Manuel Carvalho
Editorial
A propósito do texto de Maria de Fátima Bonifácio
Equilibrar a recusa da censura com a abertura das nossas
páginas a opiniões que não partilhamos é uma tarefa sempre difícil
Manuel Carvalho
6 de Julho de 2019, 20:46
“Indigno”. “Vergonhoso”. “Insultuoso”. Durante este sábado,
muitos leitores fizeram questão de protestar contra a publicação do artigo da
historiadora Maria de Fátima Bonifácio com o título “Podemos? Não, não
podemos”. Vários jornalistas do PÚBLICO e os membros eleitos do Conselho de
Redacção juntaram-se a esse protesto, alegando que em causa está uma grave
ofensa aos valores matriciais do jornal. O PÚBLICO orgulha-se da sua tradição
de estar na linha da frente do combate ao racismo ou a qualquer tipo de discriminação
baseada na cor da pele, na sexualidade ou no género. Torna-se por isso
imperativo explicar o processo e as razões que levaram à publicação. E dar
conta das consequências que esta opção tem de merecer para o futuro.
O texto em causa está, no mínimo, nos limites do discurso de
ódio, faz generalizações que põem em causa o combate à discriminação racial,
usa linguagem insultuosa para diferentes minorias e coloca ênfase numa radical
oposição civilizacional entre os “nós” europeus e os “outros”, africanos ou
“nómadas”. Estão, por isso em causa, ideias, apologias e valores que o PÚBLICO
contraria todos os dias, seja pelo trabalho dos seus jornalistas, seja pela
abertura sem reservas que concede aos cidadãos de minorias visadas no artigo.
Ainda assim, é consensual a ideia de que o PÚBLICO é um
espaço plural de opinião onde com muita frequência se publicam textos que estão
longe dos valores que defendemos. No caso em concreto estava em causa um texto
de uma intelectual consagrada, cujas teses rejeitamos mas julgámos caberem nos
limites da liberdade de expressão. Na nossa interpretação, a proximidade a
teses racistas e xenófobas era evidente, mesmo que não se fizesse a defesa da
segregação. O recurso ao discurso de ódio, de uns contra outros, estava na
fronteira do admissível, mesmo sem que houvesse incitamento à sua prática.
O uso destes argumentos para criticar uma intenção
legislativa sobre quotas raciais no Parlamento ou no Ensino Superior anunciada
por um deputado socialista induziu a apreciação das suas teses sobre ciganos ou
africanos como utensílios de suporte a um legítimo protesto político. Não
construíam o ângulo essencial do texto, apesar da proliferação de exemplos.
Mesmo que essas teses hostilizassem a nossa linha editorial, considerámos que
esses termos, ideias e valores eram aceitáveis no quadro da liberdade de
expressão que assiste a uma colunista que é colaboradora regular do jornal e
intelectual prestigiada na sua área científica.
Subestimámos assim o teor e tom dos argumentos em favor da
crítica que a autora faz à possível adopção de quotas raciais. Considerámos que
o direito a ofender, aceitável na interpretação genérica que fazemos da
liberdade de expressão, justificava a publicação, mesmo sabendo que seria
polémica e susceptível de levar muitos dos nossos leitores a questionar a nossa
linha editorial ou o grau de tolerância que concedemos a ideias e valores que
rejeitamos na nossa prática quotidiana. Reconhecemos que as expressões
discriminatórias usadas remeteram a questão das quotas para a irrelevância. Ou
seja, cometemos um erro de análise e de avaliação.
Defendemos uma liberdade ampla de expressão dos nossos
colunistas e de todos os que recorrem ao PÚBLICO para manifestar as suas
ideias, visões, propostas ou críticas. Essa é uma marca de água do jornal e
assim continuará a ser. Mas as reacções e episódios associados a esta polémica
obrigam-nos a reforçar os critérios de exigência e selectividade.
