segunda-feira, 8 de julho de 2019

Ricardo Salgado, chegou a hora do antigo senhorio disto tudo



Ricardo Salgado, chegou a hora do antigo senhorio disto tudo
07:00 por Carlos Rodrigues Lima

Ricardo Salgado, 21 crimes. Prática de crimes de corrupção ativa de titular de cargo político (1), corrupção ativa (2) branqueamento de capitais (9), abuso de confiança (3) falsificação de documento (3) e fraude fiscal qualificada (3).
https://www.sabado.pt/…/ricardo-salgado-chegou-a-hora-do-an…

O ex-banqueiro, conhecido como o "dono disto tudo", é ouvido esta segunda feira pelo juiz Ivo Rosa. A acusação da Operação Marquês imputa-lhe 21 crimes e descreve-o como um grande manipulador.

A julgar pela acusação do Ministério Público, Ricardo Salgado, antigo presidente do Banco Espírito Santo, não foi só o "dono disto tudo" como também era um grande manipulador. A ligação umbilical da PT ao BES fazia da primeira uma autêntica torneira financeira para o Grupo Espírito Santo. As contas foram feitas pela investigação. "Entre 2001 e 2015, por Ricardo Salgado ter conseguido condicionar a gestão da PT aos seus interesses, o grupo BES recebeu da PT, a título de pagamentos de serviços prestados, recebimento de dividendos e disponibilidade financeira por via da concentração no BES das aplicações de tesouraria, um valor superior a 8,4 mil milhões de euros.". Esta segunda-feira, perante o juiz Ivo Rosa, o antigo banqueiro vai tentar defender-se dos 21 crimes (corrupção, branqueamento de capitais, fraude fiscal, entre outros) que lhe foram imputados pela acusação

Segundo os investigadores, o ponto de partida para explicar todos os acontecimentos entre 2006 e 2010: a OPA da Sonae, a separação entre a PT e a PT Multimédia e, por fim, a compra de dívida da Rioforte. Quando, em 2006, Paulo de Azevedo surgiu acompanhado por António Horta Osório, então presidente do Santander, lançando uma OPA (Oferta Pública de Aquisição) à PT, Ricardo Salgado assustou-se: "Caso se verificasse o sucesso da operação, Ricardo Salgado visualizava o fim da parceria estratégica entre os dois grupos e, sobretudo, sabia ser certo não se poder manter quer a política de aplicações financeira no GES, que garantia financiamento ao grupo, quer a contratação do BESI para prestar assessoria à PT." Ora, tendo por base os números apresentados na acusação, entre dividendos, faturação e aplicações (compra de dívida), o BES poderia perder, a partir de 2007, 3,7 mil milhões de euros (valor recebido pelo GES a partir daquela data).

Os procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal situaram as manobras de Ricardo Salgado em dois planos: político, com a alegada corrupção de José Sócrates, e financeiro, através do financiamento à Ongoing e Fundação Berardo, de forma a assegurar votos suficientes na Assembleia-Geral da PT contra a OPA da Sonae. Ao mesmo tempo, os dois pontas-de-lança da empresa de telecomunicações, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava, também terão recebido comissões de forma a travar a oferta do grupo de Belmiro de Azevedo. "Entre 1 de março e 18 de abril de 2006, Ricardo Salgado, temendo o sucesso da oferta do grupo Sonae, propôs a José Sócrates que, no exercício das suas funções governativas e em contrapartida pelo pagamento de uma quantia avultada, condicionasse a atuação do Governo aos interesses do GES." Um primeiro pagamento de 6 milhões de euros terá sido feito, em maio de 2006, através da circulação de fundos entre contas de Hélder Bataglia e Pedro Ferreira Neto até chegar ao primo de Sócrates, José Paulo Pinto de Sousa. Ouvido como testemunha, numa segunda inquirição, o próprio Pedro Neto confirmou ter participado na montagem de um esquema financeiro que justificasse a movimentação de fundos, acabando assim por comprometer Salgado logo numa transferência de 3,5 milhões de euros, em Maio de 2006, para Hélder Bataglia, após uma passagem pelas suas contas. "Para fazer aquilo, tinha de ter o conforto do dr. Ricardo Salgado, senão não fazia", disse.

