terça-feira, 9 de julho de 2019

A Polémica à volta de Maria de Fátima Bonifácio (2) / A máquina de inventar racistas / Maria de Fátima Bonifácio e a cristandade



A máquina de inventar racistas
Rui Ramos
9/7/2019, 1:32

O pior que nos poderia acontecer era deixarmos de ser portugueses, para passarmos a ser “brancos”, “negros”, ou “ciganos”. Não contem comigo para macaquear o pior que tem a sociedade americana.

Fui aluno de Maria de Fátima Bonifácio, admiro a sua obra como historiadora, e, tão ou mais importante do que isso, sou seu amigo. Mas não foi só por essas razões, que ficam declaradas para ninguém ter o trabalho de as lembrar, que me repugnou a canalhice das calúnias e das ameaças com que, a pretexto de um artigo de jornal, a gente do costume a pretendeu cercar durante o fim de semana. Nesse ataque, houve muito da precipitação de alcateia que define as redes sociais. Mas houve também a inspiração de um dos mais asquerosos projectos políticos do nosso tempo.

Porque a má fé e a estupidez dominam este debate, vou tentar ser muito claro.

Fátima Bonifácio está certa na rejeição do sistema de quotas étnicas. Mas não evitou alguns equívocos. Por exemplo, o de aparentemente sugerir – se percebi bem — que o problema da integração dos ciganos ou dos chamados “afrodescendentes” se deve a serem estranhos à sociedade portuguesa, à sua história ou aos seus valores. Ora, os ciganos estão em Portugal há mais de meio milénio. Falam a língua e têm a religião da maioria da população. São cidadãos portugueses, e tão portugueses como quaisquer de nós. Os “afrodescendentes” não são um grupo homogéneo, mas, na sua maioria, são indivíduos originários de antigas colónias europeias. Representam uma das mais intensas Cristandades dos dias de hoje, e sempre se exaltaram com as ideologias ocidentais (a Revolução Francesa também aconteceu no Haiti).

Nada disto, porém, faz da autora uma “racista” e muito menos do seu artigo um “manifesto racista”. Vamos entender-nos: uma coisa são preconceitos, ou desconfianças derivadas de certos comportamentos – se isso fosse racismo, então toda gente, em todo o mundo, foi, é e será sempre racista; outra coisa são instituições e doutrinas que, com fins políticos, visam a classificação e discriminação das  pessoas como membros de “raças”, e nesse sentido, nem toda a gente foi, é ou será racista, e é aí que deve assentar a expectativa de que a humanidade resistirá a propostas para usar características “étnicas” com fins políticos.

A esquerda radical confunde as duas coisas, para melhor esconder que quer praticar uma delas. Tal como sempre precisou de fascistas, precisa agora de racistas. Precisou de fascistas, porque se toda a gente que não pensa como Catarina Martins for fascista, está legitimado o uso da força para perseguir e calar quem não pensa como Catarina Martins. E precisa agora de racistas, porque só havendo muitos racistas é que pode justificar o sórdido projecto com que substituiu a “luta de classes”: usar cinicamente as migrações para segmentar as sociedades ocidentais em “raças” mutuamente hostis.  A pretexto da causa da “integração” e da denúncia do “racismo”, o objectivo desta esquerda que trocou Marx por Fanon é tentar reduzir certas pessoas a membros de “minorias”, e estas “minorias” a meros colectivos identitários de “vítimas”, dependentes do Estado e controlados por demagogos.

Estou a dizer que em Portugal, ciganos e migrantes não são frequentemente pobres e marginalizados? Não. Mas pergunto: são os únicos pobres e marginalizados? Não há pobres e marginalizados entre os outros portugueses? E se são pobres e marginalizados, isso deve-se a “racismo”? Não tem nada a ver, no caso dos ciganos, com uma velha cultura de nomadismo? Não tem nada a ver, no caso dos migrantes, com o facto de serem trabalhadores pouco qualificados chegados recentemente (os primeiros cabo-verdianos desembarcaram há menos de 50 anos)?

Estou a dizer que não merecem nenhum cuidado? Não. Mas a ciganos e a migrantes falta sobretudo o que falta aos outros portugueses pobres: uma economia próspera e aberta, onde todos – e não apenas os clientes do poder — sintam que vale a pena trabalhar, poupar e investir; uma escola exigente, com os devidos apoios sociais, que compense as desvantagens e não que as agrave, em nome da “diversidade”; serviços públicos efectivos, que não sejam sacrificados ao emprego de clientelas partidárias; uma lei que seja igual para todos, e que tolere diferentes culturas, mas não comportamentos contrários à coexistência pacífica dos cidadãos. O que ciganos e migrantes não precisam – nem eles nem ninguém — é de serem metidos em guetos legais e estigmatizados pela dependência do poder político.

