sábado, 31 de março de 2018

"Fundos imobiliários, bancos e seguradoras compraram ruas inteiras e as consequências são desastrosas"




ENTREVISTA
"Fundos imobiliários, bancos e seguradoras compraram ruas inteiras e as consequências são desastrosas"

Alfama, Baixa, Chiado, Mouraria e Castelo perderam desde 2013 quase dois mil habitantes. “Qualquer solução que favoreça a reabilitação mas expulse residentes é uma má solução”, diz o presidente da Junta de Freguesia, Miguel Coelho.

ANA DIAS CORDEIRO 31 de Março de 2018, 7:36
https://www.publico.pt/2018/03/31/sociedade/entrevista/o-estado-tem-de-reconhecer-que-a-habitacao-e-um-direito-constitucional-1808569

Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, quer combater o “esvaziamento” do centro histórico dos seus habitantes. Embora o alojamento local em Lisboa, na maioria dos casos (59%), tenha sido criado em imóveis desocupados foi também criado em casas de arrendamento de longa duração ou de habitação própria permanente em 32% das situações. Entre os residentes há mesmo quem pergunte: “Quem vai votar nas próximas eleições autárquica, os turistas?” É também essa a pergunta que se coloca o autarca do PS que desde 2013 perdeu quase 2000 eleitores, na freguesia de Lisboa e do país com maior número de apartamentos de alojamento local para turistas.

PÚBLICO – A que se deve este “esvaziamento” de moradores na freguesia?
Miguel Coelho – É consequência da conjugação de uma lei das rendas muito desequilibrada em favor dos proprietários, de uma certa especulação e da ausência de uma lei do alojamento local. O alojamento local é uma actividade desregulada e de grande rentabilidade, com um benefício fiscal maior do que o da habitação permanente. A maioria dos senhorios, sabendo que podem ganhar num fim-de-semana aquilo que ganham num mês, faz tudo para tirar as pessoas das suas casas.

Também houve a alteração da lei em 2012, durante o Governo de Passos Coelho.
A chamada Lei Cristas [da então ministra Assunção Cristas] fragilizou os moradores com contratos anteriores a 1990. Para além de toda a questão processual que era altamente penalizante para pessoas com pouca literacia, também introduziu uma alteração ao Código Civil. Antes a lei previa que, para cessar um contrato, uma obra tinha de ser considerada profunda, e as câmaras municipais tinham que avalizar que a obra era mesma profunda e precisava da desocupação do fogo. O pacote legislativo de 2012 liberalizou esta componente, passando a considerar suficiente que o técnico responsável, ou seja, o técnico pago pelo proprietário da obra, assinasse um documento a certificar que a obra era profunda, e por esta via, muitas pessoas que tinham contratos seguros até ao fim da vida, ficaram de repente fragilizadas. Entretanto, isso foi parcialmente corrigido [com as alterações à lei em 2017], mas o mal está feito.

Esta facilitação das obras profundas não serviu para reabilitar os prédios em decadência?
Reabilitar os prédios é importante. Mas a reabilitação foi para os transformar a habitação em alojamento local. Qualquer solução que favoreça a reabilitação mas expulse residentes é uma má solução. As pessoas estão sempre em primeiro lugar. Nos anos 1980, os senhorios começaram a chamar muito a atenção para a sua própria descapitalização, para o facto de terem rendas muito baixas. O Governo na altura tomou uma decisão. Nos contratos antigos, anteriores a 1990, não se mexe, mas os novos passam a ser a prazo, e os senhorios podem não renovar. Os senhorios, em regra, iam renovando, desde que as pessoas pagassem as rendas. Agora isso acabou. Hoje deixou de haver casas para estes contratos a prazo e os contratos antigos vão desaparecendo à medida que as pessoas morrem.

Qual a solução que propõe?
Olhar de novo para a lei das rendas e introduzir um forte incentivo ao arrendamento a longo prazo, porque o senhorio também não tem que pagar o seu investimento social. Era muito simples: contratos a dez anos teriam 50% de isenção sobre o valor do IVA e contratos a 20 anos teriam isenção total do IVA.

Defende uma subvenção do Estado ao arrendamento de longa duração?
Não é uma subvenção, é um reconhecimento do Estado de que é preciso consolidar o tecido social dos territórios e que a habitação é um direito constitucional. E portanto quem investe nesta área, podendo investir noutras de maior lucro imediato, tem que ter a devida compensação do ponto de vista das suas obrigações fiscais. Por esta via, conseguiríamos revitalizar o mercado arrendamento de longa duração.

Esse mercado foi afectado desde quando?
À medida que o alojamento local foi surgindo como uma medida de resistência ao desemprego e à austeridade, quando se começou a perceber que tinha uma taxa de rentabilidade elevada, começou a despertar a atenção dos grandes grupos e de investidores. Fundos imobiliários, bancos, seguradoras compraram ruas inteiras, com consequências desastrosas para quem lá morava. Quando em 2014 surgiu o alojamento local com toda esta força, os senhorios, mesmo em relação aos seus inquilinos cumpridores, passaram a mandar cartas a rescindir o contrato. O alojamento local passou de um negócio de sobrevivência a um negócio de grande retorno.

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