Pedro Neto fundamental para contextualizar
Em junho de 2007, de acordo com declarações do próprio Pedro Neto, foi constituída a sociedade offshore Pinsong, na presença de Hélder Bataglia e Ricardo Salgado. "No decurso do mesmo encontro, os arguidos Ricardo Salgado e Hélder Bataglia referiram a Pedro Neto que a celebração do contrato em causa era muito importante para o Grupo GES e que estava relacionado com a operação da PT."

Ainda em 2006, seguiram-se uma série de passos dados pelo governo de Sócrates, os quais, segundo o despacho final, se podem classificar como mera fachada.

Por indicação do então ministro das Obras Públicas, Mário Lino, o secretário de Estado das Obras Públicas, Paulo Campos, nomeou Luís Ribeiro Vaz como assessor para acompanhar o processo da OPA. Vaz aceitou o cargo ainda que, segundo documentos apreendidos no processo, em setembro de 2005 tenha enviado o seu curriculum vitae para um administrador do BES, Joaquim Goes, depois de, segundo o Ministério Público, ter solicitado a Ricardo Salgado que "diligenciasse pelo seu ingresso nos quadros" da PT.

Só que, de acordo com outros documentos apreendidos e o testemunho de Paulo de Azevedo, o papel do assessor do governo foi tudo menos ativo. A sua atuação "limitou-se à elaboração de alguns memorandos e à participação em reuniões realizadas no âmbito de contactos mantidos entre a Caixa Geral de Depósitos e o Grupo Sonae durante o ano 2006", explica a acusação. Publicamente, Sócrates alardeava a "neutralidade" do governo, mas nos bastidores "não deixou de transmitir" a Carlos Santos Ferreira, então presidente da CGD, e a Armando Vara, administrador, uma orientação: que o banco público deveria votar contra à OPA.

Chegado o dia da Assembleia-Geral da PT, 2 de março de 2007, o representante do Estado, Sérvulo Correia, chegou à reunião sem nenhuma instrução de voto clara na chamada "carta mandadeira", documento que lhe outorgava poderes de representação. Para o MP, Sócrates "diligenciou" no sentido de lhe ser transmitido "oralmente" que se deveria abster na votação, mas "assegurando-se" que, caso a OPA reunisse dois terços de votos favoráveis dos acionistas, Sérvulo Correia deveria usar a golden share, votando contra.

Mas, mesmo com o poder político, alegadamente, alinhado com os seus interesses, Ricardo Salgado não quis correr riscos e, entre 2006 e 2007, financiou dois empresários para assegurar um alinhamento completo na Assembleia-Geral: Joe Berardo e Nuno Vasconcellos. E assim foi, com o BES a emprestar até 200 milhões para a Fundação Berardo comprar ações da PT, sendo que apenas tinha que se comprometer "a exercer os direitos de voto inerentes às ações a adquirir de forma a rejeitar a OPA da Sonae", lê-se na acusação. As ações, refira-se, foram a única garantia para o financiamento. Depois de cumprida a "missão", Joe Berardo vendeu as acções da PT.

Em nome de Salgado
Quem também fez parte, segundo o MP, do plano de Salgado foi Nuno Vasconcellos, presidente do grupo Ongoing, entretanto em processo de falência. Em rota de colisão com Patrick Monteiro de Barros, então acionista de referência da PT, o antigo presidente do BES terá proposto a Vasconcellos comprar a posição da Telexpress, detida por Monteiro de Barros, na PT, desde que, obviamente, a Ongoing se alinhasse com os interesses do Espírito Santo, o banco.

Entre 21 e 24 de Julho de 2006, Patrick Monteiro de Barros deu ordem de venda de 22,6 milhões de ações da PT a um preço unitário de 9,45 euros. Através de um financiamento contraído junto do Credit Suisse de cerca de 216 milhões de euros, a Ongoing acabou por comprar a tal posição, sendo que o BES deu àquele banco uma garantia adicional em caso de incumprimento do contrato pela Ongoing, a qual equivaleria à diferença entre o valor de mercado das ações e o financiamento concedido. E a Ongoing votou contra.Encerrado o capítulo da OPA, o passo seguinte passou pela separação da PT da PT Multimédia. Ora, com esta solução, houve uma distribuição gratuita de ações da nova empresa de quatro ações da PT Multimédia por cada 25 ações da PT. Como o BES era um dos maiores acionistas da PT, tornou-se, automaticamente, um dos maiores da Multimédia.

