domingo, 7 de julho de 2019

A Polémica à volta do texto de Maria de Fátima Bonifácio



Manuel Carvalho
Editorial
propósito do texto de Maria de Fátima Bonifácio

Equilibrar a recusa da censura com a abertura das nossas páginas a opiniões que não partilhamos é uma tarefa sempre difícil

Manuel Carvalho
6 de Julho de 2019, 20:46

“Indigno”. “Vergonhoso”. “Insultuoso”. Durante este sábado, muitos leitores fizeram questão de protestar contra a publicação do artigo da historiadora Maria de Fátima Bonifácio com o título “Podemos? Não, não podemos”. Vários jornalistas do PÚBLICO e os membros eleitos do Conselho de Redacção juntaram-se a esse protesto, alegando que em causa está uma grave ofensa aos valores matriciais do jornal. O PÚBLICO orgulha-se da sua tradição de estar na linha da frente do combate ao racismo ou a qualquer tipo de discriminação baseada na cor da pele, na sexualidade ou no género. Torna-se por isso imperativo explicar o processo e as razões que levaram à publicação. E dar conta das consequências que esta opção tem de merecer para o futuro.

O texto em causa está, no mínimo, nos limites do discurso de ódio, faz generalizações que põem em causa o combate à discriminação racial, usa linguagem insultuosa para diferentes minorias e coloca ênfase numa radical oposição civilizacional entre os “nós” europeus e os “outros”, africanos ou “nómadas”. Estão, por isso em causa, ideias, apologias e valores que o PÚBLICO contraria todos os dias, seja pelo trabalho dos seus jornalistas, seja pela abertura sem reservas que concede aos cidadãos de minorias visadas no artigo.

Ainda assim, é consensual a ideia de que o PÚBLICO é um espaço plural de opinião onde com muita frequência se publicam textos que estão longe dos valores que defendemos. No caso em concreto estava em causa um texto de uma intelectual consagrada, cujas teses rejeitamos mas julgámos caberem nos limites da liberdade de expressão. Na nossa interpretação, a proximidade a teses racistas e xenófobas era evidente, mesmo que não se fizesse a defesa da segregação. O recurso ao discurso de ódio, de uns contra outros, estava na fronteira do admissível, mesmo sem que houvesse incitamento à sua prática.

O uso destes argumentos para criticar uma intenção legislativa sobre quotas raciais no Parlamento ou no Ensino Superior anunciada por um deputado socialista induziu a apreciação das suas teses sobre ciganos ou africanos como utensílios de suporte a um legítimo protesto político. Não construíam o ângulo essencial do texto, apesar da proliferação de exemplos. Mesmo que essas teses hostilizassem a nossa linha editorial, considerámos que esses termos, ideias e valores eram aceitáveis no quadro da liberdade de expressão que assiste a uma colunista que é colaboradora regular do jornal e intelectual prestigiada na sua área científica.

Subestimámos assim o teor e tom dos argumentos em favor da crítica que a autora faz à possível adopção de quotas raciais. Considerámos que o direito a ofender, aceitável na interpretação genérica que fazemos da liberdade de expressão, justificava a publicação, mesmo sabendo que seria polémica e susceptível de levar muitos dos nossos leitores a questionar a nossa linha editorial ou o grau de tolerância que concedemos a ideias e valores que rejeitamos na nossa prática quotidiana. Reconhecemos que as expressões discriminatórias usadas remeteram a questão das quotas para a irrelevância. Ou seja, cometemos um erro de análise e de avaliação.

Defendemos uma liberdade ampla de expressão dos nossos colunistas e de todos os que recorrem ao PÚBLICO para manifestar as suas ideias, visões, propostas ou críticas. Essa é uma marca de água do jornal e assim continuará a ser. Mas as reacções e episódios associados a esta polémica obrigam-nos a reforçar os critérios de exigência e selectividade. Principalmente quando em causa estiverem questões sensíveis como as que se associam à discriminação. Um jornal como o PÚBLICO é um espaço de convivência baseado em valores. A Direcção Editorial tem o dever de proteger esse espaço, evitando que esses valores sejam postos em causa. Lamentavelmente, não foi isso que aconteceu.

Se há matéria na qual o PÚBLICO não pode deixar mensagens duvidosas aos seus leitores (e a todos os que o fazem diariamente) é sobre o lugar onde se encontra no combate ao racismo e à xenofobia. Aqui deixamos esta explicação para sublinhar sem margem para dúvidas esse nosso compromisso.


Podemos? Não, não podemos

As quotas para negros e ciganos não passam de uma farsa multicultural igualitarista. Não, não podemos integrar por decreto.

