A cidade enquanto laboratório de democracia
E se a renovação do sistema político português começasse...
pela rua onde vive?
Manuel Arriaga
José António
Bandeirinha
David Iguaz
Rui Martins
Luís Tarroso Gomes
9 de Julho de 2019, 7:36
Poderão as nossas cidades – ou até mesmo os nossos bairros –
contribuir para a revitalização da democracia? Numa altura em que tanto se diz,
escreve e pensa sobre a crise da democracia e o fantasma de um novo
autoritarismo, urge aproximar os cidadãos da tomada de decisões e
recredibilizar o sistema político. Acreditamos que os municípios terão um papel
vital neste processo.
Para muitos, as cidades são a unidade política por
excelência. Enquanto os jornais e redes sociais se focam maioritariamente no
jogo politico-partidário a decorrer na esfera nacional, as autarquias são
responsáveis pela “magia” que silenciosamente define inúmeros aspectos
essenciais do nosso dia-a-dia: da potabilidade da água que sai das nossas
torneiras à mobilidade urbana... e tantas outras coisas que (felizmente)
tomamos por adquiridas em 2019.
O cientista político norte-americano Benjamin Barber foi
talvez quem mais celebrou a cidade enquanto espaço político em que o
“pragmatismo” domina e a “ideologia” cede ao imperativo de solucionar
problemas. Não é preciso subscrevermos por completo esta visão de Barber para
apreciarmos que ele toca em algo de fundamental. A cidade combina a urgência de
manter a funcionar a infra-estrutura que suporta a vida quotidiana com uma
escala em que as decisões podem ser rapidamente implementadas — e os seus
efeitos observados pelos cidadãos.
Será, possivelmente, por razões semelhantes que as cidades
estão na vanguarda da participação cívica. Ao nível municipal, os orçamentos
participativos (OP) são já comuns um pouco por todo o mundo. No entanto, a
actual experiência do Governo português de conduzir um orçamento participativo
ao nível nacional foi algo de internacionalmente inovador. Esta comparação
ilustra de forma clara a discrepância que existe entre a abertura dos
municípios e dos governos centrais à participação dos cidadãos. Uma imagem
semelhante tende a emergir quando consideramos a adopção de novas tecnologias
para aproximar os cidadãos das instituições públicas. A título de exemplo,
compare-se o convidativo portal “Lisboa Participa” – através do qual a Câmara
Municipal de Lisboa recolhe sugestões e pedidos dos munícipes – com a seca
página de “Cidadania e Participação” no site da Assembleia da República.
É neste contexto que acreditamos que os municípios podem
fazer a diferença no esforço para recredibilizar o exercício da política: mais
ágeis e com uma cultura política mais aberta à participação cidadã, as
autarquias têm a possibilidade de dar o próximo passo nesse sentido. Falamos,
mais concretamente, de incluir cidadãos comuns no próprio processo de tomada de
decisões — e fazê-lo de uma forma informada, reflectida e hiperlocal.
Neste breve texto, gostaríamos de propor uma visão para uma
cidade mais participativa, bem como uma primeira medida concreta que poderia
tornar essa visão realidade. A estratégia passa por criarmos uma cidade em que
os cidadãos estão activamente envolvidos na tomada das decisões que, com
frequência, mais directamente os afectam: as intervenções pela autarquia no(s)
seu(s) bairro(s) de residência e trabalho.
Para tornar esta visão realidade, uma autarquia poderia
criar uma rede participativa ao nível dos bairros. Organizada ao nível
hiperlocal, esta rede participativa seria formada por painéis de munícipes,
cada painel representando um bairro diferente e sendo formado por 30 a 40
munícipes. Estes participantes seriam escolhidos por sorteio entre os
residentes e trabalhadores desse bairro. O painel desempenharia as suas funções
por um ano; após esse período, um novo painel seria seleccionado. Esta rede
participativa complementaria os actuais órgãos de decisão ao nível local:
câmaras municipais, assembleias municipais e juntas de freguesia. Ao contrário
desses órgãos eleitos e integrados maioritariamente por cidadãos com o
interesse e a inclinação a se dedicarem a tempo inteiro à política, os painéis
de bairro seriam formados por cidadãos comuns que trariam a sua perspectiva
quotidiana às matérias a analisar.
