Gente que não sabe em que acreditar
Quando deixamos de ser capazes de hierarquizar práticas
culturais para não ofenderemos os outros, é porque estamos em vias de perder
qualquer orientação ética e moral.
João Miguel Tavares
18 de Julho de 2019, 6:46
Boa parte dos leitores do PÚBLICO acha que não existem
culturas superiores a outras e ficou muito indignada com o meu texto de
terça-feira. Muitos concluíram mesmo (longo bocejo) que eu era xenófobo e
racista, apesar de ter dito claramente no artigo que “a superioridade cultural
de uma dada sociedade não tem relação com a superioridade intelectual dos
indivíduos que a compõem”, porque a diferença não está no Q.I. de noruegueses e
sudaneses, mas na qualidade das instituições na Noruega e no Sudão. Como agora
o acesso aos meus artigos é pago, admito que muitas pessoas não tenham passado
do primeiro parágrafo. Para os que passaram do primeiro parágrafo, e ainda
assim se indignaram, proponho um pequeno teste de lógica, para verificar a
força das suas convicções.
No meu artigo defini cultura como “o conjunto de valores,
leis, crenças ou costumes que caracteriza uma determinada sociedade”.
Estabeleci diferenças culturais não só entre a Europa e a África, mas também
entre os países europeus, porque Portugal não é com certeza igual à Alemanha. E
ao utilizar a palavra “superior”, aquilo que fiz – um atrevimento, nos dias que
correm – foi dizer: não sou relativista; considero que há hierarquias; nem
todas as culturas se equivalem. Muita gente respondeu: nem pensar; isso é uma
visão etnocêntrica; está a ignorar a riqueza de outras culturas, que considera
inferiores.
Reparem: eu não estou a ignorar coisa alguma. Da mesma forma
que George Harrison pediu a cítara a Ravi Shankar para embelezar a música dos
Beatles, a diversidade cultural é uma enorme riqueza. Mas o facto de ser uma
riqueza não significa que não possamos estabelecer hierarquias, porque, de
facto, a literatura zulu é inferior à literatura britânica. (Já agora: a
literatura portuguesa também é inferior à literatura britânica, e juro que não
quero com isso dizer que Os Lusíadas devam ser trocados pelo Romeu e Julieta.)
O caso agrava-se quando deixamos de falar de cultura no
sentido estrito, e passamos a falar de cultura no sentido lato – ou seja,
envolvendo instituições, sistemas políticos, direitos humanos. Neste caso, ver
tanta gente defender que não há qualquer hierarquia de valores, crenças ou
costumes entre culturas, não só é chocante, como demonstra bem a desorientação
generalizada que vai por aí.
Proponho que verifiquemos a solidez dessa bela tese com o
meu pequeno teste de lógica, a partir de um exemplo extremo – a cultura
fascista. Como sabem, o fascismo, como todos os sistemas totalitários, tinha
leis e valores próprios e a ambição de intervir de cima a baixo no tecido
social. Tinha uma arquitectura, um cinema, uma estética. Se todas as culturas
se equivalem, caros leitores indignados, posso concluir que para vocês a
cultura de extrema-direita é equivalente à cultura demoliberal? Que é apenas
uma questão de gosto, de perspectiva e de etnocentrismo?
“Ah, não, isso é completamente diferente!”, ouço dizer.
Talvez seja – mas só se a lógica for uma batata. Ouçam: eu sei que as intenções
de quem me atacou são boazinhas. Recusam a expressão “culturas superiores”
porque ela pode confundir-se com a ideia de que há pessoas superiores a outras.
Caros leitores indignados: não sejam básicos. Não foi isso que disse, nem é
nisso que acredito. Mas, de facto, convém acreditar nalguma coisa. Quando
deixamos de ser capazes de hierarquizar práticas culturais para não ofenderemos
os outros, é porque estamos em vias de perder qualquer orientação ética e
moral.
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