ENTREVISTA
"Fundos
imobiliários, bancos e seguradoras compraram ruas inteiras e as consequências
são desastrosas"
Alfama, Baixa, Chiado,
Mouraria e Castelo perderam desde 2013 quase dois mil habitantes. “Qualquer
solução que favoreça a reabilitação mas expulse residentes é uma má solução”,
diz o presidente da Junta de Freguesia, Miguel Coelho.
ANA DIAS CORDEIRO
31 de Março de 2018, 7:36
https://www.publico.pt/2018/03/31/sociedade/entrevista/o-estado-tem-de-reconhecer-que-a-habitacao-e-um-direito-constitucional-1808569
Miguel Coelho,
presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, quer combater o
“esvaziamento” do centro histórico dos seus habitantes. Embora o alojamento
local em Lisboa, na maioria dos casos (59%), tenha sido criado em imóveis
desocupados foi também criado em casas de arrendamento de longa duração ou de
habitação própria permanente em 32% das situações. Entre os residentes há mesmo
quem pergunte: “Quem vai votar nas próximas eleições autárquica, os turistas?”
É também essa a pergunta que se coloca o autarca do PS que desde 2013 perdeu
quase 2000 eleitores, na freguesia de Lisboa e do país com maior número de
apartamentos de alojamento local para turistas.
PÚBLICO – A que
se deve este “esvaziamento” de moradores na freguesia?
Miguel Coelho – É
consequência da conjugação de uma lei das rendas muito desequilibrada em favor
dos proprietários, de uma certa especulação e da ausência de uma lei do
alojamento local. O alojamento local é uma actividade desregulada e de grande
rentabilidade, com um benefício fiscal maior do que o da habitação permanente.
A maioria dos senhorios, sabendo que podem ganhar num fim-de-semana aquilo que
ganham num mês, faz tudo para tirar as pessoas das suas casas.
Também houve a
alteração da lei em 2012, durante o Governo de Passos Coelho.
A chamada Lei
Cristas [da então ministra Assunção Cristas] fragilizou os moradores com contratos
anteriores a 1990. Para além de toda a questão processual que era altamente
penalizante para pessoas com pouca literacia, também introduziu uma alteração
ao Código Civil. Antes a lei previa que, para cessar um contrato, uma obra
tinha de ser considerada profunda, e as câmaras municipais tinham que avalizar
que a obra era mesma profunda e precisava da desocupação do fogo. O pacote
legislativo de 2012 liberalizou esta componente, passando a considerar
suficiente que o técnico responsável, ou seja, o técnico pago pelo proprietário
da obra, assinasse um documento a certificar que a obra era profunda, e por
esta via, muitas pessoas que tinham contratos seguros até ao fim da vida,
ficaram de repente fragilizadas. Entretanto, isso foi parcialmente corrigido
[com as alterações à lei em 2017], mas o mal está feito.
Esta facilitação
das obras profundas não serviu para reabilitar os prédios em decadência?
Reabilitar os
prédios é importante. Mas a reabilitação foi para os transformar a habitação em
alojamento local. Qualquer solução que favoreça a reabilitação mas expulse
residentes é uma má solução. As pessoas estão sempre em primeiro lugar. Nos
anos 1980, os senhorios começaram a chamar muito a atenção para a sua própria
descapitalização, para o facto de terem rendas muito baixas. O Governo na
altura tomou uma decisão. Nos contratos antigos, anteriores a 1990, não se
mexe, mas os novos passam a ser a prazo, e os senhorios podem não renovar. Os
senhorios, em regra, iam renovando, desde que as pessoas pagassem as rendas.
Agora isso acabou. Hoje deixou de haver casas para estes contratos a prazo e os
contratos antigos vão desaparecendo à medida que as pessoas morrem.
Qual a solução
que propõe?
Olhar de novo
para a lei das rendas e introduzir um forte incentivo ao arrendamento a longo
prazo, porque o senhorio também não tem que pagar o seu investimento social.
Era muito simples: contratos a dez anos teriam 50% de isenção sobre o valor do
IVA e contratos a 20 anos teriam isenção total do IVA.
Defende uma
subvenção do Estado ao arrendamento de longa duração?
Não é uma
subvenção, é um reconhecimento do Estado de que é preciso consolidar o tecido
social dos territórios e que a habitação é um direito constitucional. E
portanto quem investe nesta área, podendo investir noutras de maior lucro
imediato, tem que ter a devida compensação do ponto de vista das suas
obrigações fiscais. Por esta via, conseguiríamos revitalizar o mercado
arrendamento de longa duração.
Esse mercado foi
afectado desde quando?
À medida que o
alojamento local foi surgindo como uma medida de resistência ao desemprego e à
austeridade, quando se começou a perceber que tinha uma taxa de rentabilidade
elevada, começou a despertar a atenção dos grandes grupos e de investidores.
Fundos imobiliários, bancos, seguradoras compraram ruas inteiras, com
consequências desastrosas para quem lá morava. Quando em 2014 surgiu o
alojamento local com toda esta força, os senhorios, mesmo em relação aos seus
inquilinos cumpridores, passaram a mandar cartas a rescindir o contrato. O
alojamento local passou de um negócio de sobrevivência a um negócio de grande
retorno.
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