A máquina de inventar racistas
Rui Ramos
9/7/2019, 1:32
O pior que nos poderia acontecer era deixarmos de ser portugueses,
para passarmos a ser “brancos”, “negros”, ou “ciganos”. Não contem comigo para
macaquear o pior que tem a sociedade americana.
Fui aluno de Maria de Fátima Bonifácio, admiro a sua obra
como historiadora, e, tão ou mais importante do que isso, sou seu amigo. Mas
não foi só por essas razões, que ficam declaradas para ninguém ter o trabalho
de as lembrar, que me repugnou a canalhice das calúnias e das ameaças com que,
a pretexto de um artigo de jornal, a gente do costume a pretendeu cercar durante
o fim de semana. Nesse ataque, houve muito da precipitação de alcateia que
define as redes sociais. Mas houve também a inspiração de um dos mais
asquerosos projectos políticos do nosso tempo.
Porque a má fé e a estupidez dominam este debate, vou tentar
ser muito claro.
Fátima Bonifácio está certa na rejeição do sistema de quotas
étnicas. Mas não evitou alguns equívocos. Por exemplo, o de aparentemente
sugerir – se percebi bem — que o problema da integração dos ciganos ou dos
chamados “afrodescendentes” se deve a serem estranhos à sociedade portuguesa, à
sua história ou aos seus valores. Ora, os ciganos estão em Portugal há mais de
meio milénio. Falam a língua e têm a religião da maioria da população. São
cidadãos portugueses, e tão portugueses como quaisquer de nós. Os
“afrodescendentes” não são um grupo homogéneo, mas, na sua maioria, são
indivíduos originários de antigas colónias europeias. Representam uma das mais
intensas Cristandades dos dias de hoje, e sempre se exaltaram com as ideologias
ocidentais (a Revolução Francesa também aconteceu no Haiti).
Nada disto, porém, faz da autora uma “racista” e muito menos
do seu artigo um “manifesto racista”. Vamos entender-nos: uma coisa são
preconceitos, ou desconfianças derivadas de certos comportamentos – se isso
fosse racismo, então toda gente, em todo o mundo, foi, é e será sempre racista;
outra coisa são instituições e doutrinas que, com fins políticos, visam a
classificação e discriminação das
pessoas como membros de “raças”, e nesse sentido, nem toda a gente foi,
é ou será racista, e é aí que deve assentar a expectativa de que a humanidade
resistirá a propostas para usar características “étnicas” com fins políticos.
A esquerda radical confunde as duas coisas, para melhor
esconder que quer praticar uma delas. Tal como sempre precisou de fascistas,
precisa agora de racistas. Precisou de fascistas, porque se toda a gente que
não pensa como Catarina Martins for fascista, está legitimado o uso da força
para perseguir e calar quem não pensa como Catarina Martins. E precisa agora de
racistas, porque só havendo muitos racistas é que pode justificar o sórdido
projecto com que substituiu a “luta de classes”: usar cinicamente as migrações
para segmentar as sociedades ocidentais em “raças” mutuamente hostis. A pretexto da causa da “integração” e da
denúncia do “racismo”, o objectivo desta esquerda que trocou Marx por Fanon é
tentar reduzir certas pessoas a membros de “minorias”, e estas “minorias” a
meros colectivos identitários de “vítimas”, dependentes do Estado e controlados
por demagogos.
Estou a dizer que em Portugal, ciganos e migrantes não são
frequentemente pobres e marginalizados? Não. Mas pergunto: são os únicos pobres
e marginalizados? Não há pobres e marginalizados entre os outros portugueses? E
se são pobres e marginalizados, isso deve-se a “racismo”? Não tem nada a ver,
no caso dos ciganos, com uma velha cultura de nomadismo? Não tem nada a ver, no
caso dos migrantes, com o facto de serem trabalhadores pouco qualificados
chegados recentemente (os primeiros cabo-verdianos desembarcaram há menos de 50
anos)?
Estou a dizer que não merecem nenhum cuidado? Não. Mas a
ciganos e a migrantes falta sobretudo o que falta aos outros portugueses
pobres: uma economia próspera e aberta, onde todos – e não apenas os clientes
do poder — sintam que vale a pena trabalhar, poupar e investir; uma escola
exigente, com os devidos apoios sociais, que compense as desvantagens e não que
as agrave, em nome da “diversidade”; serviços públicos efectivos, que não sejam
sacrificados ao emprego de clientelas partidárias; uma lei que seja igual para
todos, e que tolere diferentes culturas, mas não comportamentos contrários à
coexistência pacífica dos cidadãos. O que ciganos e migrantes não precisam –
nem eles nem ninguém — é de serem metidos em guetos legais e estigmatizados
pela dependência do poder político.
