REPORTAGEM
Para Carla,
Maria e Rafael, a crise começou agora
Moradores do
centro histórico de Lisboa pressionados a deixarem as suas casas. No último ano
duplicaram os pedidos de ajuda no escritório de advogados da Junta de
Freguesia.
ANA DIAS CORDEIRO
Texto e DANIEL ROCHA Fotografias 31 de Março de 2018, 7:34
Viver no coração
de Alfama é o mesmo que estar sozinho no mundo – pelo menos para Rafael Moreno,
com quase 80 anos. A tristeza pesa nas pálpebras dos seus grandes olhos claros
e o seu olhar é mais arrastado que o seu andar. Falar custa-lhe: não pelo cansaço;
pelo que tem para dizer.
É como se se
sentisse a mais nas duas assoalhadas onde se conta toda a história da sua vida,
no quarto da mãe onde ele nasceu, ou na assoalhada ao lado, separada pela
cozinha interior, uma divisão onde tem quarto e escritório, papeladas e
canetas, candeeiro aceso, óculos pousados, como no tempo em que trabalhava num
escritório de uma empresa.
É demasiado mau o
que sente. Por isso abrevia, enquanto mostra, num gesto generoso mas rápido, a
casa que quer guardar até morrer. A proprietária do prédio insiste que ele
saia, para renovar o prédio e lhe dar outro uso.
Agora que ela lhe
tirou a caixa do correio (o carteiro entrega tudo ao vizinho) e o intimida com
a sua constante presença, Rafael Moreno vive no medo de ser levado dali.
Quiseram fazer-lhe um contrato de cinco anos e ele recusou. Teme represálias,
por isso o nome é fictício.
Tem sido
atormentado, meses a fio, pelo ruído ensurdecedor das obras que se prolongam de
manhã à noite, nos andares de baixo e de cima. É sua convicção que tentam
desgastá-lo, ver até quando aguenta o ruído demolidor de arranjos aqui e ali,
que lhe despedaçam o prédio e o quotidiano.
Mais pedidos de
ajuda
De cada vez que
recebe um aviso – e são muitos – vai de Alfama à Rua dos Fanqueiros na Baixa
onde três advogados se dedicam a tempo inteiro a tratar casos como o dele: em
2017, o escritório tinha recebido 300 pessoas, pelo menos 200 das quais por
ameaças de despejo. Esse número mais do que duplica em 2018: “Todas as semanas
20 pessoas vêm bater-nos à porta”, diz a advogada Carol Gonçalves. E dessas, 15
são pelos mesmos motivos. Além destes, "muitas mais pessoas vivem estas
situações, mas não nos procuram por desconhecimento ou medo de
represálias".
Quando os
contratos são anteriores a 1990, o senhorio nada pode fazer sem o inquilino
concordar. Mas as pessoas são pressionadas a sair, explica a jurista. Conta
como o advogado do senhorio entrou na casa de uma senhora e rasgou o contrato
de arrendamento. O documento existe, é válido, mas a postura ameaçadora
mantém-se neste e noutros casos de pessoas que vivem sozinhas.
No ano passado,
chegaram ao escritório de advogados dezenas de casos em que o senhorio fechara
a conta bancária na tentativa de impedir o inquilino de pagar a renda, e ter
argumento para uma ordem de despejo por incumprimento.
“Nesses casos,
fazemos uma consignação em depósito todos os meses e o dinheiro é depositado no
banco” em nome do senhorio, explica Carol Gonçalves entre o corrupio de
telefones que tocam com pessoas a tentar esclarecer situações ou marcar um
atendimento. Neste escritório de advogados, junto à Praça da Figueira, a
primeira coisa que se diz às pessoas é: “Não assinar nada”.
A palavra de
ordem é “resistir”, completa o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria
Maior, Miguel Coelho, que contratou estes advogados para se dedicarem a tempo
inteiro a estas ameaças e tentativas de despejo dos moradores.
“Quando em 2014
começámos a perceber que se tratava mesmo de uma estratégia concertada sobre
esta população, contratámos este escritório só para tratar deste assunto. Com
uma orientação muita clara que a Junta de Freguesia deu: resistir”, explica.
“Na dúvida, segue
tudo para tribunal”, defende Miguel Coelho. “Mesmo nos contratos onde
aparentemente não assiste a razão legal ao inquilino, ele não deve aceitar o
despejo a não ser com ordem do tribunal.”
