Preto e branco
A insistência na separação das origens raciais aumenta as
potencialidades de racismo na sociedade. Desperta preconceitos. Conduz a
classificações indevidas, com categorias que se sobrepõem à de cidadão.
António Barreto
30 de Junho de 2019, 7:22
A decisão das autoridades estatísticas nacionais, a começar
pelo INE, de não incluir, no Censo de 2021, perguntas, mesmo de resposta
facultativa, sobre as origens étnicas ou “raciais”, parece justa. Não são
conhecidos os fundamentos da decisão, mas a conclusão é a mais sensata.
A inclusão destas questões chegou a parecer interessante.
Talvez os resultados ajudassem a reflectir e a conhecermo-nos melhor, o que é
uma vantagem. Se a finalidade fosse só a de conhecer, até poderiam ser
incluídas perguntas de carácter fiscal, alimentar, sexual, sanitário, cultural
e desportivo. A informação e o conhecimento são inesgotáveis de interesse e
curiosidade.
O problema começa com a privacidade e a dignidade pessoal,
valores muito evocados, mas com frequência ignorados. Por que razão desejará
alguém revelar, mesmo sob a aparência do anonimato, dados sobre a sua vida, as
suas crenças e os seus hábitos? Por que razão quer o Estado saber isso de
alguém, pessoas ou comunidades? Em tempos de devassa e de exibicionismo, tudo
parece legítimo, mas é bom marcar fronteiras e traçar limites.
Depois, temos o problema, aparentemente técnico, das
perguntas facultativas, solução defendida por alguns e já adoptada para a
religião. Essas perguntas fazem pensar na famosa frase de Clinton, “fumei, mas
não engoli”. Ou numa das frases mais repetida em Portugal, “sou católico, mas
não praticante”. Nem sim, nem não. Sendo facultativas e não sabendo quem não
responde, qualquer conclusão é puramente especulativa.
Difícil é o problema da nomenclatura. Que categorias devem
ser adoptadas? As quatro, branco, negro, cigano e asiático, como defendem uns?
Mas onde estão os mestiços, fazem parte dos brancos escuros ou dos negros
claros? E é possível colocar no mesmo plano “brancos” e “asiáticos”? Ou “negros”
e “ciganos”? Ora, branco e negro é cor, asiático é continente, cigano é etnia.
Um branco ruivo com sardas e um norte-africano ruivo com sardas são diferentes?
O “asiático” não inclui dezenas de etnias diferentes? Nomes recentes como
luso-descendente, afro-descendente e luso-africano designam exactamente o quê?
O que é um afro-descendente? Pode ser branco, negro ou mestiço? Ou só negro?
Porquê? E um brasileiro, naturalizado português, filho de pai japonês e mãe
mulata brasileira é o quê?
A questão dos mestiços é particularmente interessante. Não
há só mestiços de branco e negro. Há também de branco e chinês, ou indiano, ou
índio, ou cigano, ou mouro, ou árabe… Como classificar? E se usarmos os
mestiços de qualquer das variedades acima, como por exemplo chinês e árabe?
Meio negro, meio cigano, é o quê? Só mestiço? Igual a meio branco, meio
japonês? E os filhos de brancos e de goeses de Moçambique?
A mistura de conceitos é flagrante. Cor, continente e etnia
são coisas diferentes. Há negros asiáticos, australianos, africanos, europeus e
americanos. Como há brancos europeus, asiáticos, africanos, australianos e
americanos. As misturas de cores e de etnias evocam a religião, a história e a
política. Como classificar um persa, um curdo, um arménio, um pársi, um hebreu
ou um ismaelita? Um berbere ou um núbio? Um cristão branco do Líbano e um
branco de Moçambique? Um banto ou um zulu? Os caucasianos do Norte de África
são o quê? E os palestinianos, os saarauis e os chaouis?
Se africano quer dizer nascido em África, teremos de admitir
que há africanos negros, mestiços, árabes, brancos, egípcios, berberes, núbios
e muitos outros, não há apenas africanos negros. Se europeu quer dizer nascido
na Europa, então há europeus persas, chineses, árabes, curdos, turcos, negros,
brancos e indianos, não só brancos.
As confusões entre povo, religião, etnia e comunidade são
numerosas, sem esquecer que há ainda quem pense que há diversas espécies
humanas e várias raças. Africano, europeu, asiático e americano são origens
geográficas, não são raças. Branco, negro e amarelo são cores, não são etnias.
Branco é cor, cor não é só negro. Pessoa de cor é toda a gente, branca, amarela
e negra. Judeu, ismaelita, curdo, arménio, berbere, muçulmano, aborígene
australiano, maori e muitas outras designações afins introduzem confusões e
misturas entre origem geográfica, religião, etnia e cultura, o que só complica
as coisas. Colocar no mesmo saco vietnamitas, chineses, japoneses, coreanos,
cambojanos e tailandeses é absolutamente errado.
Na questão religiosa, já contemplada com uma pergunta
facultativa, o que se fica a saber é nada. Três espécies de cristãos, uma de
judeus e uma de muçulmanos não resumem nem definem. As chamadas “seitas”, com
centenas de milhares de seguidores, não se distinguem. Jeová, maná, mórmones,
sikhs, hindus, budistas, adventistas, IURD e tantos outros não se destacam. Não
se sabe o que representam os que responderam, muito menos os que não
responderam.
A insistência na separação das origens raciais aumenta as
potencialidades de racismo na sociedade. Desperta preconceitos. Conduz a
classificações indevidas, com categorias que se sobrepõem à de cidadão. Tentar
combater o racismo com a oficialização das categorias raciais é absurdo.
Reforçar a designação oficial de raça e etnia vai dar razão aos que nunca se
esquecem de dizer que “negro matou”, “cigano roubou” ou “chinês violou”, sem
tal referir quando se trata de um branco.
Fica-se com a sensação de que há várias espécies de motivações
para incluir e tornar oficiais estas designações. Uma será a de reduzir a duas
grandes categorias, os brancos e os negros, para alimentar as lutas raciais.
Outra, a de eliminar as misturas, os mestiços, a fim de definir dois campos em
confronto. Uma outra será consequência de uma ilusão, a de que devemos e
podemos saber tudo, para tudo planear e de tudo fazer uma política.
A recolha de dados raciais não serve para combater o
racismo. Pelo contrário, pode contribuir para o desenvolver, através do reforço
de demarcação e pelo incentivo à fragmentação social e racial. As identidades
étnicas e comunitárias parecem hoje mais perigosas para os direitos dos
cidadãos e para a liberdade do que as identidades nacionais plurais. Uma coisa
parece certa: há em Portugal grupos de várias etnias, incluindo brancos e
negros, apostados, por razões políticas, em aprofundar as clivagens étnicas
entre residentes em Portugal. Por isto, o debate sobre o Censo foi útil.
Sociólogo
Sem comentários:
Enviar um comentário