeira para usufruir de mais de 10%
do território nacional. Não paga nenhuma das consequências ambientais do que
faz. Só tem benefícios. Agora, em vez do eucalipto, anda-se a plantar
oliveiras… Tudo o que sejam monoculturas de espécies são abortos ambientais e
económicos no longo prazo.
Espécies como o
sobreiro seriam mais interessantes?
Coexiste com
outras espécies, dentro de um ecossistema complexo que se chama montado.
Seguramente, o sobreiro é muito mais rentável, por árvore, do que o eucalipto.
Ambientalmente e em termos de estabilidade biológica dos terrenos, é
incomparavelmente mais favorável para Portugal. É resistente ao fogo, mas
cresce mais lentamente. Temos de pensar o que queremos. A rentabilidade
económica é um processo mediado pelo Estado e são os Estados que criam as
condições para os mercados funcionarem. Muito do valor dado ao eucalipto veio
de incentivos públicos, nos anos 80 e 90, quando condições legislativas para a
proliferação da espécie e incentivos às indústrias construiram a ideia de
rentabilidade da indústria da pasta de papel. É um processo que pode ser feito
- bem feito - com outras espécies mais interessantes.
Porém, não é
feito. Não há vontade política para organizar o território?
Há pressupostos
extremamente liberais de que as pessoas têm legitimidade para plantar o que
quiserem nos seus teremos. Mas tentem cultivar cânhamo, marijuana, papoila para
produzir heroína ou coca e verão que é proibido. A proibição e o favorecimento,
são apenas processos administrativos. Falta vontade de aplicar um dos vários
excelentes planos de organização territorial, com mapas pormenorizados que
indicam as melhores espécies florestais e agro-alimentares a serem plantadas.
Há um mapa excelente do Instituto Superior de Agronomia, da arquitecta
paisagística Manuela Raposo de Magalhães, que diz, ao metro quadrado, as
espécies que fazem sentido em cada terreno, conforme as encostas, vento,
qualidade do solo e todas as condições naturais. Acrescenta-se a isto o facto
de que o clima alterou-se desde há 20 anos e vai ser diferente no futuro. Temos
de pensar a floresta para agora e para o futuro, para acabarmos com os
incêndios catastróficos, a rentabilidade e as alterações climáticas. Se
tivermos uma floresta estabilizada, conseguiremos ter menos fogo, baixar a temperatura,
manter níveis de humidade e lutar contra as secas. Infelizmente, os PDM e a
Rede Natura, que deveriam proteger o território e as populações que nele vivem,
acabaram por ser usados para especular o valor dos terrenos. As celuloses dão
eucaliptos para as pessoas plantarem. Dão! De graça. E facilitam aconselhamento
técnico. Muitos proprietários são ausentes e vêem ali uma vantagem económica.
Não é uma galinha dos ovos de ouro, é uma galinha de ovos de cobra. Se se
cumprir a lei, se se limpar os terrenos, se se arrancarem e replantem novas
árvores ao fim dos três cortes que o eucalipto permite, não se ganha qualquer
dinheiro. Gasta-se mais. As pessoas não fazem nada disso e deixam o problema
para quem vier depois. O êxodo rural e abandono de cerca de 20% do território
obriga que haja, ou uma reorganização da propriedade pelo Estado ou alienando a
privados. Infelizmente, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas
não tem meios nem pessoas. O aparelho do Estado, na área do ambiente e floresta
é uma vergonha total. Tem poucas pessoas com quase nenhuma capacidade de
actuação e algumas serão incompetentes, e outras serão outras coisas, mas a
verdade é que não há gente. O êxodo rural não foi apenas das pessoas, o Estado
também abandonou o interior: não há hospitais, nem tribunais, nem esquadras,
nem escolas... A ligação que estas pessoas têm com o Estado é apenas pagar
impostos e como é já tudo online e automático, provavelmente, nem isso.
E os
incendiários? Há assim tantos ou o público confunde a expressão usada nos
relatórios oficiais "fogo com origem na acção humana" com "fogo
criminoso"?
A origem humana
dos fogos são as indústrias, os caminhos-de-ferro e as faíscas, as estradas e
os cigarros, as linhas de alta tensão que tocam em árvores, como terá
acontecido em Pedrogão Grande. Toda a interacção humana que se cruze com o
ambiente florestal, pode resultar em fogos acidentais e de "origem
humana". Em Portugal, existe uma percentagem de fogo posto, mas está em
linha com o resto da Europa. Não é o crime que explica a quantidade de
incêndios que cá existem! Há três factores fundamentais, como refiro no meu
livro: o clima em profunda mutação, mais quente e com mais condições para a
biomassa arder, um nível elevadíssimo de abandono das propriedades, e as
monoculturas de eucalipto e pinheiro. Imputamos responsabilidades a pessoas,
quando a responsabilidade é sistémica. Não digo que não possam existir esquemas
planeados para beneficiar interesses. Há, por exemplo, quem queira um terreno
barato e, para o comprar, desvaloriza-o lançando fogo.
O que vai
acontecer às plantações de eucalipto portuguesas quando, a médio prazo, as
plantações que estão a ser feitas em África começarem a ser usadas como
matéria-prima?
Vão desvalorizar
ainda mais. Já se começa a perceber o desinteresse das empresas de celulose por
Portugal. O que essas empresas estão a fazer em África é gravíssimo. Estão a
arrancar floresta nativa para plantar eucaliptos. Vivi em Moçambique e vi-o
acontecer em áreas gigantescas. A prazo iremos ficar afogados em eucalipto e
não teremos para onde o escoar, porque o que vem de África é mais barato. Este
processo acelera a desertificação a que o território nacional está a ser
sujeito. Poderíamos ter uma floresta que nos ajudasse a contrariar esse problema.
Seria preciso um enorme esforço humano, com presença muito frequente de
pessoas… Deveria ser um desígnio nacional evitar a desertificação, mas está a
acontecer o contrário.
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