Principalmente quando em causa estiverem questões sensíveis como as que se
associam à discriminação. Um jornal como o PÚBLICO é um espaço de convivência
baseado em valores. A Direcção Editorial tem o dever de proteger esse espaço,
evitando que esses valores sejam postos em causa. Lamentavelmente, não foi isso
que aconteceu.
Se há matéria na qual o PÚBLICO não pode deixar mensagens
duvidosas aos seus leitores (e a todos os que o fazem diariamente) é sobre o
lugar onde se encontra no combate ao racismo e à xenofobia. Aqui deixamos esta
explicação para sublinhar sem margem para dúvidas esse nosso compromisso.
Podemos? Não, não podemos
As quotas para negros e ciganos não passam de uma farsa
multicultural igualitarista. Não, não podemos integrar por decreto.
Maria de Fátima Bonifácio
6 de Julho de 2019, 6:15
Segundo o PÚBLICO de 29 de Junho, o “PS quer discriminação
positiva para as minorias étnico-raciais”. Em causa estão sobretudo africanos e
ciganos, independentemente de terem nascido em Portugal ou não. Estas minorias
excluídas da Cidade, a sua suposta ou real marginalização, constitui a prova de
que Portugal “continua a ter um problema de racismo e xenofobia”,
independentemente do efeito – que de resto não sofremos – do drama dos
refugiados, com o seu pico mais trágico em 2015.
O entrevistado pelo PÚBLICO, Rui Pena Pires, sociólogo e
secretário nacional do Partido Socialista, lamenta “a falta de diversidade no
espaço público”, que continua atulhado de homens brancos e mulheres brancas. E,
em conformidade com a ideia, grata à esquerda, de que a sociedade e respectiva
mentalidade podem ser mudadas por decreto, Pena Pires saúda a possibilidade de
que o problema da exclusão de negros e ciganos do espaço público se resolva, ou
comece a resolver, estabelecendo quotas para deputados coloridos, de forma a conferir
à futura Assembleia da República uma dimensão representativa mais conforme com
a composição étnico-racial da sociedade portuguesa. Se as quotas tinham
impulsionado a emancipação e igualização de direitos das mulheres, se lhes
haviam aberto o espaço público, porque não aplicar a mesma receita às minorias
étnicas?
A comparação com a igualdade ou paridade de género é
inteiramente falaciosa. As mulheres, que sem dúvida têm nos últimos anos
adquirido uma visibilidade sem paralelo com o passado, partilham, de um modo
geral, as mesmas crenças religiosas e os mesmos valores morais: fazem parte de
uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de
Cristandade. Ora isto não se aplica a africanos nem a ciganos. Nem uns nem
outros descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande
Revolução Francesa de 1789. Uns e outros possuem os seus códigos de honra, as
suas crenças, cultos e liturgias próprios.
Os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis: organizados em
famílias, clãs e tribos, conservam os mesmos hábitos de vida e os mesmos
valores de quando eram nómadas. E mais: eles mesmos recusam terminantemente a
integração. É só ver a quantidade de meninas ciganas que são forçadas pelos
pais a abandonar a escola a partir do momento em que atingem a puberdade; é só
ver a quantidade de meninas e meninos ciganos que abandonam os estudos, apesar
dos subsídios estatais de que os pais continuam a gozar para financiar (ou
premiar!) a ida dos filhos às aulas; é só ver o modo disfuncional como se comportam
nos supermercados; é só ver como desrespeitam as mais elementares regras de
civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em
geral. Os ciganos não praticam a bárbara excisão genital das mulheres. Mas, em
vez desta brutal mutilação, vulgar e imperativa nas tribos muçulmanas, aos
casamentos entre ciganos segue-se, no dia seguinte, obrigatoriamente, a
humilhante demonstração da virgindade da noiva, cujo sangue de desfloramento,
estampado nos lençóis, é orgulhosamente exibido perante a comunidade. O que
temos nós a ver com este mundo? Nada. O que tem o deles a ver com o nosso?