O pior que nos poderia acontecer em Portugal era deixarmos de ser portugueses, para passarmos a ser “brancos”, “negros”, ou “ciganos”. Não contem comigo para macaquear o pior que tem a sociedade americana. Eu não me identifico nem nunca me identificarei como “branco”. Sou português como Eusébio, um dos nossos maiores futebolistas, ou como Marcelino da Mata, um dos nossos militares mais condecorados. É do país deles que eu quero ser mais um cidadão, e não dessa caricatura do Alabama dos anos 50 a que a extrema-esquerda convertida ao racialismo gostaria de reduzir Portugal.




Maria de Fátima Bonifácio e a cristandade

Afirma que nem africanos, nem ciganos, “fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade”. Não só isso é factualmente errada, como a própria história da cristandade é, desde a sua fundação, baseada no universalismo e no desejo de abertura a todos.

João Miguel Tavares
9 de Julho de 2019, 6:13

É sempre uma chatice quando pessoas de quem gostamos escrevem textos de que não gostamos, e é ainda uma chatice maior quando nos sentimos moral e profissionalmente obrigados a comentá-los em público. Se este meu artigo sair mais coxo do que é habitual dêem-me o desconto: eu conheço, gosto e admiro intelectualmente Maria de Fátima Bonifácio.

Infelizmente, não gosto nem um bocadinho do artigo “Podemos? Não, não podemos”, não reconheço nele a mulher que admiro, nem percebo como pôde ele ser intelectualmente sustentado com tantas generalizações de cair o queixo – e que, sim (custa-me muito dizer isto) entram mesmo no campo do racismo.

Porque é que não fico calado, então, e escrevo sobre outra coisa qualquer? Porque sinto que não devo, nem quero participar numa jogatana esquerda-direita nesta matéria, como alguns já se preparam para fazer, com a claque pró-Bonifácio a defender que ela disse grandes verdades que ninguém tem a coragem de verbalizar, e a claque anti-Bonifácio a garantir que o seu artigo é incitação ao ódio e merece perseguição criminal.

Seria fácil para mim ignorar o texto original e atirar-me às reacções descabeladas que já ouvi por aí (José Eduardo Agualusa, homem habitualmente ponderado, escreveu que Bonifácio e o PÚBLICO deveriam responder “perante a justiça portuguesa”, por amor de Deus), mas sendo uma estratégia fácil também seria cínica, até por causa de uma palavra que foi invocada e me é muito cara: cristandade.

Maria de Fátima Bonifácio afirma no seu artigo que nem africanos, nem ciganos, “fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade”. Não só isso é factualmente errado (estima-se que 40% dos africanos sejam cristãos e os ciganos tendem a adoptar a religião dos países onde se instalam), como a própria história da cristandade é, desde a sua fundação, baseada no universalismo e no desejo de abertura a todos, sejam eles brancos, amarelos ou vermelhos, lusitanos, africanos ou ciganos.

A discussão entre Pedro e Paulo sobre se os gentios, por não serem circuncisados, poderiam ser cristãos, foi ganha por Paulo no século I – ou seja, quase dois mil anos atrás. Faz algum sentido retomar essa discussão hoje em dia, assumindo que há uns que podem partilhar os valores da cristandade (os circuncisados do século XXI), e outros, coitados, que não podem?

Tal como Maria de Fátima Bonifácio, não acredito que todas as culturas se equivalham. Acredito no progresso; acredito que há culturas superiores a outras; acredito que o multiculturalismo assolapado desembocou numa guetização nefasta em certos países ocidentais; acredito que a cultura que produziu os Direitos Universais é infinitamente superior ao wahhabismo ou às tradições ancestrais de mutilação genital feminina; e acredito que existe demasiada complacência em relação ao tratamento das mulheres nalgumas comunidades.

Só que pular da crítica a uma determinada cultura para a crítica de todos os indivíduos que a integram é um salto inaceitável, precisamente por ir contra os valores que Maria de Fátima Bonifácio quer defender. A razão é simples: não é possível acreditar numa matriz cultural que diz que podes ser salvo até ao último suspiro (Lucas 23, 39-43) e depois pregar que há grupos de gente condenada a ficar às portas da civilização que tanto consideras. Isso seria, mais uma vez, querer proteger a cristandade traindo os melhores valores que ela tem para nos oferecer.

Jornalista

Sem comentários: