Não nos querem nas cidades: a história de um divórcio sem
retorno
Já houve tempos em que nos mandaram emigrar porque não havia
emprego, hoje obrigam-nos a deixar as cidades porque não temos rendimento para
as habitar.
Sebastião Ferreira de Almeida
Sebastião é bolseiro de doutoramento em Arquitectura dos
Territórios Metropolitanos Contemporâneos e investigador no DINAMIA’CET
12 de Junho de 2019, 8:07
É necessário começarmos a acreditar que somos cada vez mais
um “obstáculo” para quem nos governa, e não um “fim”. Já houve tempos em que
nos mandaram emigrar porque não havia emprego, hoje obrigam-nos a deixar as
cidades porque não temos rendimento para as habitar.
O que interessa é atrair o investimento e manter o fluxo
turístico a todo o custo, repelindo no caminho o que se atravessar à frente,
normalmente as pessoas, as suas vidas e as suas mobilidades. O mercado sempre
em primeiro lugar! E o que é o mercado em primeiro lugar?
É a aparente miopia dos nossos governantes em contraste com
as dificuldades de quem todos os dias é expulso da sua casa muitas vezes de
forma coerciva, é a perda de 14.791 eleitores em Lisboa e de 5543 no Porto
entre 2013-2017, ao mesmo tempo que se permite que em certos bairros do centro
histórico a ocupação em regime de Alojamento Local atinja os 40%. É a
cidade-palco das mil e uma festas e multidões onde todas as licenças são
permitidas, deixando os moradores em estado de sítio sem conseguirem descansar.
É ser possível “perdoar”, em nosso nome, milhões de euros de
impostos a fundos imobiliários e alienar património público quando 25.762
famílias estão sinalizadas como estando em situação habitacional claramente
insatisfatória, 74% destas concentradas nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e
Porto, conforme identificado no Levantamento Nacional das Necessidades de
Realojamento Habitacional.
"Este programa não espelha um Estado preocupado em
encontrar soluções para os problemas da cidade, mas sim em comparticipar,
financiar e validar um projecto urbano onde o mercado (global) é o seu
anfitrião principal."
O mercado em primeiro lugar é também ser legítimo limitar o
acesso aos espaços públicos (praças e miradouros) ao mesmo tempo que se entrega
de bandeja a sua exploração a grandes grupos privados. É obrigar a que
aceitemos uma cidade onde os projectos urbanos são apresentados como factos
consumados, é permitir a desregulação nos novos meios de mobilidade (Uber,
trotinetes, bicicletas e tuk tuks), ao mesmo tempo que nos deixam apinhados (ou
apeados) no trânsito ou num sistema de transporte público, mais barato é certo,
mas que está longe de responder ao aumento da procura.
É consentir que se iniciem processos de demolição de
bairros, de barracas ou de construções ilegais, em prol “da boa imagem dos
concelhos metropolitanos”, sem assegurar a habitação condigna a todos os seus
moradores. É, no fundo, esta festa de divórcio para a qual não queríamos ser
convidados, mas em que fomos obrigados a participar. É o oposto da igualdade e
inclusão que deveriam ser promovidos nas cidades.
Não interessa, pois, que esta “cativação urbana”, em prol do
crescimento económico, arruíne o tecido social do território e comprometa os
diferentes acessos capazes de lhe conferir diversidade e vitalidade. Não
interessa que sem eleitores não haja votos e, por conseguinte, necessidade de
representação – até a democracia pode submergir um pouco, para manter à tona o
mercado. Este, sempre em posição de destaque, é o verdadeiro arquitecto das
políticas urbanas, definindo quem tem “direito à cidade”, quem a pode aceder.
Um exemplo mais recente desta tendência é o novo Programa de
Arrendamento Acessível, já aprovado pelo Governo, e que pode ser consultado
nesta portaria, publicada em Diário da República. O programa estabelece um
apoio aos proprietários, sob a forma de benefícios fiscais (que recaem sobre o
IRS e IRC) em troca de uma redução do valor das rendas praticadas. Desta forma
procura facilitar o acesso à habitação por parte da classe média. Mas será
mesmo uma medida destinada à classe média?
No âmbito do mesmo programa foram estabelecidos os tectos
máximos de renda para Lisboa (e para todos concelhos do país). Vejamos os
valores considerados para a capital: TO, 600 euros; T1, 900 euros; T2, 1150
euros. A fórmula utilizada para os estimar baseou-se valor do mercado de rendas
praticado, considerando a sua redução em 20%. Se a intenção que este programa
proclama fosse honesta, a fórmula para estimar os limites do valor da renda
teria sido calculada de forma inversa, partindo do rendimento médio dos
trabalhadores portugueses, de forma a estimar os tectos de renda máxima. Mas a
fórmula parte do valor de mercado, e este, como sabemos, não reflecte de todo a
realidade laboral do país.
Um casal que ganhe o salário médio (887 euros segundo o INE)
não poderá pagar mais do que 532,2 euros de renda, uma vez que o programa
limita a taxa de esforço a 35%. Para pagar um T1 a 900 euros teriam que ganhar
cada um quase 1300 euros, longe dos 887 euros do rendimento médio. Isto não
espelha um Estado preocupado em encontrar soluções para os problemas da cidade,
mas sim em comparticipar, financiar e validar um projecto urbano onde o mercado
(global) é o seu anfitrião principal. Não nos deixemos, por isso, enganar com
medidas que mais não são do que um analgésico social, fabricadas para maquilhar
o tal divórcio sem retorno.
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