terça-feira, 27 de março de 2018

A minha casa vale um milhão?



A minha casa vale um milhão?

Achar que aquilo a que se assiste em Lisboa é "normal porque o centro é para os ricos" é ignorar que a maioria das casas a preços doidos são mais que modestas. "Ricos" não vivem em Tzeros a mil euros.

26 DE MARÇO DE 2018
Fernanda Câncio

Há semanas, descobri um papel entalado na porta do apartamento. Era de uma imobiliária, a sugerir que o vendesse. Habituada ao irritante de tocarem às campainhas do prédio em busca de apartamentos à venda ou encontrar folhetos destes nas caixas de correio, achei de mais. Liguei para o número que lá vinha e quem me atendeu, pedindo desculpa, explicou-me que entrara no meu prédio porque tinha visto na net um apartamento no meu quarteirão à venda e queria perceber qual era porque tinha clientes para ele. Curiosa, fui à procura. É uma casa igual à minha, num prédio sem elevador nem garagem. Pedem mais de um milhão.

Quando comentei o facto no Facebook, houve quem me perguntasse por que raio estava preocupada com o facto de o meu apartamento poder valer tanto; alguns amigos garantiram-me que no meu lugar venderiam, na boa. É compreensível: um milhão é muito dinheiro. Mas com um milhão na mão teria de procurar outro sítio para viver, não sendo certo conseguir uma casa semelhante por valor mais baixo. Além de que a questão está longe de se colocar em meros termos financeiros ou sequer do desgaste de tempo e energia à procura de novo sítio para viver: a relação afetiva que tenho com a minha casa e o lugar onde vivo é estruturante na minha vida.

Este fator - o emocional - é tão relevante no que respeita à habitação que em vários estudos económicos sobre mercado de arrendamento que li na preparação para a reportagem anteontem publicada no DN, sobre a dificuldade que pessoas com salários/ rendimentos médios-altos têm hoje em dia em encontrar casas a preços compatíveis para arrendar/ comprar em Lisboa, é mencionado como fundamental nas variáveis e custos a ter em conta em qualquer pensamento sobre esse mercado. Daí que tenha dificuldade em perceber alguns comentários que li em relação à reportagem, nomeadamente de quem diz: "Se não conseguem arranjar casa no centro, vão viver para outro lado, é simples."

A ideia de que o desespero de um grupo muito alargado de pessoas que tem o desejo de habitar na capital ou de continuar a habitar nela e que vê como traumática a expulsão/exclusão é uma espécie de birra de mimalhos que têm mais é de ir para os subúrbios (onde, já agora, os preços estão a subir a velocidade tão alucinante como em Lisboa-cidade) como "tantos outros foram também por motivos económicos", e de que aquilo que está a acontecer em Lisboa é "normal" porque "em todo o lado o centro é para os ricos", é-me incompreensível. Porque, se é natural que uma habitação central seja mais cara do que nos subúrbios, não há nada de natural em que o grosso do parque habitacional de Lisboa, longe de bem apetrechado do ponto de vista de um "rico", atinja os preços atuais e continue em trajetória ascendente. Trata-se, na maioria dos casos, de apartamentos sem garagem, elevador ou sequer aquecimento, de dimensões modestas, em prédios sem segurança sísmica, com problemas de isolamento térmico e de ruído. Ou seja, de casas modestas.

É "a lei da oferta e da procura"? Talvez. Mas isso não significa que exista nesta situação racionalidade económica; será que depois da crise de 2008/2009 ainda é preciso explicar que as dinâmicas de mercado podem ser totalmente irracionais? E não é por acaso que numa série de países, incluindo nos EUA, foram criados sistemas de regulação e estabilização das rendas. Não é por acaso que vários têm um esquema de habitação a custos controlados que visa criar oferta compatível com o salário médio (não se trata da clássica "habitação social"), dessa forma contribuindo para regular o mercado, e que fazem depender o preço que se pode pedir por uma casa das suas condições objetivas; não é por acaso que em pelo menos um - a Alemanha - existe o conceito de "renda usurária", ou seja, especulativa, tipificada como crime.

"Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar", diz o artigo 65.º da Constituição, que obriga o Estado a "assegurar esse direito", "programando e executando uma política de habitação". Significa isto que o Estado tem de dar a cada um uma casa à medida dos seus desejos? Naturalmente que não. Mas o que não significa decerto é que assista, impávido, à transformação do mercado imobiliário numa selvajaria que destrói o tecido social das cidades e desordena ainda mais um território desordenado crónico, limita drasticamente as perspetivas de vida, incluindo as decisões sobre ter ou não filhos, onera o erário público no que respeita a sistemas de transportes, aumentando ainda mais a fatura ambiental pelo incremento do uso do transporte individual e, não despiciendo, faz as pessoas infelizes. E, por favor, não se diga, no país onde todos os governos até hoje mantiveram e, no caso do atual e anterior, reforçaram um regime draconiano de congelamento de rendas nos contratos anteriores a 1990, que "não se pode mexer no mercado" ou "os proprietários são soberanos". Tem de haver um meio-termo entre a barbárie da especulação desenfreada e a barbárie de obrigar proprietários a fazer de santa casa, subsidiando inquilinos. Entre a total desproteção e indiferença e o obrigar privados a assumir as obrigações do Estado, numa ignominiosa iniquidade. Entre termos cidades ou algo que não se sabe o quê.

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