Um memorando do departamento de comunicação do banco, de Abril de 2007, dirigido a Ricardo Salgado, alertou para os riscos reputacionais da operação, avisando com o risco do surgimento de "teses de que quem manda na PT e na PTM quer perpetuar o poder independentemente da alteração de circunstâncias". O documento terminava dizendo que a solução dava a ideia de que "o BES é uma entidade todo-poderosa que comanda os destinos do País e decide a seu bel-prazer em funções dos seus interesses, atropelando os interesses alheios".

Sai BES, entra...
Como, em dezembro de 2007, a Anacom questionou a semelhança entre a estrutura acionista da PT e da PT Multimédia, o BES decidiu vender 5% do capital desta última. E quem comprou? A Espírito Santo Irmãos, SGPS, sociedade do universo Espírito Santo. Mas resolvida a OPA, colocou-se em cima da mesa da PT a venda da participação na empresa brasileira de telecomunicações Vivo. Os espanhóis da Telefónica, sócios na PT no Brasil, queriam o controlo total da Vivo e ofereciam 7,15 mil milhões de euros. O Ministério Público garante que Sócrates, que numa primeira fase vetou o negócio através da golden share do Estado, impôs como condição para o viabilizar um novo investimento no Brasil. Uma das opções era a Telemar, dona da operadora Oi, uma empresa que atravessava algumas dificuldades e tinha uma grande exposição a fundos públicos, logo era do interesse do governo de Lula da Silva captar investimento. Ouvido pelo Ministério Público como testemunha, José Maria Ricciardi, primo de Ricardo Salgado, afirmou: "Quando eu comecei a dizer que aquilo era muito mau investimento, coisa que aliás acertei em cheio (…), a PT investiu à volta de 3,4 ou 3,5 biliões de euros na Oi. Passado pouco tempo, ela valia centenas de milhões de euros. Foi um investimento absolutamente ruinoso." Concluiu o MP: "José Sócrates sabia que a precipitação da entrada da Portugal Telecom no grupo Telemar/Oi seria prejudicial para a negociação e prejudicaria os interesses da própria PT e do Estado português."

Onde poderia estar um prejuízo para a PT, Salgado veria uma oportunidade para o BES: a relação da operadora portuguesa com a Oi, sobretudo na "possibilidade de oferta de serviços à Oi por parte de empresas do grupo Ongoing com a participação do próprio BES" ou através de uma eventual entrada do banco no "capital dos grupos Andrade Gutierrez e La Fonte/Jereissati", explica a acusação, acrescentando que chegou a ser comprada uma sociedade - a BRZ Tech, para a comercialização de produtos informáticos.

Apesar de tudo, a PT instalou-se na Oi e, a partir de Outubro de 2010, Ricardo Salgado deu "início ao pagamento das contrapartidas a que se havia comprometido com Zeinal Bava e Henrique Granadeiro". Para isso, terá mobilizado fundos para a ES Enterprises, uma sociedade criada na Suíça, cujo objetivo era "a concretização de pagamentos não documentados e não registados nas contas do GES". Segundo a acusação, Granadeiro foi o primeiro a receber: 3,5 milhões de euros. Seguiu--se José Sócrates, que, através do seu amigo Carlos Santos Silva, terá recebido 8 milhões de euros. Por fim, Zeinal Bava receberia 8,5 milhões. Seguiram-se outras transferências: em setembro de 2011, 10 milhões para Zeinal Bava e 8 milhões para Henrique Granadeiro.

Hélder Bataglia: O homem que entregou Ricardo Salgado
Na fase final da investigação, a equipa de procuradores liderada por Rosário Teixeira tinha já identificado o fluxo de transferências bancárias com origem no Grupo Espírito Santo e que tinham tido como destinatário final Carlos Santos Silva, o alegado testa-de-ferro de José Sócrates. Nesse processo, identificaram também aqueles que tinham servido de intermediários para esses pagamentos: Hélder Bataglia (presidente da Escom), José Paulo Pinto de Sousa (primo de José Sócrates) e Joaquim Barroca (presidente do Grupo Lena). No entanto, não conseguiam provar que as justificações empresariais apresentadas para essas transferências - supostos negócios em Angola e noutros países - eram falsas. Isso só foi possível após um testemunho-chave, prestado apenas a 5 de janeiro de 2017: o de Hélder Bataglia.

