Von der Leyen: um erro crasso dos socialistas ibéricos
O argumento definitivo terá sido uma carta que Von der Leyen
escreveu aos socialistas europeus prometendo uma série de coisas que já são
posição da Comissão ou que ela por si só não pode cumprir.
Rui Tavares
16 de Julho de 2019, 23:15
Já vimos este filme antes, e não acabou bem. Em 1994 os
governos da União Europeia estavam com dificuldade em escolher um sucessor para
Jacques Delors. Como sempre, queriam alguém que satisfizesse toda a gente e não
fizesse sombra a ninguém. Delors, que governara a Comissão durante dez anos,
tinha personalidade e isso é que não podia mesmo ser. Depois de excluírem três
candidatos mais prováveis, os chefes de Estado e de governo optaram por uma
quarta escolha: Jacques Santer, primeiro-ministro do Luxemburgo.
O Parlamento Europeu detestou a opacidade do processo de
nomeação e ameaçou chumbar o nome de Santer para a presidência da Comissão
Europeia. Suspeitando uma notícia na geralmente sonolenta política europeia, os
jornalistas dirigiram-se a Estrasburgo pela possibilidade de assistirem a uma
estreia: pela primeira vez na história, era possível que o Parlamento Europeu
chumbasse uma nomeação. Na última hora, porém, os socialistas portugueses e espanhóis,
de António Guterres (então ainda líder da oposição) e Felipe González, viraram
o bico ao prego e decidiram apoiar o luxemburguês. Jacques Santer passou à
rasca e tornou-se o presidente da Comissão Europeia eleito com menos apoio no
Parlamento Europeu. Até ontem, inclusive.
A partir daí Jacques Santer foi sempre um presidente da
Comissão fraco, com pouco respeito por parte das outras instituições e pouca
autoridade sobre os seus comissários. A sua Comissão foi permanentemente
afetada por problemas de clientelismo, nepotismo, favoritismo e até corrupção.
Em 1999, Jacques Santer acabou por se demitir antes da apresentação de uma
moção de censura no Parlamento Europeu que decerto perderia. A UE perdeu quatro
anos, perdeu credibilidade e perdeu o respeito dos cidadãos — em alguns casos,
até hoje. Lamentavelmente, com o apoio dos socialistas portugueses e espanhóis.
Esta terça-feira Ursula von der Leyen foi aprovada no
Parlamento Europeu com 383 votos — apenas nove votos acima dos 374 necessários.
É a presidente da Comissão eleita com menos apoio parlamentar desde Jacques
Santer. Não ficámos muito longe de se fazer história, com a primeira rejeição
de uma nomeação do governos para a Comissão Europeia.
Curiosamente, Ursula von der Leyen foi também a quarta
escolha do Conselho. Mas o que torna 2019 pior do que 1994 é que desta vez as
três primeiras escolhas tinham sido legitimadas pelos cidadãos. Ursula von der
Leyen, não. Ao contrário de Manfred Weber e Frans Timmermans, Ursula von der
Leyen não apresentou propostas a eleições, não fez debates, não deu sequer a
cara como candidata à presidência da Comissão. Ao contrário de Margrethe
Vestager, que também poderia ter sido a primeira mulher presidente da Comissão,
Von der Leyen não foi sequer candidata às eleições europeias nem fez parte de
uma equipa de candidatos à Comissão. E estes chefes de Estado e de governo
ainda há pouco mais de um mês prometeram aos eleitores europeus que o seu voto
permitiria escolher a chefia do executivo da União Europeia. Parece que não
sabem, pela experiência recente — e eterna — que políticos a quebrarem
promessas levianamente é a forma mais eficaz de esvaziar a política enganando
os cidadãos.
Pior ainda, sabemos muito bem por que foi excluído
Timmermans (e Vestager nem chegou a ser verdadeiramente testada): porque os
governos da Hungria e da Polónia detestaram que alguém na Comissão tivesse
feito o seu trabalho, preocupando-se com as violações dos princípios mais
elementares do Estado de direito e dos valores da União nos últimos anos. A
mensagem para os comissários futuros é muito simples: se levarem a sério os
valores descritos no Artigo 2 do Tratado da União Europeia — dignidade da
pessoa, liberdade, igualdade, democracia, Estado de direito e direitos humanos,
incluindo das minorias —, a vossa carreira política europeia nunca avançará.
Contente com a escolha de Ursula von der Leyen, Orbán deu
ordens para que os 12 deputados do seu partido Fidesz votassem a favor da
nomeada pelo Conselho. Eles assim terão feito (o voto é anónimo) e pode
inferir-se que os seus votos tenham sido decisivos. Orbán proclamará de novo
vitória, e comportar-se-á como se tivesse a presidente da Comissão no bolso.
Mas há mais: como em 1994, mas em condições
consideravelmente piores, os líderes dos socialistas portugueses e espanhóis —
António Costa e Pedro Sanchez — acabaram dando o seu apoio a Von der Leyen
antes da votação no Parlamento, e podem muito provavelmente ter sido também
decisivos, dada a estreiteza da aprovação de Von der Leyen. O argumento
definitivo terá sido uma carta que Von der Leyen escreveu aos socialistas
europeus prometendo uma série de coisas que já são posição da Comissão ou que
ela por si só não pode cumprir (porque onde essas coisas estão bloqueadas é no
Conselho). Para ser justo, Von der Leyen prometeu uma coisa importante:
apresentar legislação de cada vez que o Parlamento o pedir, na prática
concedendo o direito de iniciativa legislativa que o PE sempre deveria ter
tido.
Mas até nisso a desgraça se anuncia feia. Ursula von der
Leyen não pode cumprir todas as promessas contraditórias que fez. Não pode
levar a sério o Estado de direito, como prometeu aos Verdes europeus, e deixar
a Hungria e a Polónia em paz, como insinuou aos Conservadores europeus. No
momento em que deixar descontentes uns ou outros, basta esperar por um pretexto
para que lhe aconteça o mesmo que sucedeu a Jacques Santer. E mais uma vez os
socialistas ibéricos terão sido co-responsáveis. E a pergunta: aqui em Portugal
alguém ouviu António Costa ou Pedro Marques dizerem que fariam isto na campanha
das europeias?
Gostaria muito de estar enganado. Mas não será possível
sequer montar um colégio de comissários forte com apoio tão fraco. Sendo assim,
a nova crise política chegará ao Parlamento Europeu em outubro, quando for
votada a nova Comissão. Este é o pior de todos os mundos para a UE.
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