Já a 22 de Maio de 2014 no Público:
“São conhecidas as quatro fases progressivas das reacções
locais aos efeitos do turismo de massas: euforia, apatia, irritação e
antagonismo.”
António Sérgio Rosa de Carvalho / OVOODOCORVO
Excuse me, posso passar?
O Paulau, que depende do turismo dos corais, proibiu os
protectores solares que destroem os corais. As cidades também precisam de
regras para impedir que turistas a mais as destruam.
BÁRBARA REIS
12 de Julho de 2019, 5:50
Num beco de Alfama, quatro estrangeiras com ar de Meryl
Streep no Mamma Mia! jantam numa esplanada. Falam tão alto que se ouve dentro
do restaurante. Como estamos no bairro medieval de Lisboa — e não numa avenida
ampla —, também se ouve dentro das casas à volta.
Os guias explicam que Alfama é “o bairro mais típico” de
Lisboa, onde as ruas são estreitas e as casas apertadas ao ponto de os vizinhos
falarem de janela para janela. As Meryl Streep estão felizes e dobram-se para
cima dos joelhos de tanto rir.
Nisto sai uma senhora de uma pequena porta e põe-se a
arrumar o pátio da sua casa.
A operação tem dois problemas: o que há para arrumar são
pesados tubos de ferro e a entrada da moradora de Alfama é no beco partilhado
pela esplanada onde jantam as quatro estrangeiras. As Meryl Streep ficam de
boca aberta. Surpreendidas com o bater dos tubos, viraram-se na direcção da
“local” com olhos pesados, fazem que não com a cabeça e ar de quem diz: “Não vê
que estamos a jantar...?”. Como Alfama ainda é Alfama, só não ouviu a resposta
da “local” quem não quis: “Se não gostas, vai para a tua terra.”
A razão está de que lado? Da residente que, depois do
jantar, vai arrumar os ferros da banca onde vendeu cerveja e chouriço nas
festas do Santo António e cuja entrada de casa tem turistas a conversar, rir e
fumar colados às suas janelas até às 2h da manhã todos os dias? Ou das Meryl
Streep, o tipo de turistas de que as economias gostam, pois dormem nas cidades
e comem nos restaurantes?
Apesar de ainda ser um híbrido, Alfama está a caminho de ser
tornar um “tourist trap”. As turistas têm peixinhos da horta no menu, mas à
volta só há estrangeiros. A “local” dá um ar “very typical”, mas por favor não
ao ponto de incomodar os turistas. Os mesmos que às 22h tocam à porta dos
residentes do andar de cima para protestar contra o barulho das crianças a
correr. Ou que montam tripés no meio da rua para fotografar o eléctrico 28, em
Lisboa, e os azulejos da Capela das Almas de Santa Catarina, no Porto,
indiferentes ao facto de, com isso, fazerem parar o trânsito.
Não estamos em estado de emergência turística e o problema
não são os turistas que se comportam como se estivessem na Disneylândia. Mas o
“novo turismo” — já lhe chamam “turismo predador” — precisa de regras.
Em 2017, a Europa recebeu 670 milhões de turistas, um
aumento de 8% comparado com 2016. A tendência é aumentar, pois as novas classes
médias asiáticas não param de crescer. Portugal já está no top-10 dos países
europeus que mais turistas atraem (21,2 milhões em 2018).
A simples observação do que se passa obriga a perguntar:
quantos lugares vão ter de rebentar pelas costuras até que apareça bom senso?
Na Ilha das Berlengas houve bom senso. A última vez que lá
fui, andei de barco por entre cascas de meloa e abóboras. O Governo acaba de
decretar que só podem estar 550 pessoas na ilha ao mesmo tempo. É a capacidade
de carga das Berlengas. Caso contrário, o ecossistema da ilha morre. Durante
anos, eram 1200 pessoas. O governo grego fez a mesma coisa na ilha de
Santorini, a dos telhados azuis: os cruzeiros só podem largar oito mil pessoas
por dia.
Qual é a capacidade de carga do Museu do Louvre, que tem
cada vez mais visitantes, mas não aumenta os recepcionistas e os vigilantes?
Qual é a carga máxima do Great Barrier Reef, que reduziu o número de mergulhos
mas vai abrir um hotel subaquático? E do Monument Valley, que proibiu os voos
de helicóptero? Ou do Matchu Pitchu, que restringiu a entrada em três áreas?
Da Ilha de Boracay à Baía de Maya, passando pela Koh Jum,
nas Phi Phi, ou pelas Koh Tachai, nas Similan, há praias e ilhas a serem
fechadas aos turistas por todo o lado. Em Bali, um batalhão de pessoas recolhe
100 toneladas de plástico das praias de Jimbaran, Kuta e Seminyak por dia. Já
não se faz surf. Esse negócio está morto. Bali, como outros paraísos, têm ainda
o problema do “turismo dos zero dólares”: milhares de chineses visitam a ilha
através de agências de turismo que parecem ser locais mas são chinesas, e por
isso as receitas do turismo não vão para Bali.
