Lisboa, a cidade
das casas impossíveis
João Silvério, 55
anos, saiu do Saldanha para os Olivais. “No centro era impossível pagar a renda
sozinho. E tudo o que vi noutros sítios a este preço, 750 euros, era T0”
Crónica do
desespero de quem descobre que não ser proprietário é "pecado digno de
grande castigo"
24 DE MARÇO DE
2018
Fernanda Câncio
Mesmo com um
salário bem acima dos 900 euros da média pode ser impossível encontrar uma casa
para arrendar em Lisboa. Há quem mude para Almada, quem viva em república, quem
entre em negação, quem deprima e quem prometa luta. Crónica do desespero de
quem descobre que não ser proprietário é "pecado digno de grande
castigo".
""Estou
a ganhar 1400 euros líquidos, o que para a minha geração é incrível, mas não
dá. Não consigo arranjar uma casa a um preço compatível. Ando há um ano à
procura, com o meu namorado, a ver preços para arrendar ou comprar, mas nunca
tentámos negociar porque é demasiado caro. O budget para arrendar era entre os
500 e 600. Talvez possamos dar 700 euros, com um bocado de esforço. Há seis
meses ganhava isso. Agora ganho mais mas gosto de ir ao cinema, jantar fora de
vez em quando, ter vida."
Vida, porém, é
algo que Raquel Sirvoicar Rodrigues, 27 anos, advogada a trabalhar na Avenida
da Liberdade, tem pouco: a morar em Santo António dos Cavaleiros (Loures) no T2
do avô de uma prima, trabalha todos os dias até muito tarde - duas, três da
manhã - e dorme poucas horas para estar no dia seguinte no escritório às nove.
O namorado, consultor numa empresa de tecnologia informática, tem os mesmos
horários. "Vimos de carro e é uma hora todos os dias. Andamos exaustos. E
não sei que solução haverá para isto. Estamos a juntar dinheiro mas os preços
estão sempre a aumentar. Não sei se é uma bolha e se for quanto tempo vai
durar. Conheço imensa gente à procura. Há até casais a partilhar casa com
outros casais. Tenho um colega da minha idade nessas circunstâncias, são seis a
viver no mesmo apartamento e pagam um balúrdio [o colega de Raquel não quis
falar com o DN]. Já vimos apartamentos em zonas mais periféricas, Ameixoeira,
Carnide, a mil euros. Casas podres, más. No outro dia havia uma no Marquês por
1700 e mesmo assim precisava de obras. E uma de 900, cara de mais mas tão
bonita que quisemos ir ver, foi tomada antes de lá conseguirmos ir, por alguém que
nem sequer a visitou." Suspira. O programa de apoio ao arrendamento jovem,
Porta 65, não lhe vale: "Passámos o limite do rendimento e as rendas que
encontramos são sempre desadequadas ao rendimento. Estou em cima dos sites das
casas que a banca põe no mercado, na perspetiva de comprar, mas as que há são
horríveis e desaparecem logo. Talvez tenha sorte e me apareça um bom negócio,
mas para ir para longe prefiro ficar onde estou." E enquanto ali estiver,
numa casa emprestada, ter filhos parece-lhe fora de questão. "Queria
mudar-me antes disso, precisaríamos de mais espaço. E onde é que, a viver aqui,
tinha tempo para ir pôr as crianças na escola e buscá-las?"
Rita Silva, da
associação Habita, participa hoje na manifestação-festa Rock in Riot - Ocupar a
Rua, Reclamar a Cidade, na Avenida Almirante Reis |
DIANA QUINTELA / GLOBAL IMAGENS
Casos como o de
Raquel - jovens no início da vida profissional que não encontram lugar numa
cidade onde uma casa ao preço do ordenado mínimo se fez miragem - serão decerto
muitos; ninguém sabe quantos, é uma investigação que não se fez, a do número de
pessoas que buscam habitação em Lisboa. O que finalmente se sabe, pelos dados
publicados pelo INE esta semana, os primeiros sobre a mediana dos preços do
arrendamento - ou seja, o preço a meio entre os mais altos e os mais baixos, o
que é diferente da média -- no país e dizendo respeito a 2017, é que não há
exagero de quem se queixa: o panorama é assustador. Em Lisboa município, a
mediana é de 9,62 euros por metro quadrado, variando entre mais de 11,7 no
Parque das Nações (logo seguido pela freguesia da Misericórdia, que engloba
Chiado, Cais do Sodré e Bairro Alto) e 6,82 em Santa Clara (correspondente às
antigas freguesias de Ameixoeira e Charneca, na periferia). Mas, como frisa ao
DN o presidente da Associação dos Profissionais de Empresas de Mediação
Imobiliária de Portugal (APEMIP), Luís Carvalho Lima, estes valores, apesar de
serem os mais altos do país, significariam que seria possível encontrar casas
de 50 metros quadrados a 500 euros no centro da cidade - "E não há.
