Bonifácios e
Malefácios, eis a questão
Se a opinião de
Fátima Bonifácio, julgada como “crime”, fosse condenada em tribunal, o seu
efeito censório seria brutal na sociedade portuguesa.
José Ribeiro e
Castro
25 de Julho de
2019, 6:15
https://www.publico.pt/2019/07/25/sociedade/opiniao/bonifacios-malefacios-eis-questao-1881013
Nestas querelas
de posições públicas, matéria de opinião, um ponto fundamental é sempre o de
saber se representam por si mesmas um benefício ou um malefício. E, caso se
discorde fortemente de afirmações feitas, outro ponto fundamental é determinar
se o modo por que se reage e responde é benefício ou malefício. Por regra, numa
sociedade livre e democrática, qualquer debate aberto (bilateral ou
multilateral) é um benefício. Já o modo por que se reage nem sempre é um
benefício. E pode ser grande malefício.
Os jornalistas
António Borga, Diana Andringa, José Augusto, José Mário Costa e Paulo A.
Monteiro, em resposta ao meu artigo O Bonifácio da Dúvida, apresentaram um
conjunto de normas da Lei de Imprensa e da Declaração Universal dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, a fim de sustentarem o seguinte: “É esta toda a
diferença entre Censura Prévia e sanção penal.” Fizeram-no como integrantes do
grupo de 14 pessoas que anunciou uma queixa-crime contra Maria de Fátima
Bonifácio e o artigo Podemos? Não, não Podemos.
Conheço estas
normas. A primeira Lei de Imprensa, a seguir ao 25 de Abril, previu o crime de
abuso da liberdade de imprensa. O entendimento era simples: abolida a censura,
reposta a liberdade de imprensa, cabia sancionar a posteriori abusos que
ocorressem, o que se confiava aos tribunais. O mais frequente era a difamação,
crime já previsto na lei penal. A lei hoje em vigor resultou da evolução do
pensamento jurídico em duas décadas, que eliminou o tipo específico do “crime
de abuso de liberdade de imprensa”, passou a articular com a lei penal geral e
definiu os responsáveis e uma agravação das penas. Quanto ao princípio da
Declaração Universal, decorre de outra ideia mais ampla, aplicável em diversos
casos: o exercício de um direito ou de uma liberdade tem como limite os
direitos e a liberdade dos outros. Também está certo.
A tutela penal
não significa que não haja censura. Pode acontecer, pela intimidação provocada,
que o recurso à tutela penal tenha propósito ou efeito censórios. Tudo depende
do contexto, do uso da ferramenta penal, da sua frequência e intensidade e da
jurisprudência que se estabeleça, assim como do entendimento social que se
gere. Nenhuma lei vive apenas na frieza seca do seu normativo – e este tipo de
leis muito menos.
Tivemos em
Portugal vivos debates sobre a legitimidade deste instrumento e seus limites.
Apesar da progressiva afinação dos critérios de aplicação, vários jornalistas e
responsáveis da comunicação social protestaram contra processos judiciais que
os visavam ou a colegas seus, sustentando que eram pressões censórias e visavam
“impor a mordaça”. Para sairmos do quadro nacional, recordemos casos muito
sonoros em Angola: jornalistas levados à barra dos tribunais sob acusações de
difamação. Pode achar-se que era coisa banal, comum a diferentes ordens
jurídicas; mas esses processos mereceram condenação internacional como
“perseguição”, por vários colegas de profissão e credenciadas organizações de
direitos humanos. Esta é a questão.
Lendo a breve
narrativa que o director do PÚBLICO fez, em Editorial, quanto à enxurrada de
críticas, indignações, protestos recebidos contra o artigo de Fátima Bonifácio,
percebemos que a maioria pretendia que o PÚBLICO fizesse censura. Esse é,
aliás, o sentido das leis ora invocadas, que, nalguns casos, responsabilizam
penalmente “o director, o director adjunto, o subdirector ou quem concretamente
os substitua, assim como o editor”: em contexto de cultura penal furibunda,
fomenta-se a censura. A ameaça da sanção penal não só não afasta a censura
prévia, como pode precisamente conduzir a ela: por autocensura do autor ou até
como autodefesa, por censura imposta pelos responsáveis editoriais – em ambos
os casos, tendo como critério... o medo.