Nada.
Africanos e afro-descendentes também se auto-excluem,
possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos.
Constituem etnias irreconciliáveis, e desta mútua aversão já nasceram, em
bairros periféricos e em guetos que metem medo, batalhas campais só refreadas
pela intervenção policial. Os africanos são abertamente racistas: detestam os
brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos
ou “nacionalidades” rivais. Há pouco tempo, uma empregada negra do meu prédio
indignou-se: “Senhora, eu não sou preta, sou atlântica, cabo-verdiana.”
Passou-se comigo. A cabo-verdiana desprezava as angolanas porque eram
africanas, não atlânticas, e muito mais pretas...
Os partidos, nomeadamente o PS, confessam que, para o fim
inconfesso de conquistar mais alguns votos, se vêem hoje obrigados a “assegurar
a representatividade das diferentes origens étnico-raciais”. Não por acaso, na
entrevista com Pena Pires, a visibilidade dessas diferentes origens aparece
imediatamente relacionada com a facilitação do acesso ao ensino superior, que
deveria abrir-se a todos os alunos, “independentemente da sua nota final” no
12.º ano. “Se fizermos uma política de alargamento de acesso ao ensino
superior, já resolvemos parte do problema. Não faz sentido ter um ensino virado
para os melhores alunos, mas sim para todos os que têm as condições mínimas
para entrar.” Pena Pires não explica que condições são essas. Possivelmente, o
simples facto de existirem jovens que, apesar de incapazes e preguiçosos,
aspiram a um diploma universitário! Pelos vistos, o facilitismo que já reina
hoje em dia nas universidades ainda não chega: para resolver “os problemas de
racismo e xenofobia” que afligem a esquerda bem-pensante da nossa democracia,
teremos de criar um passe de livre-trânsito entre o secundário e a
universidade. Quando esta política for oficialmente consagrada e der os seus
resultados, teremos um Parlamento ainda mais ignorante e incompetente do que já
temos – sem que o País deixe de “ter um problema de xenofobia e racismo”.
A título de complemento do acesso irrestrito ao ensino
superior, Pena Pires recomenda também a criação de “um observatório do racismo
e da discriminação junto a uma universidade”. Mas como é que se observa o
racismo e a discriminação a partir dos gabinetes almofadados onde se sentariam
os observadores? A única maneira de observar uma matéria tão fugidia e
evanescente é frequentar feiras e supermercados baratos, é entrar nos bairros
em que nem a polícia se atreve a pôr os pés. Mas isto é tremendamente maçador
e, sobretudo, exige muita coragem física. O observatório não observaria nada e
seria perfeitamente inútil, a não ser – isso sim – para criar mais alguns jobs
for the boys.
Bem-vindos os analfabetos – lusitanos, africanos ou ciganos
– à “visibilidade” no espaço público. De facto, só por uma cabeça de esquerda
passaria a ideia peregrina de um acesso irrestrito e incondicional à
universidade. E, quanto à melhoria da representatividade parlamentar, o
recrutamento de meia dúzia de indivíduos africanos ou ciganos em nada, mas
nada, promoveria a integração destas comunidades “invisíveis”, pelo singelo
motivo de que a sua “inclusão” não passaria de uma farsa multicultural
igualitarista. Por um lado, os eleitos não tardariam a ser vistos pelos seus
como desertores, e por outro seriam olhados pelos seus colegas de bancada como
forasteiros coloridos. Acontece que a xenofobia e o racismo são um fenómeno
universal, e não um problema especificamente português. Por mais que se
escancarem as portas da universidade, por mais que se criem srs. doutores de
aviário, nunca se dissolverão na comunidade autóctone as minorias exóticas em
que uma selvajaria como a excisão genital feminina seja moeda corrente.
Mais extraordinário e mais eloquente é que, na entrevista de
Pena Pires, nunca surja a palavra “mérito”. Não, não podemos integrar por
decreto.
Historiadora
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