Souto Moura e o
projecto para a Praça das Flores
Nem todos os projectos de grandes nomes são a valorização dos espaços para
onde foram concebidos. Às vezes são a sua verdadeira e triste banalização.
MIGUEL DE
SEPÚLVEDA VELLOSO
21 de Março de
2018, 6:17
Há arquitectos
“via rápida”. A mera menção do seu nome deve obrigar os céus e a terra a vergar
o joelho e a baixar os olhos. E Eduardo Souto de Moura conta-se entre eles.
Arquitecto cujos méritos nunca ninguém discute e que raramente vê os seus
projectos contestados. Quando tal acontece, o senhor Pritzker acha que as
queixas são infundadas e que o simples mortal não vê o que está em jogo, a
qualidade, a inovação, o rasgo da obra proposta.
Vem isto a
propósito da recente retoma dos trabalhos para a construção do enfadonho
projecto para a Praça das Flores, em Lisboa. Num colóquio havido no Mosteiro da
Batalha sob o título “Confronto com a Herança – A arquitectura contemporânea
portuguesa e a sua relação com o património construído”, onde se pretendia
debater o apelo da arquitectura dita contemporânea e a herança patrimonial, as
pré-existências, o nosso segundo Pritzker foi um dos convidados, tendo sido
moderador o arquitecto Manuel Graça Dias. Contava-se, ainda, entre os ilustres,
a directora da DGPC, Paula Silva, também ela arquitecta.
O projecto trazido
por Eduardo Souto de Moura, a pedido dos organizadores, foi precisamente o da
Praça das Flores, que irá substituir uma casa típica da Lisboa popular — dois
andares, janelas de cantaria, varandas e uma água-furtada — por um prédio com
uma linguagem ultra contemporânea, com uma “fachada-retaguarda” que o
arquitecto criou para celebrar o jardim no tardoz do edifício, espaço que o
autor considera que deve privilegiar em detrimento de uma fachada que abra para
a rua, ou seja, para a vida da cidade. De casas-fortaleza, espelhadas, de
vidro, de betão, já Lisboa tem a sua quota-parte, sendo a casa da Rua de São
Bernardo projectada pelos arquitectos Aires Mateus uma peça a não perder para
se perceber até onde vai a escolha de murar o espaço urbano.
De uma cidade orgânica
em que há uma comunicação, mesmo que ténue entre a rua e o edificado, estes
arquitectos defendem um corte, um muro cego absolutamente hostil ao espaço
circundante.
Souto de Moura e,
para o caso, Graça Dias, afirmam que o projecto em causa deve ser construído
uma vez que a Praça das Flores é um lugar corriqueiro, cujo único aspecto digno
de nota é o maciço arbóreo. Tudo o resto são construções banais, populares, comezinhas
que ousam ombrear com a obra-prima que o arquitecto Pritzker projectou para
aquele lugar. Manuel Graça Dias acha até que esse corte com a tipologia de uma
praça como a das Flores será uma mais-valia, a única peça digna num tecido de
baixo nível, portanto, descartável.
Para sublinhar
essa ideia, verdadeiro ovo de Colombo para justificar a construção de uma peça
em tudo dissonante do que a rodeia, escolheram apresentar uma série de
fotografias das malfeitorias feitas à praça ao longo dos anos: PVC nas janelas,
bocas de ar condicionado nos prédios, toldos de restaurantes. Premeditadamente,
omitiram o facto de todos esses desmandos serem amovíveis, o que levaria à
reposição do tecido urbano original. Não quiseram referir, ainda, o facto de,
frequentes vezes, as regras em matéria de intervenção em zonas históricas
ficarem no tinteiro.
Em Lisboa é muito
fácil adulterar o património, fazendo tábua-rasa das disposições que, se fossem
postas na prática por quem constrói, evitariam os males a que, precisamente,
aludiram os arquitectos.
Convém destacar
que este processo tem feito correr alguma tinta na imprensa. Foi alvo de uma
forte contestação por parte dos moradores que não querem ver a harmonia da
Praça das Flores destruída por um projecto que consideram medíocre e fora de
contexto; as obras estiveram suspensas pela interposição de uma providência
cautelar apresentada por algumas organizações defensoras do património; e houve
uma petição a circular que recolheu 1700 assinaturas. Tudo coisas que para
Souto de Moura e, suspeito, para grande parte do público presente no colóquio,
são meras desatenções com que o povo brinda o projecto emblemático, visto como
a única forma de dar relevo arquitectónico a um local de Lisboa que, em
absoluto, é, na opinião douta dos senhores, falho de qualquer interesse.