O quadro legal
ficou substancialmente pior – e muito perigoso para a liberdade – quando, ao
naipe de crimes mais comuns com vítima precisa (difamação e injúria), se
juntaram os crimes de ódio, contra universos gerais e difusos. São crimes de
linguagem, uma tendência internacional moderna, perigosa para a liberdade e
para a cidadania, sobretudo quando se banaliza o seu tipo, permitindo que
incidam em casos que não são de ódio.
A procuradora
Aurora Rodrigues, integrante do mesmo grupo dos 14, juntou – e bem – a norma
jurídica fundamental neste caso: o artigo 240.º do Código Penal. Fê-lo no seu
artigo (que creio ser-me parcialmente dirigido) sobre a mesma questão e
intitulado O Eufemismo do Excesso ou o Excesso dos Eufemismos?
É muito grave
que, como Aurora Rodrigues conta, este artigo 240.º (Discriminação e
incitamento ao ódio e à violência) preveja a punição por “difamar ou injuriar
pessoa ou grupo de pessoas”, mas tendo eliminado, em passe de magia, na revisão
em 2017, a exigência expressa do dolo específico para este tipo de crime, que
constava desde a versão inicial de 1995: desde que “com a intenção de incitar à
discriminação (...) ou de a encorajar”.
Ou seja, a
estreia judiciária desta versão-garrote do preceito foi anunciada para o caso
Bonifácio. Por isso, eu disse ter curiosidade em observar o curso dos processos
e, ainda, de ver também como decidiria o Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, se o caso lá chegasse. É só para saber em que país e sociedade vivemos.
Sociedade liberal? Não. Se a queixa tivesse vencimento, não mais seria liberal.
Se a opinião de Fátima Bonifácio, julgada como “crime”, fosse condenada em
tribunal, mesmo constatando que não tinha a intenção de incitar à discriminação
nem de a encorajar, caber-lhe-ia, ainda assim, a pena do artigo 240.º do Código
Penal, agravada de um terço pela Lei de Imprensa: ou seja, cadeia de oito meses
a seis anos e oito meses. Além da flagrante injustiça desproporcionada de uma
tal condenação, o seu efeito censório seria brutal na sociedade portuguesa.
Então, nós arriscamos outra vez cadeia por participar num debate e emitir
opinião emotiva?
A partir desse
dia, saberíamos que, em matérias sensíveis do debate social e político,
passaríamos a estar numa rua estreita de sentido único: só lá cabem os que
pensam a partir do poder e de uma determinada maneira. Em debates nas áreas do
artigo 240.º, uma opinião vibrante, um argumento vigoroso, uma posição
acalorada poderiam ser apreendidos – em vez de argumentados – e sujeitos à sentença
do tribunal. Um jogo em que, a cada movimento ousado de um dos lados, o árbitro
apita penálti e exibe o cartão encarnado. Isto fomenta o extremismo, não
combate o extremismo.
É por isso que
manifestei estranheza em ver aqui não só activistas, mas também jornalistas e
procuradores. Não é por não terem base legal. É porque, aos jornalistas, me
habituei a vê-los do outro lado da barricada e, aos procuradores, creio que a
sociedade fica mais segura quando também estão desse lado.
Respeitando as
opiniões em contrário dos que me interpelaram, reafirmo o essencial. A célebre
frase atribuída a Voltaire – “Não concordo com nada do que dizes, mas defendo
até a morte o direito de o dizeres” – seria muito diferente se a autoria fosse
deste movimento judiciário: “Não concordo com nada do que dizes e defendo até a
morte o direito de te amordaçar e punir.”
Advogado e antigo
líder do CDS
O Bonifácio da
dúvida
O dia da opinião
certa, o dia da opinião autorizada, será pior que tudo o que a autora escreveu.
