A velha desculpa de Cavaco: não fui eu, foi ele
Um candidato presidencial não pode dizer que não acompanha o
financiamento das suas campanhas, da mesma forma que um condutor de Fórmula 1
não pode dizer que não acompanha o desenvolvimento do seu carro. É um absurdo.
João Miguel Tavares
6 de Julho de 2019, 6:47
Isto é Aníbal Cavaco Silva vintage: “Eu nunca acompanhei os
financiamentos das campanhas eleitorais em que participei. Aconselho a falar
com Vasco Valdez, que ele é que é o mandatário financeiro. Ele é que sabe.”
Digam-me: sou só eu a sentir um leve odor a café da Avenida de Roma (e a
Fernando Lima) a espalhar-se pelo ar? O senhor ex-presidente da República – há
que dizê-lo – tem um tique ligeiramente irritante: mal surge no horizonte o
mais vago vestígio de um grão de poeira reputacional, a primeira coisa que ele
faz é manifestar a sua mais profunda ignorância em relação ao tema e passar as
culpas a outro.
O típico lava-mãos cavaquista pode dividir-se em quatro
momentos. 1) Proclamar que se é uma pessoa muito séria. 2) Garantir que esse
assunto não foi tratado por si. 3) Aconselhar que dirijam as perguntas a quem
tratou desse assunto. 4) Aproveitar para relembrar – para o caso alguém já se
ter esquecido – que não foi ele, porque é evidentemente uma pessoa muito séria.
Essa foi a estratégia utilizada por Cavaco Silva no caso das acções do BPN. E
no caso da compra da casa na Aldeia da Coelha. E no caso das alegadas
informações sobre espionagem em Belém. E, agora, no caso do financiamento da
sua campanha eleitoral de 2011.
Segundo a investigação feita pela revista Sábado, dez altos
quadros do Grupo Espírito Santo (incluindo o próprio Salgado) doaram um total
de cerca de 253 mil euros, em nome individual, para a campanha presidencial de
Cavaco, graças a um conjunto de dez cheques de cerca de 25.000 euros cada (o
máximo permitido por lei). Se esta paixão assolapada da cúpula do BES por
Cavaco já não era lá muito normal, a Sábado conseguiu estabelecer ligações
entre a saída desses cheques e a entrada de montantes exactamente iguais na
conta dos altos quadros do Banco Espírito Santo, via empresa ES Enterprise,
hoje mais conhecida como “o saco azul do BES”. Ou seja, em termos práticos, foi
Ricardo Salgado e o Banco Espírito Santo quem financiou pelo menos um quinto da
campanha de Cavaco Silva (cujo orçamento rondava os 1,5 milhões de euros). O
que, claro, é manifestamente ilegal.
Poderia Cavaco não saber nada disto? Poderia, com certeza.
Pode ele dizer que nunca acompanhou o financiamento das suas campanhas? Sim,
também pode. São essas duas afirmações política e eticamente aceitáveis? Não,
não são. Mais até do que a própria notícia da Sábado, a reacção de Cavaco Silva
não tem justificação: um candidato presidencial não pode dizer que não
acompanha o financiamento das suas campanhas, da mesma forma que um condutor de
Fórmula 1 não pode dizer que não acompanha o desenvolvimento dos chassis e do
motor do seu carro. É um absurdo, porque são temas demasiado importantes para
um profissional se refugiar atrás de qualquer espécie de ignorância na matéria.
Vasco Valdez estava a trabalhar para Cavaco Silva na
campanha eleitoral, e as dúvidas em causa não são de contabilidade. O
mandatário financeiro lá teve de vir a terreiro dizer que aquelas pessoas eram
“vistas como idóneas” em 2011, o que até pode ser verdade – só que era
demasiada idoneidade reunida num só conselho de administração, para mais do
banco todo-poderoso do país, e a bater no tecto dos donativos. Como é óbvio
para toda a gente, isto não é uma questão de mapas Excel – é uma questão
política. E Cavaco sabe isso muito bem. Tão bem, aliás, que atirou logo a
batata quente para cima de outros. Como é seu triste hábito.
Jornalista
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