Em 2012, com as
alterações impostas pela troïka às leis do arrendamento, no sentido de
liberalizar o mercado, passou a ser mais fácil despejar inquilinos dos prédios,
independentemente de o contrato ser anterior ou posterior a 1990.
Mudanças nas leis
Antes de 2012,
era necessário um documento comprovativo da câmara a atestar a necessidade de
obras profundas ou demolição, o que tornava muito difícil justificar a saída
dos inquilinos. Com as alterações de 2012, para forçar a retirada temporária ou
definitiva de arrendatários, passou a ser apenas exigido ao senhorio apresentar
uma declaração do técnico de projecto, por si contratado, de que eram
necessárias obras profundas.
Essa
obrigatoriedade voltou a vigorar com as alterações em 2017 mas em função do
valor do património. Ou seja, se a obra tem um valor igual ou superior a um
terço do valor patrimonial do imóvel, automaticamente é considerada obra
profunda, explica Miguel Coelho.
Entre 2012 e
2017, as pessoas com menos de 65 anos eram retiradas facilmente e recebiam uma
indemnização. Mesmo nos contratos sem termo passou a ser possível despejar as
pessoas em caso de necessidade de obras profundas, bastando para isso o
certificado de um técnico contratado pelo proprietário.
Aqueles que
tinham mais de 65 anos estavam protegidos mas nem sempre era possível, como
previa a lei, realojá-los, na mesma freguesia ou freguesia limítrofe, com a
mesma renda. Nesses casos, mudaram-se para as periferias de Lisboa.
Terminados os
cinco anos da entrada em vigor dessa lei, chegam agora ao fim os novos
contratos passados em 2012 ou 2013. “Os efeitos dessa lei de 2012 estão a
verificar-se agora e os senhorios não renovam os contratos", diz o
advogado Carlos Fernandes. "Os próprios senhorios e os promotores
imobiliários aproveitam-se da fragilidade destas pessoas.”
E recorrem a
diversas tácticas intimidatórias, acrescenta Carol Gonçalves. "Fazem
pressão psicológica até ao momento em que intervém um advogado." Muitos
inquilinos não sabem que a mudança de proprietário não obriga a alterar o
contrato.
As obras para
importunar são frequentes, como os contactos, presenciais ou por carta, a
informar que as pessoas têm de sair porque o prédio necessita de obras ou
porque o contrato vai mudar, ou terminar. E mesmo nos casos em que o prédio
necessita de obras, e esse argumento seria validado pela câmara, não é certo
que as obras se façam por essa via: num caso em Alfama, o proprietário quer
esvaziar o prédio, com esse argumento para retirar as pessoas, mas o objectivo
é vender o imóvel como está, realizando uma mais-valia, mesmo sem as obras.
Especulação e
alojamento local
“Se as pessoas
têm um contrato válido, ninguém os pode tirar de lá”, garante o presidente da
Associação Nacional dos Proprietários, António Marques Frias, que atribui a
principal responsabilidade das tentativas de forçar as pessoas a saírem das
suas casas no centro histórico de Lisboa aos negócios de grupos com interesses
imobiliários, alguns estrangeiros: chineses, franceses, brasileiros, e também
portugueses. “O alojamento local existe” mas não é o motor principal destes
movimentos, considera.
Há prédios que,
num só ano, mudaram de proprietário três vezes e de todas as vezes, o preço
aumentou, conta. “Há uma super especulação.” Reconhece a pressão como bullying
sobre o inquilino mas diz que estes actos não são praticados pelos senhorios
tradicionais, mas sim por quem compra.
Um idoso sozinho
pode ser levado a assinar um novo contrato, temporário, por não estar informado
dos seus direitos. Aconteceu com Maria, há poucos meses.
Maria tem 80 anos
e um contrato de 1978. Quando o prédio foi vendido uma primeira vez em 2014 a
uma investidora chinesa, Maria assinou em 2015 um contrato de um ano renovável
todos os anos. Fê-lo sem aconselhamento ou conhecimento dos filhos.
Nada aconteceu
até Agosto de 2017, quando recebeu uma carta a informá-la que teria de sair da
casa em Janeiro de 2018. A carta vinha de um segundo novo proprietário, uma
empresa de construção portuguesa, que acabara de comprar a casa que estava
desde 2014 em nome da senhora de nacionalidade chinesa.