José Ribeiro e
Castro
16 de Julho de
2019, 6:05
“Não concordo com
nada do que dizes, mas defendo até a morte o direito de o dizeres.” Esta frase
– ou a ideia por outras palavras – era a citação clássica de Voltaire.
Ouvimo-la dezenas de vezes, usada por quase todos, em casos como o último
artigo de Maria de Fátima Bonifácio (“Podemos? Não, não podemos”) e na
tempestade que gerou.
Lendo o texto,
ofensivo para muita gente, percebe-se o temporal. No debate enfurecido, a frase
clássica foi substituída por outra: “Ser intolerantes com os intolerantes.
Tolerância zero.” Muitos trataram não só de fustigar o texto, mas de zurzir
pessoalmente Fátima Bonifácio e exigir silenciamento, segregação, irradiação,
proibição e castigo.
Entre a
preponderância de uma ou outra das ideias nas duas frases parece que iriam um
ou dois séculos de distância. Em Portugal, vão apenas dez anos. O que se passou
para, em tão curto espaço de tempo, sermos tão diferentes na cultura quanto à
liberdade de expressão?
A frase de
Voltaire não é dele. É um daqueles casos de citações muito correntes, mas de
autoria errada. Segundo as referências que podem colher-se, pertence a uma
biógrafa de Voltaire, Evelyn Beatrice Hall, que, sob o pseudónimo Stephen G.
Tallentyre, quis ilustrar o pensamento do filósofo. A equívoca autoria da frase
não poderia ser dos dirigentes do SOS Racismo ou dos 14 notáveis (incluindo
jornalistas e ex-procuradores!) que, levando o zelo persecutório à barra dos
tribunais, anunciaram instaurar processos-crime contra Fátima Bonifácio. Se
fosse destes a autoria, a filosofia de Voltaire seria outra: “Não concordo com
nada do que dizes e defendo até a morte o direito de te amordaçar e punir.”
Tenho curiosidade
em ver como se desenrolarão estes processos. Terei curiosidade em ver como se
pronunciará o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, se o caso aí chegar. É
muito importante sabermos o espaço e o tempo em que realmente vivemos.
Sociedade liberal?
Lamento observar
que, no espaço público, entre os que animam a pressão censória se encontram não
só militantes e activistas, mas jornalistas, esquecidos (pelo menos, por um
momento) de a liberdade de expressão ser a ferramenta fundamental do jornalismo
e a sua compressão não costumar ter recuo, senão com custo muito elevado. O
texto de opinião de Fátima Bonifácio não pede repressão, mas contestação
vigorosa – como surgiu e ecoou. O contrário é a negação da sociedade e do
regime de liberdade. Não podemos querer isso. O dia da opinião certa, o dia da
opinião autorizada, será pior que tudo o que a autora escreveu.
Fátima Bonifácio,
historiadora credenciada, não se deu talvez conta de barbaridades que escreveu,
como a ideia de africanos e ciganos não serem parte da Cristandade, nem
descenderem dos Direitos Universais do Homem, ou os ciganos serem inassimiláveis
e os africanos e afro-descendentes se auto-excluírem da comunidade nacional e
serem abertamente racistas. Pode ter sido má disposição, uma tarde infeliz, um
eco azedo de conflitos académicos. Ou apenas o direito universal ao disparate,
assim como se dissesse “a bosta da bófia”. Mas escreveu realmente aquilo,
gerando viva discordância e repúdio. A sua posição contra quotas raciais ficou
soterrada pelo destempero.
O problema é
sério: seja o racismo, sejam estratégias que não lhe respondem e o agravam. Nos
últimos anos, temos assistido à ofensiva ideológica extremista contra a nossa
História e a cultura nacional, buscando culpa, procurando caçar culpados,
reclamando pedidos de desculpa a torto e a direito. É a ofensiva contra os
Descobrimentos, uma estupidez de todo o tamanho – puro negacionismo, por sinal.