Há muito que os investigadores queriam interrogar o empresário nascido em 1947. Em Abril de 2016, o luso-angolano foi mesmo ouvido em Luanda, através de carta rogatória. Na ocasião, confirmou as transferências que lhe foram apresentadas mas negou ter participado em qualquer plano para corromper José Sócrates. E justificou a transferência de quase 9 milhões de euros para uma conta da Gunter Finance, Ltd., um offshore controlado por José Paulo Pinto de Sousa - de quem é amigo há muitos anos - como "empréstimos pessoais" para resolver dificuldades financeiras.

Estas respostas não satisfizeram Rosário Teixeira nem o inspetor tributário Paulo Silva - que mantiveram a vontade de interrogar o empresário pessoalmente. Pressionado pela necessidade de fechar o processo, o procurador acabou por ceder à principal exigência de Hélder Bataglia para vir a Lisboa prestar declarações: mandou recolher o mandado de captura internacional que tinha sido emitido em 2015.

Foi assim que a 5 de janeiro deste ano o empresário entrou no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) para ser ouvido como arguido durante várias horas. E rapidamente a conversa chegou a Ricardo Salgado.

Rosário Teixeira (RT): "Vamos entrar nos segundos 15 milhões que vêm mais uma vez através da ES Enterprises direitos às suas sociedades, a Markwell e a Monkway. O que é que se recorda disto? Estamos a falar de operações já de 2008."

Hélder Bataglia (HB): "Estas operações foram muito simples: foi o doutor Ricardo Salgado, que numa das minhas vindas a Portugal, pediu para eu passar lá no banco e pediu-me se podia fazer um favor, porque tinha uns compromissos em que tinha de pagar cerca de 12 milhões de euros. Disse-me se eu conhecia o Carlos Santos Silva, eu disse que sim, se tinha conta na UBS, eu também disse que sim, e se eu podia fazer esses pagamentos. Eu disse 'sim, Ricardo, se precisas, eu faço. Desde que me transfiras o dinheiro, eu faço esses pagamentos'. E aproveitei também para lhe dizer: 'Se vais fazer esses 12, vê se vem mais algum [risos] devido à nossa dívida antiga.' Era uma coisa que eu repetidamente insistia com ele, não todos os anos, mas todos os meses. Para não se esquecer [Bataglia insistiu no interrogatório que Salgado lhe prometeu dinheiro por conseguir a licença em 2001 para o BES Angola, mas que o banqueiro andou sempre a adiar o pagamento]."

RT: "Então, vamos lá ver, os termos desse pedido [...] ficou com a ideia que era o Carlos Santos Silva?"

HB: "Ele perguntou-me se conhecia o Carlos Santos Silva e que era para entregar ao Carlos Santos Silva, exactamente."

RT: "Sem lhe dar detalhes para o que é que era?"

HB: "Não me deu detalhe nenhum, nem eu lhe perguntei. Na altura, como deve saber, eram coisas que não se perguntavam ao doutor Ricardo Salgado, não é? Ele pedia-me, eu devia-lhe favores, o maior de todos era apoiar-me na Escom, o segundo era se ele cumpria e me pagava as minhas compensações pelo que eu tinha feito [no BESA]."

RT: "E, logo nessa altura, ele deu-lhe alguma ideia dos montantes que estariam ali em causa ou se eram uma sucessão de operações ao longo do tempo?"

HB: "Ele disse que ia fazer umas operações até um montante de 12 milhões."

[...]

O procurador quis saber mais pormenores sobre o destino desse dinheiro e descreveu várias movimentações ocorridas em 2008 para as contas bancárias de entidades offshore alegadamente controladas por Carlos Santos Silva e pelo empresário Joaquim Barroca. Mas também quis saber como Bataglia tinha chegado a Carlos Santos Silva.