Fruto de um compromisso político da parte da autarquia, cada
painel de bairro seria chamado para deliberar sobre as intervenções autárquicas
nos espaços públicos desse bairro. Poderia também fazer sentido que um painel
de bairro fosse consultado sobre intervenções em outros bairros, quando estas
tivessem o potencial de afectar quem reside ou trabalha no primeiro bairro. Em
ambos os casos, o objectivo seria criar uma ferramenta participativa que daria
aos munícipes uma palavra decisiva, ao lado dos arquitectos e engenheiros, nas
decisões que afectam os bairros onde residem ou trabalham.
Meramente a título de exemplo, consideremos algumas
intervenções que foram discutidas recentemente nas cidades onde vivemos. É
comum dizer-se que há um défice de participação cívica, porém decisões como o
fecho do Miradouro do Adamastor em Lisboa, a construção de um parque de
estacionamento subterrâneo no Jardim do Rossio em Aveiro ou o licenciamento no
centro histórico de Braga de um pavilhão tipicamente suburbano para instalação
de um hipermercado geraram uma forte contestação. Nestes três casos, a
participação de centenas de munícipes ocorreu de maneira espontânea e
“reactiva” por não terem sido criadas genuínas oportunidades de participação
pelas autarquias durante os respectivos processos de decisão. É por isso que a
forma como as intervenções urbanas são decididas dentro das autarquias parece,
aos olhos de tantos, estar divorciada da população da cidade. Tudo indica que
os mecanismos existentes de consulta pública são limitados na sua eficácia ou
nem chegam a ser utilizados.
O que aqui propomos é uma visão diferente para a cidade.
Cada painel de bairro teria oportunidade para reflectir a fundo sobre a
intervenção proposta, ouvindo tanto os seus proponentes como os seus
detractores. Teria a possibilidade de consultar peritos e técnicos
independentes, por forma a obter a informação e conhecimentos necessários para
poder tomar uma decisão tecnicamente informada. E, através da sua vivência
quotidiana no bairro, os membros do painel “auscultariam” inevitavelmente os
restantes residentes e trabalhadores do bairro. A autarquia, por sua vez,
comprometer-se-ia a receber e tomar em consideração todas as recomendações
geradas pelos painéis, dando respostas detalhadas e francas a todos os pontos
por eles levantados.
A aplicação deste modelo de envolvimento dos cidadãos no
processo político ao nível local seria um primeiro e importante passo para
demonstrar à população que o sistema político não exclui o cidadão comum da
tomada de decisões. E não precisamos de olhar para longe para encontrar outras
aplicações da mesma ideia em municípios pelo mundo fora. Por exemplo, a câmara
de Madrid constituiu recentemente um “Observatorio de la Ciudad” que toma a
forma de um painel de 57 madrilenhos escolhidos por sorteio. Um processo
semelhante é, há vários anos, usado numa das regiões de Berlim para estabelecer
prioridades orçamentais. E, no Canadá, cidades como Vancouver e Toronto usam
painéis aleatórios de munícipes para definir prioridades no planeamento urbano.
As autarquias portuguesas que decidam criar uma rede participativa por bairros,
como propomos neste artigo, estarão numa posição privilegiada: tratar-se-á de,
simultaneamente, usar um método de participação cívica “com provas dadas” e dar
um passo genuinamente inovador.
Acreditamos que os municípios portugueses podem desempenhar
um papel fundamental na renovação do nosso sistema político. Muitas autarquias
em Portugal têm uma cultura de abertura e proximidade ao munícipe que
possibilita tornar esta visão realidade. Os benefícios da mesma seriam
múltiplos: viveríamos em cidades administradas de forma mais eficiente por
autarcas que teriam uma visão mais rica e detalhada das reais necessidades e
prioridades da população. Para além disso, estaríamos a criar uma democracia de
qualidade em que os cidadãos estariam mais próximos das decisões políticas.
Cremos ser uma visão na qual vale a pena apostar e esperamos continuar a
colaborar com autarquias portuguesas para a tornar realidade.
Professor na Universidade de Nova Iorque; membro do
Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa; fundador do Fórum dos
Cidadãos
Professor de Arquitectura. Universidade de Coimbra. Membro
da Assembleia Municipal
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