terça-feira, 2 de julho de 2019

Miguel Sousa Tavares vive em Marte



Miguel Sousa Tavares vive em Marte

O grande problema de Miguel Sousa Tavares não está nos argumentos que usa – está na sua total desadequação ao contexto que os rodeiam. Infelizmente, não é caso único.

João Miguel Tavares
2 de Julho de 2019, 5:20

Na última edição do Expresso, Miguel Sousa Tavares – que partilha com Rui Rio a convicção de que o Ministério Público (MP) é uma organização extremamente corporativa, principal suspeito de todas as fugas ao segredo de Justiça, destruidor oficial de reputações e grande liquidador de vidas profissionais e familiares – decidiu declarar, preto no branco, “sem cerimónias nem paninhos quentes”, que é “contra a independência e mesmo contra a autonomia funcional do Ministério Público”. Portanto, no seu entender, o MP é um órgão da administração pública como qualquer outro, e deve estar subordinado ao poder político. (De caminho, Miguel Sousa Tavares resolveu promover-me a “justiceiro-mor e pregador moral do reino”, elogio que agradeço, mas hoje não quero falar sobre mim.)

O grande problema de Miguel Sousa Tavares (MST) não está nos argumentos que usa – está na sua total desadequação ao contexto que os rodeiam. Infelizmente, MST não é caso único. Temo bem, aliás, que seja praticante de uma das artes mais populares do colunismo português – a aplicação de magníficas terapêuticas a problemas irrelevantes, sabiamente conjugada com a mais absoluta indiferença quanto aos problemas fundamentais. Imagine, caro leitor, que está um senhor careca a esvair-se em sangue junto à estrada. Miguel Sousa Tavares pára de imediato o carro, corre para ele, e sugere-lhe um tratamento para a queda do cabelo.

A visão de Miguel Sousa Tavares sobre a justiça é essa – um medicamento contra a alopecia aplicada a um moribundo. Escreve ele no Expresso: “É certo que um MP sob a alçada do poder político é um risco sempre presente. Mas, apesar de tudo, é um risco controlado: pelos outros poderes, pela imprensa, pela própria dignidade dos magistrados do MP e da sua hierarquia.” Reparem: MST olha para o Portugal da última década – o Portugal de Sócrates, Salgado, Bava, Granadeiro, Vara, Berardo, Pinto Monteiro, Freeport, Face Oculta, da Operação Marquês, da Operação Furacão, da Operação Fizz – e o que é que ele conclui? Que o poder político talvez possa ter um vago desejo de controlar o MP, mas que esse desejo é, apesar de tudo, “um risco controlado”. Reparem outra vez: no mundo pós-Sócrates, pós-Lopes da Mota e pós-atentado ao Estado de direito, MST acha que o risco de o poder político querer meter a unha no MP deve ser desvalorizado.

Quem, pelo contrário, está descontrolado no desejo de controlar é, no seu entender, o Ministério Público. Pergunta MST enfaticamente: “Mas quem controla o risco da sua total independência, que, com o actual estatuto, equivale a total impunidade?”; “quem nos garante que quando investigam um político ou um empresário não é por razões políticas ou pessoais?”; “quem nos garante que quando não investigam não é por razões obscuras?”; e por aí fora. O que é que está errado neste raciocínio? Nada – excepto a realidade.

MST apresenta magníficas soluções para problemas que Portugal não tem. Ou, se os tem, são ridículos face a outros. Sim, todas as profissões são corporativas – os professores, os médicos, os jornalistas, os políticos e, com certeza, também os magistrados do Ministério Público. Mas pergunto: é esse o grande problema da Justiça portuguesa? No Portugal de 2019, será mais ameaçador o corporativismo do Ministério Público ou o desejo do poder político em limitar a sua autonomia? Qual dos problemas foi mais grave na última década? Lamento, caro MST: é mesmo preciso ser marciano para falhar a resposta a esta pergunta.

Jornalista

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