HB: "Ele [Salgado] sabia da minha relação com o José Paulo [Pinto de Sousa, primo de José Sócrates], perguntou se eu conhecia o Carlos Santos Silva, eu disse que sim, conheço e, portanto, na prática, o que fiz a seguir foi telefonar, na primeira vez, ao José Paulo para ver se combinava uma reunião com o Carlos Santos Silva porque precisava de falar com ele. Depois, disse-lhe que o doutor Ricardo Salgado tinha dado esta disponibilidade e o que é que queria que eu fizesse. Ele deu-me um papelinho com umas contas, uma ou duas, não me recordo agora. Eu guardava o papelinho, chegava a Luanda, telefonava ao Canals [Michel Canals, gestor da UBS e depois sócio de Bataglia e Álvaro Sobrinho na gestora de fortunas suíça Akoya] e dizia-lhe: 'Preciso de fazer uma transferência para as contas x, y e z.' Ele dizia, 'sim senhor, vou fazer, está feita e depois, quando estivermos juntos, assinas'."

[…]

RT: "Isso não o deixava, pelo menos, desconfortável?"

HB: "Vou-lhe dizer: em 2008, o doutor Ricardo Salgado pedir-me uma coisa dessas, para mim, era um favor que lhe estava a fazer [...] E não se dizia não ao doutor Ricardo Salgado naquela altura, como deve saber."

O interrogatório continuou. Bataglia respondeu a tudo. Mesmo quando a conversa ficou concentrada durante muito tempo nas mesmas personagens. O inspetor tributário voltou a questionar: "Para si, quem era o eng.º Carlos Santos Silva?"

HB: "Para mim, era o administrador do Grupo Lena. O grande promotor do Grupo Lena no estrangeiro, era assim que o José Paulo me falava dele [...] para mim, o Carlos Santos Silva era o homem do Grupo Lena."

[...]

PS: "Como é que isto cruza com o doutor Ricardo Salgado?"

HB: "Não sei, é uma questão que tem de lhe perguntar. Ele pediu-me concretamente aquelas operações, para entregar àquela pessoa e foi isso que eu fiz. Não perguntei, como deve imaginar, ao eng.º Carlos Santos Silva porque é que estava a fazer aquelas transferências, isso ia pôr em causa o Salgado [...]."

Os investigadores quiseram depois perceber se Bataglia soube, na altura, que na realidade fizera transferências para as contas de Joaquim Barroca no banco suíço UBS, e não para Carlos Santos Silva. Ele disse que não, que só percebeu muito mais tarde - e através do próprio Santos Silva. Uma situação estranha pois em várias ordens de transferência já aparecia identificado um "Joaquim Rodrigues" (Barroca). Bataglia garantiu que não se lembrava.

Depois, Rosário Teixeira quis saber porque é que tinham mudado as contas de destino das operações. O empresário disse que a decisão final foi sempre de Carlos Santos Silva com quem se encontrou sempre antes das transferências. "Ele [Santos Silva] dizia-me ao telefone: 'Preciso de falar consigo.' E encontrávamo-nos. [...] Os encontros nunca foram além dos 10 minutos, porque tínhamos muito pouco o que falar um com o outro."

RT: "Nestas operações, recebe 15 milhões de euros, transfere para a dita conta do Joaquim Barroca 12 milhões de euros e o remanescente entrou por conta daquilo que achava que tinha direito?"

HB: "Exatamente, com alguma luta [risos]."

RT: "Mas isso foi também falado com o doutor Ricardo Salgado?"

HB: "Sempre, com o doutor Ricardo Salgado."

Foi este depoimento que permitiu aos procuradores sustentar, na acusação, que Ricardo Salgado, José Sócrates, Hélder Bataglia, José Paulo Pinto de Sousa, Carlos Santos Silva e Joaquim Barroca acordaram um esquema de circulação de dinheiro cujo destinatário final seria o primeiro-ministro.

Zeinal Bava: A estrela da gestão caída em desgraça
Zeinal Bava trabalhou "em prol da estratégia definida por Ricardo Salgado para os interesses do Grupo Espírito Santo". Foi fundamental para o banqueiro em três ocasiões: o falhanço da OPA da Sonae à PT, a cisão da PT Multimédia (hoje Altice) e os negócios de compra e venda de empresas de telecomunicações brasileiras, como a Telemar/Oi e a Vivo. Como recompensa, o antigo presidente e administrador do grupo Portugal Telecom (PT) recebeu 25,2 milhões de euros em duas ocasiões, sempre da ES Enterprises.