Induzidos em erro
Maria foi
abordada pelo advogado da nova empresa proprietária que lhe explicou que tinha
realizado o negócio da compra do imóvel apenas com base na validade do contrato
de um ano que esta assinara em 2015, e que por isso ela teria de sair. O
advogado justificou que não tinha conhecimento da existência de um contrato
vitalício anterior, e por isso não o poderia reconhecer. Também ele fora
enganado pela anterior proprietária que só lhe omitiu a existência do contrato vitalício.
Assim, e com o
objectivo de vender o prédio todo, vazio, o anúncio na página de uma agência
imobiliária, mostra o prédio à venda com a data em que os vários andares
ficarão livres à medida que os inquilinos forem saindo, de acordo com o plano
da nova empresa proprietária. A data que aparece para o andar de Maria ficar
livre é Fevereiro de 2018. O prédio ainda não foi vendido e Maria ainda não
saiu.
“Ela está muito
agarrada à esperança de ficar ali. Tem a vida dela toda ali. Vai quase todos os
dias à Igreja de São Domingos, onde se organizam para as ajudas ao Banco
Alimentar. Tem as pessoas com quem convive desde sempre”, diz a filha. “Mas
decidimos deixar correr o processo.”
Ainda não
receberam a resposta à contestação apresentada, logo em Agosto, à ordem de
despejo. Por falta de meios, os processos estão atrasados no Balcão Nacional do
Arrendamento, criado em Janeiro de 2013.
Na recusa à carta
de “oposição à renovação do contrato”, o advogado apresentava argumentos
vários, como o de a arrendatária ter sido “criminosamente induzida em erro”
quando levada a assinar um contrato por um ano em 2015 ao mesmo tempo que lhe
garantiam “que se manteria na casa enquanto fosse viva”. Alegava ainda ter
havido “manifesto vício de formação da vontade”, no sentido de Maria ter sido
induzida em erro, mas também apontava o facto de o novo contrato (a termo) ser
assinado sem o anterior (vitalício) ter sido revogado.
Expulsos e
acolhidos de emergência
Carla Cunha não
chegou a ter medo ou esperança. Não houve tempo. A sua vida numa casinha no
Pátio do Carrasco, junto à Sé, terminou no dia em que lhe cortaram a água e a
luz, por ordem do novo proprietário que acabara de comprar dois imóveis do
típico pátio onde os moradores realizam arraiais familiares.
Quando o contrato
de cinco anos estava a poucos meses de terminar, o senhorio, que sempre os
tratou bem, informou Carla que ia vender o prédio, mas que poderiam ficar, nem
que fosse através da assinatura de um contrato de um ano quando em Setembro
terminasse o contrato de cinco anos. Em vez disso, Carla Cunha recebeu ordem de
saída. “Neguei-me a sair. Disse para chamarem a polícia.”
Não haveria ordem
de despejo, porque sempre pagaram todas as contas e rendas a tempo, acreditou
Carla. Mas quando lhe cortaram água e luz, em pleno mês de Novembro, o casal e
as duas crianças tiveram de ser acolhidos numa casa da Protecção Civil em Marvila.
“Fomos vítimas de bullying. Estas empresas não olham a meios para atingir os
fins."
Guarda uma chave
da casinha do bairro onde os quatro tinham a sua vida, a escola das crianças, o
centro de saúde, e só a entregará em tribunal. Não espera ganhar por via
judicial, mas não aceita o que lhe fizeram sobretudo tendo a seu cargo duas
crianças pequenas.
“Eu resisto. Por
nós, pelo que me fizeram. E resisto também pelas pessoas desprotegidas que são
pressionadas a sair e não sabem o que fazer”, diz Carla com convicção. “Quando
for a tribunal, pelo menos, vou ter oportunidade de olhar o juiz nos olhos e de
lhe perguntar se ele acha que esta empresa praticou o bem ao colocar uma
família com duas crianças na rua. Não sou contra o turismo. Sou contra estas
leis que privilegiam as empresas e não os habitantes. Em Lisboa não existe só
gente rica ou de classe média. Existe a gente pobre que é a alma da cidade. Se
não fossemos nós, Lisboa também não era nada.”
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