É a gritaria contra a escravatura, como se fosse dos nossos dias e tivéssemos
de pagar por ela. Tem sido nesta maré que entra a semeadura da dialéctica
marxista (“a luta”) nas relações inter-raciais, desajustada, perigosa,
contraproducente e potencialmente explosiva. A resposta à segregação é
integração, não é a agressão.
O tema da
escravatura é sintomático. Nada pode justificar as atrocidades do sistema
escravocrata. É um rol terrível de violências que envergonha e magoa só de
ouvir contar. É verdade que “brancos portugueses” foram parte. Como outros
“brancos europeus”, parte do mesmo tráfico ignóbil. E outros “brancos
brasileiros” ou doutras colónias europeias.
Mas também é
verdade que a escravatura era corrente em África e “pretos africanos” foram
parte no comércio com os europeus, capturando os escravos no interior, que, na
costa, vendiam aos esclavagistas para alimentar o comércio transatlântico, o
novo tráfico global. Não eram súbditos colonizados, esmagados pelo colono. Eram
soberanos africanos, alguns de triste fama em matéria de escravatura, como o
rei do Daomé.
Essa nódoa enorme
na História da Humanidade foi abolida no século XIX, após o processo iniciado
nos finais do século XVIII. Este é que é o facto mais importante a destacar: a
escravatura, que existiu em todo o mundo, nas mais diversas culturas e
civilizações desde antes ainda da Antiguidade, nunca fora abolida. Não acabara
no fim do Egipto dos Faraós, nem na queda de Babilónia, nem no fim da Grécia
Antiga, nem na queda do Império Romano, nem na ascensão e queda de vários
reinos africanos, americanos, orientais ou europeus. Foi preciso que a
escravatura, ignóbil e massiva, entrasse em contacto com os valores modernos do
Ocidente, para se decretar o seu termo e impor a abolição à escala mundial. A
consciência moral do Ocidente, que usava escravos, não a tolerou; e pôs-lhe
fim. Isto é que é extraordinário e o notável facto universal. São deploráveis
as tentativas esquerdistas de confundir as mentes e incendiar os espíritos, sem
razão, nem contexto, empreendendo, depois do tempo, a libertação dos libertos,
para semear ódio em vez de paz – “a luta”, sempre “a luta”.
Sou um
luso-tropicalista encartado. Cresci nessa ideia. Acredito nela. Não nego nada
da realidade que pareça desmenti-la, nem creio que essa fosse a ideia de
Gilberto Freire – como pode um brasileiro negar a favela? Ou as desigualdades
do seu tempo? Acolho o luso-tropicalismo como um olhar não só benigno, mas
bondoso. Penso que é bom para o futuro e tem potencial conformador positivo. Um
povo que diz de si mesmo não ser racista e se afirma e reconhece multiétnico é
um povo comprometido com o que diz, isto é, a prová-lo e realizá-lo. Uma
cultura que se crê mestiça e valoriza a capacidade de se enriquecer por
receber, absorver, integrar é uma cultura boa, não só porque não segrega, mas
porque acolhe e cresce. É assim que entendo a maneira de ser portuguesa e a
nossa cultura. Creio que é mil vezes superior à doença obsessiva d'“a luta”, “a
luta”, “a luta”. É a única forma de integrar. Em paz.
O combate à
discriminação e a integração inter-étnica devem ser preocupação constante de um
país como Portugal – até pela nossa História e geografia, que determinam muito
do que fomos sendo. Os problemas raciais cruzam-se profundamente com os da
pobreza, sobre que não podemos descansar. As estratégias educativas são
fundamentais, mas o sistema está a falhar. As quotas não são solução, antes o
problema petrificado. E falta representação social e política, ponto que sempre
me surpreendeu e em que todos os partidos têm de agir.
Há dias, num
colóquio parlamentar, a ministra da Justiça citou Gabriel Garcia Marques: “Uma
pessoa só tem direito de olhar outra de cima para baixo, no momento de a ajudar
a levantar-se.” É assim mesmo. Aplica-se nas questões de desigualdade. Também
nas da liberdade.
Advogado e antigo
líder do CDS
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