O pior que nos poderia acontecer em Portugal era deixarmos
de ser portugueses, para passarmos a ser “brancos”, “negros”, ou “ciganos”. Não
contem comigo para macaquear o pior que tem a sociedade americana. Eu não me
identifico nem nunca me identificarei como “branco”. Sou português como
Eusébio, um dos nossos maiores futebolistas, ou como Marcelino da Mata, um dos
nossos militares mais condecorados. É do país deles que eu quero ser mais um
cidadão, e não dessa caricatura do Alabama dos anos 50 a que a extrema-esquerda
convertida ao racialismo gostaria de reduzir Portugal.
Maria de Fátima Bonifácio e a cristandade
Afirma que nem africanos, nem ciganos, “fazem parte de uma
entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade”.
Não só isso é factualmente errada, como a própria história da cristandade é,
desde a sua fundação, baseada no universalismo e no desejo de abertura a todos.
João Miguel Tavares
9 de Julho de 2019, 6:13
É sempre uma chatice quando pessoas de quem gostamos
escrevem textos de que não gostamos, e é ainda uma chatice maior quando nos
sentimos moral e profissionalmente obrigados a comentá-los em público. Se este
meu artigo sair mais coxo do que é habitual dêem-me o desconto: eu conheço,
gosto e admiro intelectualmente Maria de Fátima Bonifácio.
Infelizmente, não gosto nem um bocadinho do artigo “Podemos?
Não, não podemos”, não reconheço nele a mulher que admiro, nem percebo como
pôde ele ser intelectualmente sustentado com tantas generalizações de cair o
queixo – e que, sim (custa-me muito dizer isto) entram mesmo no campo do
racismo.
Porque é que não fico calado, então, e escrevo sobre outra
coisa qualquer? Porque sinto que não devo, nem quero participar numa jogatana
esquerda-direita nesta matéria, como alguns já se preparam para fazer, com a
claque pró-Bonifácio a defender que ela disse grandes verdades que ninguém tem
a coragem de verbalizar, e a claque anti-Bonifácio a garantir que o seu artigo
é incitação ao ódio e merece perseguição criminal.
Seria fácil para mim ignorar o texto original e atirar-me às
reacções descabeladas que já ouvi por aí (José Eduardo Agualusa, homem
habitualmente ponderado, escreveu que Bonifácio e o PÚBLICO deveriam responder
“perante a justiça portuguesa”, por amor de Deus), mas sendo uma estratégia
fácil também seria cínica, até por causa de uma palavra que foi invocada e me é
muito cara: cristandade.
Maria de Fátima Bonifácio afirma no seu artigo que nem
africanos, nem ciganos, “fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural
milenária que dá pelo nome de Cristandade”. Não só isso é factualmente errado
(estima-se que 40% dos africanos sejam cristãos e os ciganos tendem a adoptar a
religião dos países onde se instalam), como a própria história da cristandade
é, desde a sua fundação, baseada no universalismo e no desejo de abertura a
todos, sejam eles brancos, amarelos ou vermelhos, lusitanos, africanos ou
ciganos.
A discussão entre Pedro e Paulo sobre se os gentios, por não
serem circuncisados, poderiam ser cristãos, foi ganha por Paulo no século I –
ou seja, quase dois mil anos atrás. Faz algum sentido retomar essa discussão
hoje em dia, assumindo que há uns que podem partilhar os valores da cristandade
(os circuncisados do século XXI), e outros, coitados, que não podem?
Tal como Maria de Fátima Bonifácio, não acredito que todas
as culturas se equivalham. Acredito no progresso; acredito que há culturas
superiores a outras; acredito que o multiculturalismo assolapado desembocou
numa guetização nefasta em certos países ocidentais; acredito que a cultura que
produziu os Direitos Universais é infinitamente superior ao wahhabismo ou às
tradições ancestrais de mutilação genital feminina; e acredito que existe
demasiada complacência em relação ao tratamento das mulheres nalgumas
comunidades.
Só que pular da crítica a uma determinada cultura para a
crítica de todos os indivíduos que a integram é um salto inaceitável,
precisamente por ir contra os valores que Maria de Fátima Bonifácio quer
defender. A razão é simples: não é possível acreditar numa matriz cultural que
diz que podes ser salvo até ao último suspiro (Lucas 23, 39-43) e depois pregar
que há grupos de gente condenada a ficar às portas da civilização que tanto
consideras. Isso seria, mais uma vez, querer proteger a cristandade traindo os
melhores valores que ela tem para nos oferecer.
Jornalista
Sem comentários:
Enviar um comentário