Maria de Fátima Bonifácio
6 de Julho de 2019, 6:15

Segundo o PÚBLICO de 29 de Junho, o “PS quer discriminação positiva para as minorias étnico-raciais”. Em causa estão sobretudo africanos e ciganos, independentemente de terem nascido em Portugal ou não. Estas minorias excluídas da Cidade, a sua suposta ou real marginalização, constitui a prova de que Portugal “continua a ter um problema de racismo e xenofobia”, independentemente do efeito – que de resto não sofremos – do drama dos refugiados, com o seu pico mais trágico em 2015.
O entrevistado pelo PÚBLICO, Rui Pena Pires, sociólogo e secretário nacional do Partido Socialista, lamenta “a falta de diversidade no espaço público”, que continua atulhado de homens brancos e mulheres brancas. E, em conformidade com a ideia, grata à esquerda, de que a sociedade e respectiva mentalidade podem ser mudadas por decreto, Pena Pires saúda a possibilidade de que o problema da exclusão de negros e ciganos do espaço público se resolva, ou comece a resolver, estabelecendo quotas para deputados coloridos, de forma a conferir à futura Assembleia da República uma dimensão representativa mais conforme com a composição étnico-racial da sociedade portuguesa. Se as quotas tinham impulsionado a emancipação e igualização de direitos das mulheres, se lhes haviam aberto o espaço público, porque não aplicar a mesma receita às minorias étnicas?
A comparação com a igualdade ou paridade de género é inteiramente falaciosa. As mulheres, que sem dúvida têm nos últimos anos adquirido uma visibilidade sem paralelo com o passado, partilham, de um modo geral, as mesmas crenças religiosas e os mesmos valores morais: fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade. Ora isto não se aplica a africanos nem a ciganos. Nem uns nem outros descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789. Uns e outros possuem os seus códigos de honra, as suas crenças, cultos e liturgias próprios.
Os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis: organizados em famílias, clãs e tribos, conservam os mesmos hábitos de vida e os mesmos valores de quando eram nómadas. E mais: eles mesmos recusam terminantemente a integração. É só ver a quantidade de meninas ciganas que são forçadas pelos pais a abandonar a escola a partir do momento em que atingem a puberdade; é só ver a quantidade de meninas e meninos ciganos que abandonam os estudos, apesar dos subsídios estatais de que os pais continuam a gozar para financiar (ou premiar!) a ida dos filhos às aulas; é só ver o modo disfuncional como se comportam nos supermercados; é só ver como desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral. Os ciganos não praticam a bárbara excisão genital das mulheres. Mas, em vez desta brutal mutilação, vulgar e imperativa nas tribos muçulmanas, aos casamentos entre ciganos segue-se, no dia seguinte, obrigatoriamente, a humilhante demonstração da virgindade da noiva, cujo sangue de desfloramento, estampado nos lençóis, é orgulhosamente exibido perante a comunidade. O que temos nós a ver com este mundo? Nada. O que tem o deles a ver com o nosso? Nada.
Africanos e afro-descendentes também se auto-excluem, possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos. Constituem etnias irreconciliáveis, e desta mútua aversão já nasceram, em bairros periféricos e em guetos que metem medo, batalhas campais só refreadas pela intervenção policial. Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou “nacionalidades” rivais. Há pouco tempo, uma empregada negra do meu prédio indignou-se: “Senhora, eu não sou preta, sou atlântica, cabo-verdiana.” Passou-se comigo. A cabo-verdiana desprezava as angolanas porque eram africanas, não atlânticas, e muito mais pretas...
Os partidos, nomeadamente o PS, confessam que, para o fim inconfesso de conquistar mais alguns votos, se vêem hoje obrigados a “assegurar a representatividade das diferentes origens étnico-raciais”. Não por acaso, na entrevista com Pena Pires, a visibilidade dessas diferentes origens aparece imediatamente relacionada com a facilitação do acesso ao ensino superior, que deveria abrir-se a todos os alunos, “independentemente da sua nota final” no 12.º ano. “Se fizermos uma política de alargamento de acesso ao ensino superior, já resolvemos parte do problema. Não faz sentido ter um ensino virado para os melhores alunos, mas sim para todos os que têm as condições mínimas para entrar.” Pena Pires não explica que condições são essas. Possivelmente, o simples facto de existirem jovens que, apesar de incapazes e preguiçosos, aspiram a um diploma universitário! Pelos vistos, o facilitismo que já reina hoje em dia nas universidades ainda não chega: para resolver “os problemas de racismo e xenofobia” que afligem a esquerda bem-pensante da nossa democracia, teremos de criar um passe de livre-trânsito entre o secundário e a universidade. Quando esta política for oficialmente consagrada e der os seus resultados, teremos um Parlamento ainda mais ignorante e incompetente do que já temos – sem que o País deixe de “ter um problema de xenofobia e racismo”.
A título de complemento do acesso irrestrito ao ensino superior, Pena Pires recomenda também a criação de “um observatório do racismo e da discriminação junto a uma universidade”. Mas como é que se observa o racismo e a discriminação a partir dos gabinetes almofadados onde se sentariam os observadores? A única maneira de observar uma matéria tão fugidia e evanescente é frequentar feiras e supermercados baratos, é entrar nos bairros em que nem a polícia se atreve a pôr os pés. Mas isto é tremendamente maçador e, sobretudo, exige muita coragem física. O observatório não observaria nada e seria perfeitamente inútil, a não ser – isso sim – para criar mais alguns jobs for the boys.
Bem-vindos os analfabetos – lusitanos, africanos ou ciganos – à “visibilidade” no espaço público. De facto, só por uma cabeça de esquerda passaria a ideia peregrina de um acesso irrestrito e incondicional à universidade. E, quanto à melhoria da representatividade parlamentar, o recrutamento de meia dúzia de indivíduos africanos ou ciganos em nada, mas nada, promoveria a integração destas comunidades “invisíveis”, pelo singelo motivo de que a sua “inclusão” não passaria de uma farsa multicultural igualitarista. Por um lado, os eleitos não tardariam a ser vistos pelos seus como desertores, e por outro seriam olhados pelos seus colegas de bancada como forasteiros coloridos. Acontece que a xenofobia e o racismo são um fenómeno universal, e não um problema especificamente português. Por mais que se escancarem as portas da universidade, por mais que se criem srs. doutores de aviário, nunca se dissolverão na comunidade autóctone as minorias exóticas em que uma selvajaria como a excisão genital feminina seja moeda corrente.
Mais extraordinário e mais eloquente é que, na entrevista de Pena Pires, nunca surja a palavra “mérito”. Não, não podemos integrar por decreto.
Historiadora

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