Tinham razão os
carismáticos arquitectos. A construção da casa vai avançar. O interesse de uns
poucos sobrepôs-se, mais uma vez, ao interesse da cidade. Relembra-se que os
técnicos dos serviços de urbanismo da CML deram parecer negativo à intervenção
e que foram desautorizados pelo seu director, por este considerar que os gostos
são subjectivos e por isso a posição mais forte determinaria a bondade ou a
ausência dela nesta polemica operação.
Há uma certa
categoria de arquitectos que partem do inusitado princípio de que não devem
justificações a ninguém, que as cidades e as suas características são um vasto
campo de possibilidades para nelas colocarem o produto da sua criatividade, não
olhando ao local onde pretendem erguer as suas casinhas, os seus prédios, as
suas estruturas.
Serão as cidades
a sujeitarem-se ao risco destes cavaleiros da inovação e ousadia. É verdade que
a arquitectura é o que molda o urbano, o espaço onde vivemos, constrói o
cenário, a imagem, as referências da cidade. Mas também é verdade que é falso o
argumento que pretende passar a ideia de que no Renascimento se construíram
palácios com outra linguagem ao lado de catedrais góticas, que igrejas
românicas foram elevadas sobre os escombros de antigas mesquitas, que há
edifícios icónicos no mundo que não teriam sido erguidos se não se tivesse
ambicionado romper com o pré-existente.
É falso porque
insinua que o contexto actual é igual ao de há 200 ou 300 anos. O que é
manifestamente simplista e redutor.
E é falso,
também, não porque isso não tenha acontecido, mas porque se contorna o facto de
a preocupação em preservar o existente não ser de hoje. Já o Marquês de Fontes
no século XVIII chamava a atenção para a necessidade de inventariar, conhecer e
salvaguardar o património ou, mais recentemente, a notável abordagem adoptada
por Siza Vieira na reconstrução do Chiado, reduzindo ao mínimo a assinatura do
arquitecto para que fosse o urbanismo dessa parte vital de Lisboa a impor-se. O
arquitecto a pautar-se ao espaço e não a enxertá-lo com obras que o violentam.
Em Roma há um
palácio que é uma obra-prima do Renascimento. Com projecto de Sangalo, que o
construiu até ao primeiro andar. A família queria, contudo, aumentá-lo para dar
visibilidade à sua importância por ocasião da ascensão ao trono pontifício de
um dos seus membros. Para isso chamou outro arquitecto que propôs acrescentar
mais dois andares ao plano original, aumentar a cornija e reformular a janela
do andar nobre para sustentar a enorme pedra de armas. Só que, ao inovar, fê-lo
numa continuidade com o projecto de Sangalo. Esse palácio é o palácio Farnésio
e o segundo arquitecto foi Miguel Ângelo.
Seria, talvez,
adequado que nas faculdades de arquitectura em Portugal se ensinasse um pouco
mais de História da Arte e um pouco menos da teoria de que tudo é possível
fazer-se numa cidade histórica.
Souto de Moura é
responsável por um corte absoluto numa das praças que muitos lisboetas
consideram como uma das mais bem preservadas. E consideram-no porque a vivem
assim e assim gostariam de continuar a vê-la. É também responsável pela
destruição de dois grandes prédios característicos da Lisboa pombalina para o
alargamento do Bairro Alto Hotel. Levou ao chão todos os interiores, arrasou as
mansardas, deu cabo do frontão triangular da fachada de um deles. Desta
operação de charme arquitectónico nascerão dois prédios mais altos, em que se
reproduzirá o que foi demolido.
Fica-se sem
perceber como justifica o arquitecto esta contradição. Na Praça das Flores o
que lá está pode ser ignorado e construir-se de raiz numa linguagem dissonante,
na Rua do Alecrim, recria-se o que lá estava, no pastiche que tantos
arquitectos condenam como uma prática venial e patética.
Não há teoria da
arquitectura que o possa explicar. Há, sim, a arbitrariedade com que a CML, a
DGPC, os promotores e os arquitectos agem na cidade. Nem todos os projectos de
grandes nomes são a valorização dos espaços para onde foram concebidos. Às
vezes são a sua verdadeira e triste banalização. O desfecho desta polémica com
a viabilização do projecto de Eduardo Souto de Moura para a Praça das Flores é
sintomático da arrogância com que uma certa elite decide os destinos dos
espaços que são de todos e que por muitos são vistos como de natural manutenção
e lógica permanência.
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