quarta-feira, 3 de julho de 2019

T2 de 150 a 600 euros. Medina promete rendas em Lisboa a metade do que definiu o Governo / A necessária gramática comum das cidades



T2 de 150 a 600 euros. Medina promete rendas em Lisboa a metade do que definiu o Governo


O Programa de Renda Acessível vai ter em conta o rendimento líquido dos candidatos e dará benefícios a quem tem filhos. Apesar dos contratempos, a autarquia diz que as primeiras casas são entregues este ano.

 João Pedro Pincha
João Pedro Pincha 3 de Julho de 2019, 7:03

Um apartamento T2 que a câmara de Lisboa arrendar no âmbito do Programa de Renda Acessível (PRA) vai custar no máximo 600 euros ao inquilino, quase metade do valor estabelecido como máximo pelo Governo no seu Programa de Arrendamento Acessível, que arrancou há dois dias.

O novo Regulamento Municipal da Habitação de Lisboa, que esta quarta-feira vai ser apresentado por Fernando Medina, contém as regras de acesso e os valores das rendas do PRA, um programa que prevê a disponibilização de pelo menos seis mil casas a preços abaixo dos actualmente praticados no mercado.

No PRA, um T0 custará entre 150 e 400 euros, um T1 entre 150 e 500, um T2 entre 150 e 600 e os T3, T4 e T5 custarão entre 200 e 800 euros. O valor exacto da renda dependerá do rendimento líquido das famílias candidatas, o que é uma novidade face ao actual programa de Renda Convencionada, que tem em conta os rendimentos brutos do agregado. No PRA, a renda a pagar pela casa não deve representar um peso superior a 30% dos rendimentos disponíveis depois dos descontos.

Outra novidade é que essa percentagem diminui consoante o número de filhos: dois pontos percentuais por cada dependente. Assim, um casal com rendimentos líquidos de 1600 euros, em conjunto, pagará no máximo 523 euros de renda por um T2 ou um T3, mas este valor ainda diminui se houver crianças a cargo. Já uma pessoa sozinha que só ganhe o salário mínimo paga 187 euros por um T1.

Estes valores contrastam com os definidos no Programa de Arrendamento Acessível (PAA) do Governo. Segundo as portarias exaradas no mês passado pelo Ministério das Infra-Estruturas e Habitação, tutelado por Pedro Nuno Santos, o PAA prevê que as rendas em Lisboa tenham um limite máximo de 600 euros para T0, 900 euros para T1, 1150 euros para T2 , 1375 euros para T3, 1550 euros para T4, 1700 euros  para T5 e 1700 euros mais 150 euros por cada quarto acima de T5.

Quando estes valores foram conhecidos, no início de Junho, eles foram criticados pela Associação Lisbonense de Proprietários, pela Associação dos Inquilinos Lisbonenses e por partidos políticos. Na terça-feira, no seu programa de opinião na TVI 24, também Fernando Medina não se coibiu de criticar o PAA. “Valia a pena olhar de novo para esta portaria, olhar de novo para estes valores, olhar de novo para este modelo e ir mais longe para permitir que as rendas fossem mais baratas, isto é, mais de acordo com aquilo que as famílias podem pagar”, disse o presidente da câmara. “Este programa, ao situar os apoios muito perto dos valores medianos do mercado, pode fazer com que rendas que hoje ainda estão acessíveis possam vir a ser aumentadas”, afirmou.

No PAA, o Governo concede benefícios fiscais aos senhorios que estejam dispostos a cobrar rendas 20% abaixo dos valores actuais do mercado. Já o PRA assenta noutro modelo: a câmara, através de construção própria ou em parceria com empresas privadas, coloca as casas para arrendamento e gere-as ela própria.


Acontece que o PRA foi anunciado há mais de quatro anos e ainda não houve nenhum arrendamento. O Tribunal de Contas chumbou a primeira operação, na Rua de São Lázaro, por considerar que se tratava, na prática, de uma parceria público-privada sem que isso fosse assumido formalmente pela autarquia. Esse chumbo, de que o município recorreu e aguarda resposta, parou quase todo o processo.

Perante este contratempo, mas também com base no acordo pós-autárquico com o BE e na cedência de prédios da Segurança Social, a câmara decidiu investir mais na construção própria e garante, na nota de agenda que enviou à comunicação social sobre a apresentação do regulamento, que haverá casas do PRA entregues ainda este ano.

tp.ocilbup@ahcnip.oaoj


A necessária gramática comum das cidades

“A introdução dos vistos gold veio alterar a lógica da coisa, sendo a compra da habitação o que permitia o acesso à cidadania. A habitação passa de direito a privilégio e o mercado a maestro de orquestra, num concerto desafinado ao qual assiste o Estado, espero que com alguma perplexidade.”
Precisamos de uma nova gramática que permita que todos participem da conversa da cidade. Uma espécie de acordo para pôr toda a gente a falar em habitação a custo justo que, se não se aproximar da realidade, será mais ortopédico do que ortográfico.