Com os edifícios, monumentos e cidades é igual. As pirâmides
no Egipto poderão ter problemas irreparáveis em 2070 se não se começar a
reduzir os turistas hoje. Veneza é uma tragédia e já tem torniquetes. O governo
do Paulau, que depende do turismo dos corais, proibiu o uso de cremes
protectores solares — que destroem os corais. No Havai, uma proibição parecida
entra em vigor em 2021.
Há um ano, o PCP propôs, e foi aprovado, que a câmara
municipal de Lisboa fizesse um estudo para saber qual é a capacidade de carga
de Lisboa. Há um mês uma vereadora perguntou se estava a ser feito. Não há
resultados, nem houve resposta.
Deixar andar é a pior opção. Como os corais e as pirâmides,
as cidades também morrem. Chegámos à fase em que, para andar no centro
histórico de Lisboa, temos de dizer: “Excuse me, posso passar?” Se não fizermos
nada, acabamos atropelados.
tp.ocilbup@sierb
“O bezerro de ouro”
Todo o centro histórico está, através de uma “gentrificação”
especulativa, a ser transformado num “gueto” do turismo de massas.
António Sérgio Rosa de Carvalho
22 de Maio de 2014, 2:31
Portugal submisso acordou “limpo”. Sentido-se culpado e
tímido desde a descolonização, aceitou a condenação e a sentença impostas por
outros. Sente-se agora aliviado por uma solução também imposta por outros, e
restabelecido com plenas honras no clube a que deseja desesperadamente
pertencer.
Esta saída foi comemorada simbolicamente por duas
“entradas”.
A primeira foi ilustrada através de viagem iniciática ao
Portugal renascido para a banca internacional, num barquinho viajando através
de um Portugal de cartolina, agora já não dos “pequeninos” mas dos
pequeníssimos.
A segunda, esta de maior escala, pela visita de três
paquetes históricos, mensageiros das promessas do novo “bezerro de ouro”, o
turismo de massas.
Foi com grande regozijo esperançado que recebemos este sinal
de um futuro promissor.
Enquanto a juventude portuguesa parte, a tal que iria construir
Portugal de forma sustentada, aqueles que irão trazer dinheiro de forma
instantânea chegam.
De resto, Manuel Salgado e Costa já desenvolveram e
garantiram o décor e palco para o culto deste “bezerro de ouro”.
Assim, todo o centro histórico está, através de uma
“gentrificação” especulativa, a ser transformado num “gueto” do turismo de
massas.
O planeamento e construção de hotéis não pára. A entrega de
todo o património pombalino às imobiliárias, exclusivamente para habitação de
luxo, está já vitoriosamente, ajudada pelos vistos gold, a aumentar os preços.
Há promessas de que muitos reformados do Norte da Europa se
instalem, usufruindo da docilidade natural local, anestesiada pela crise e pela
confirmação de dependência e inferioridade.
O mundo das imobiliárias e da construção espera agora
desesperadamente que lhe entreguem todo o centro histórico, em nome da
famigerada “reabilitação urbana”.
As poucas famílias locais que se instalaram nos “bairros
históricos” são agora obrigadas a transformarem as suas habitações num
gigantesco negócio de estadias temporárias, simultaneamente tentando escapar ao
barulho e lixo permanentes, garantidos pela “animação do 'Zé'”, que estão a
tornar Lisboa inabitável.
Está assim garantida a transformação de toda a Lisboa, não
em cidade apropriada e vivida pelos residentes locais com identidade própria,
mas sim em produto de consumo efémero e temporário, palco globalizado pronto a
ser devorado pelo turismo de massas.
Barcelona produziu um documentário dirigido de forma muito
crítica às consequências para a cidade e os seus habitantes de um turismo
massificado.
São conhecidas as quatro fases progressivas das reacções
locais aos efeitos do turismo de massas: euforia, apatia, irritação e
antagonismo.
Estamos simultaneamente na fase de euforia e de apatia.
Apatia perante as consequências da estratégia delineada por
Manuel Salgado, que não só destrói todos os interiores do património pombalino,
mas leva a uma “demolição” sociológica de ocupação, muito mais grave. Um centro
histórico ocupado apenas por ricos ou turistas, sem identidade ou famílias
locais, produto temporário e décor efémero pronto a ser devorado.
Não tardará muito que se passe à fase da irritação. Se se
passará à fase do antagonismo, duvido.
De qualquer maneira, este é um processo irreversível e
imparável.
Por detrás do altar do “bezerro de ouro” esconde-se a
plataforma de sacrifício onde milhares de cordeiros dóceis, com a corda ao
pescoço, aguardam a matança.
Historiador de Arquitectura
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