O primeiro pagamento ocorreu entre junho e dezembro de 2007, para a conta bancária n.º 199.801 titulada por Zeinal Bava no UBS, de Singapura: foram depositados 6,7 milhões. No interrogatório de 24 de fevereiro de 2017, o procurador Rosário Teixeira inquiriu Bava:

Zeinal Bava (ZB): "OK, o que é que acontece? Nós, em 2007, a OPA [tentativa de compra da PT pela Sonaecom] fica resolvida e, nessa altura, coloca-se a questão de se eu vou ficar na PT Multimédia, se eu vou ficar na PT (…) E o dr. Henrique Granadeiro, nessa altura, convida-me… ah… para ficar como vice-presidente da PT, com a vontade que eu passasse a ser presidente [no ano seguinte], até porque, como disse, foi uma exigência física e pessoal muito grande p'ra ele acumular as funções (…) Ah, naturalmente, o dr. Ricardo Salgado… ah… achou uma boa escolha e nos contactos que eu mantive com o dr. Ricardo Salgado (...) disse que via com bons olhos que eu - e quem eu escolhesse - pudesse ficar mais comprometido com o projecto (…) Eu não fui a primeira escolha, não sei quem foram as outras pessoas, mas aparentemente houve outros convites que tinham sido feitos e essa questão de dar a hipótese às pessoas de poderem ter uma participação na PT já tinha sido aflorada e, então, eu disse 'olhe, vamos fazer isso, então, faz essa transferência'. Essa transferência não foi dinheiro que me foi dado, essa transferência era dinheiro [os primeiros 6,7 milhões de euros], se quiser, confiado, era dinheiro que tinha um propósito específico, que era comprar e criar uma participação na PT, quando a empresa ficasse privatizada (...)."

Em 2010, aconteceu a segunda transferência, para uma conta da UBS em Zurique, com o número IBAN CH670020620620635031460B: seguiram 8,5 milhões. O dinheiro veio para trás a 29 de dezembro devido a um engano: a conta não estava em nome de Bava, mas da entidade Rownya Overseas Inc., sediada nas Ilhas Virgens Britânicas. A 20 de setembro do mesmo ano, seriam transferidos 10 milhões de euros.

Bava reconheceu que não havia contrato escrito sobre quaisquer montantes vindos de Salgado. Os dois só pensaram nisso em novembro de 2014, devido à detenção de José Sócrates, indicam os procuradores. Bava sustentou sempre que o dinheiro não era para usar em benefício pessoal, quando interrogado:

RT: "Fica como fiduciário..."

ZB: "Eu, num determinado momento, iria transformar isto num investimento na PT, OK? E iria agregar à minha volta um grupo de pessoas e nós iríamos ter exposição através de derivativos [um contrato entre várias partes, que se pode transacionar e cujo preço está dependente do valor de um ou mais ativos], tal como acontece em múltiplas outras situações no mundo..."

Inês Bonina (IB): "Porque é que não fizeram isto claramente?"

ZB: "Diga?"

IB: "Em empresas normais, sem ser em offshores, e às claras? Porque é que isto foi uma coisa escondida?"

ZB: "Não é uma coisa escondida!"

IB: "Então, porque é que o sr. recebe este dinheiro numa conta e o titular é uma empresa, que nem sequer 'tá ligada a si?"

ZB: "Eu declarei desde logo... assim que levantaram o tema, eu disse que era o beneficiário único da empresa."

IB: "Assim que levantaram o tema [Bava fez uma regularização fiscal extraordinária em maio de 2012, tendo declarado que escondera no estrangeiro €11.545.860 e, em 2016, devolveu outros 18,5 milhões de euros, que tinha nas contas de um offshore, à massa insolvente do GES]."

Apesar da adesão ao RERT, Bava ficou com os 6,7 milhões em Singapura. Quando o antigo administrador da PT foi ouvido na Comissão de Inquérito Parlamentar sobre a queda do BES, a 26 de fevereiro de 2015, nada disse sobre os valores recebidos de Salgado.

Foi nessa altura que nasceu o contrato entre Zeinal e Salgado, entre o fim de 2014 e os primeiros meses de 2015. "Por recear que tais pagamentos [de 25,2 milhões] fossem, entretanto, detetados o arguido Zeinal Bava acordou com o arguido Ricardo Salgado a celebração de contrato que permitisse justificar o seu recebimento", defendem os procuradores. O documento teve a data, alegadamente, fictícia de 20 de dezembro de 2010 e formalizava o acordo entre Bava e a ES Enterprises.