Aitor Varea Oro
Arquitecto. Coordenador do programa Habitar Porto
3 de Julho de 2019, 8:01

Falo português mas não sou nativo. É normal, por isso, que às vezes fique baralhado. “Vou fazer-te a vida negra” ou “vou-te fazer a vida negra?”. Ou então “o nosso projecto vai ‘ao encontro das’ ou ‘de encontro às’ necessidades das pessoas"? Podem rir quanto quiserem, mas não é de todo fácil. Porque é que no Porto se vai à “igreija” e em Lisboa à “igraja”? Alguém me pode explicar por que razão o mesmo “x” não corresponde ao mesmo som em “próximo”, “exército”, “caixa” e “táxi”? Porque é que o “o”, sendo tão redondinho em “Porto” quanto em “porta”, é pronunciado de maneira diferente?

Diz a minha professora de português que muitas destas situações acontecem porque “a língua é sempre mudança”. Mudança produzida de cima para baixo (as instituições tentando tornar a língua harmónica e as regras inteligíveis) mas, também, de baixo para cima (as pessoas, com o uso, dando vida própria às palavras, criando resistência às regras ou autonomizando-se delas). Estes dois movimentos são, às vezes, complementares e graduais (algumas coisas que hoje são interpretadas como erros talvez venham a ser regra daqui a 100 anos) e, às vezes, opostos e abruptos (como os acordos que fazem dos acentos e hífenes uma confusão do caraças).

“A introdução dos vistos gold veio alterar a lógica da coisa, sendo a compra da habitação o que permitia o acesso à cidadania. A habitação passa de direito a privilégio e o mercado a maestro de orquestra, num concerto desafinado ao qual assiste o Estado, espero que com alguma perplexidade.”

Uma das formas mais brutais de evolução da língua tem a ver com a substituição repentina de quem a utiliza ou dos âmbitos em que o faz. E isto muda o mundo. Não é preciso ir às invasões bárbaras para dar exemplos práticos. É sair à rua. Há poucos anos havia muitas casas com um “arrendasse” na placa. Hoje, a gramática veio ajeitar a placa e o “arrenda-se” aleijar o bolso. O que é bom para o dicionário é mau para a taxa de esforço e, apesar de a placa ser até mais bonita, o balanço é controverso. Talvez a sociolinguística venha um dia ajudar compreender as consequências dos sotaques envolvidos na promoção de habitação e no usufruto da cidade.

Com cada vez menos “moradores” e cada vez mais city-users, há quem se questione por que razão é que o crescente profissionalismo na construção traz, por vezes, tanto amadorismo no desempenho das cidades. Parte disto tem a ver com o facto de o urbanismo ser ciência, mas não matemática. Na cidade, a ordem dos factores gentrifica o produto. Em princípio, a cidadania garantiria a habitação (ou, pelo menos, é o que se depreende da leitura da Constituição). A introdução dos vistos gold veio alterar a lógica da coisa, sendo a compra da habitação o que permitia o acesso à cidadania. A habitação passa de direito a privilégio e o mercado a maestro de orquestra, num concerto desafinado ao qual assiste o Estado, espero que com alguma perplexidade.

Se nada se fizer, o estado da coisa terá mais efeitos na área da semântica do que na da governança, com o significado da palavra cidadão regredindo e as pessoas comuns continuando a praguejar contra as instituições (que algo devem fazer para salvaguardar a nossa famigerada democracia). Precisamos de uma nova gramática que permita que todos participem da conversa da cidade. Algo assim é o que se tenta fazer a partir da Nova Geração de Políticas de Habitação, que define princípios abstractos que cada um dos municípios terá de adaptar à sua realidade. Uma espécie de acordo para pôr toda a gente a falar em habitação a custo justo que, se não se aproximar da realidade, será mais ortopédico do que ortográfico.

Creio que um dos princípios básicos desta nova gramática será evitar que algumas coisas passem da conta bancária ao dicionário, trocando “arrendamento” e “arrendimento”. Mas este é o eterno problema do povo: quando a elite não o percebe, diz que não tem razões, tem é choros. Não tem argumentos, fala é calão. Mas a verdade é que a nossa fala abrange uma maioria e que um dialecto com exército pode um dia vir a ser uma língua. Uma língua onde “renda” e “rendimento” não sejam antónimas, que nos permita diversificar o leque de promotores e, portanto, de beneficiários da habitação. Que nos ajude a provar que talvez hoje sejamos “o desvio”, mas que num futuro decente seremos apenas “a norma”.

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