Paulo Azevedo: "Havia uma teia de interesses na PT"
O depoimento ocorreu entre as 11h27 e as 13h41, de 6 de Abril passado. Sentado, sem advogado, o líder da Sonae usou vários documentos como auxiliares de memória. Os papéis foram inicialmente colocados em quatro pequenos montes na secretária. Na sala 2 do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), em Lisboa, o procurador Rosário Teixeira começou por anunciar formalmente ao que ia: queria alguns esclarecimentos sobre as respostas, dadas pelo gestor a 22 de setembro de 2015, relativas à Oferta Pública de Aquisição (OPA) falhada da Sonae à Portugal Telecom (PT).

Afinal, fora a partir do primeiro testemunho de Paulo Azevedo que a investigação da Operação Marquês entrou em definitivo num novo rumo: a investigação a uma alegada aliança estratégia entre o Governo de José Sócrates e o BES/GES liderado por Ricardo Salgado. Uma aliança suportada por muito dinheiro escondido e alegados pagamentos corruptos, de acordo com a versão do MP.

Descontraído, Azevedo respondeu a tudo. Uma das questões foi o balanço que fizera da forma como decorrera a OPA falhada. Disse o que já tinha dito antes no DCIAP: "As negociações foram absolutamente inúteis. (…) Não acontecia nada (…). Mas depois acrescentou um dado novo quando falou dos principais interlocutores com quem se sentara 10 anos antes para negociar com a equipa nomeada pela Caixa Geral de Depósitos (CGD): "O advogado da outra parte chegou a dizer ao nosso advogado 'Não vale a pena, não se esforcem'".

Rosário Teixeira (RT): "Que advogado?"

Paulo Azevedo (PA): "Do nosso lado era o dr. Osório de Castro, do outro lado era o dr. Proença de Carvalho."

RT: "Isso em que ano?"

PA: "Foi na altura da última carta (…), pouco antes de dezembro de 2006, perto da carta final a dizer que era impossível (…), o dr. Proença de Carvalho terá dito isso, eu não estava presente, mas foi o que o dr. Osório de Castro me comunicou. E ele é uma pessoa em quem tenho muita confiança."

A OPA da Sonae foi chumbada e três meses depois, em junho de 2007, Proença foi nomeado para presidir ao Conselho de Administração da PT Multimédia.

Durante o testemunho, Paulo Azevedo referiu várias vezes que toda a negociação de bastidores foi estranha, porque se, por um lado o Governo anunciava que a CGD teria uma atitude de não-interferência no negócio, por outro, havia uma comissão nomeada pela mesma CGD para tratar do negócio. "Era uma evidência muito grande: a Caixa estava nas negociações, mas não decidia nada. Foram negociações um bocadinho estranhas porque não se comportavam como contraparte (...)", vincou o gestor.

Durante quase toda a inquirição, o inspetor tributário esteve a 'folhear' centenas de artigos de jornal que tinha no computador portátil. Até que perguntou: "O sr. engº., Paulo Azevedo, num almoço-conferência do American Club, em 31/05/07, no Hotel Real Palácio, foi-lhe atribuída a seguinte frase referente à PT: 'Há problemas de lutas internas de interesses e ineficiências e, julgo também, alguns problemas de corrupção por resolver'. Perguntava-lhe se isto foi mesmo assim, se prestou estas declarações nestes termos? O que é que queria no fundo dizer com isto?"

O gestor começou por referir os interesses instalados na PT (falou do grupo Ongoing e outros acionistas como a Visabeira que eram também fornecedores de serviços à PT), passou depois aos vícios de gestão da empresa, mas acabou por dizer que, sobre a questão da corrupção, referia-se apenas a rumores que, em 2007, ouvira sobre a PT África. O inspetor tributário ainda insistiu, mas Paulo Azevedo negou: "Não, não. Como vos disse na primeira vez, para mim, era claro que havia uma teia de interesses instalados na PT, mas não me ocorreu que pudesse haver pagamentos da magnitude de dezenas de milhões de euros aos principais intervenientes". Sem o dizer expressamente, referiu-se aos alegados pagamentos de Ricardo Salgado a Zeinal Bava, Henrique Granadeiro e José Sócrates.

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