Aqueles valores que ali estão não são realistas. Por outro lado, mais de 50,
60% das pessoas que procuram casa só podem pagar 300, 350 euros. E isso não
existe como oferta." Garantindo que os clientes para os preços de
arrendamento que se praticam neste momento em Lisboa "não são portugueses,
são quadros de empresas estrangeiras", este auto descrito "homem de
mercado" acha que "o mercado não vai resolver o problema, porque as
pessoas querem ganhar o mais possível. Tem de ser o Estado a fazer qualquer
coisa. O presidente da Câmara diz que vai pôr casas nos mercado a preço
compatível com as famílias portuguesas, mas têm de ser milhares para regular o
mercado."
"Têm de
parar esta carnificina"
Para Maria,
investigadora a fazer doutoramento, 29 anos, mais o marido, o bebé de dois anos
e o cão, essa poderá ser a única hipótese de voltar a Lisboa. Viveram dois anos
e pouco ao pé da Avenida de Roma num apartamento de 45 metros quadrados com
problemas de humidade pelo qual pagavam 600 euros "por baixo da mesa"
- "Estávamos há um ano à procura, apesar de na altura mão estar tão mau
como agora, e só quando fomos ver a casa é que o senhorio nos disse que não
queria fazer contrato. Acabámos por aceitar, embora com desconforto" - até
que em fevereiro de 2017 lhes pediram para sair. "Ficámos totalmente
atarantados. Começámos a ver casas e era tudo muito caro, espeluncas. Com o
bebé não podíamos ir para um sítio qualquer e um conhecido nosso tinha uma casa
livre em Almada e disse que no-la emprestava. Estamos lá há um ano. Queremos
começar a pagar renda, sentimo-nos mal." A experiência de viver em Almada,
que Maria não conhecia, não lhe parece assim tão má - o pior é levar uma hora e
quarenta para chegar ao trabalho. "Custa-me muito passar tão pouco tempo
com o bebé. Mas apesar de se calhar entre mim e o meu marido, que tem uma
empresa dele, podermos agora, que mudei de emprego e ganho mais, pagar uns 850
euros de renda, recuso-me ideologicamente a fazê-lo. Prefiro fazer hora e meia
de transportes e a pé e não participar neste mercado. Ainda ontem vi um T2 de
70m2 a ser arrendado por 2200 euros na zona onde vivia, caramba. Isto é muito
injusto, demonstra como a falta de regulação do mercado no que respeita a um
bem essencial tem consequências muito negativas para o tecido social. Se querem
que a cidade seja um sítio para habitar, têm de parar com esta carnificina. É
bom que não se esqueça que a habitação é fundamental para a sustentabilidade
demográfica, para planear os filhos. Eu por exemplo teria outro já e não vou
ter."
Carnificina é uma
expressão que Rita Silva, da Associação Habita, subscreverá sem hesitar. Parte
de um coletivo que convocou o protesto Rock in Riot para hoje na zona
Areeiro-Arroios-Intendente, a Habita, que surgiu ligada aos despejos de bairros
ditos "de lata" lida hoje cada vez mais com os despejados dos fins de
contratos de arrendamento no centro de Lisboa. "Desde o último ano que
sentimos que as coisas estão a ficar explosivas. Há muita gente que está neste
momento com a carta de não renovação de contrato na mão ou com medo de a
receber. E que não sabem o que fazer porque metem-se à procura de casa e não
encontram." Negando que grande parte destes despejos tenha a ver com
aquela que é geralmente denominada por "lei de Cristas" - numa
referência à atual líder do CDS, que enquanto ministra do Ambiente e
Ordenamento propôs alterações ao novo regime de arrendamento urbano que tinha
sido aprovado em 2006 pelo governo PS - a ativista crê que o tema da habitação
é "muito complexo, precisa de muita reflexão e está cheio de preconceitos
e ideias feitas." Chegámos aqui, crê, devido a vários fatores, sendo o
essencial o abandono de uma política de habitação por parte do Estado, que
"entregou o assunto à banca, com subsídios diretos." Defendendo
"controlo das rendas e não o seu congelamento", Rita Silva tem
consciência de que isso não chega. "Porque aí os proprietários põem tudo
em alojamento turístico ou vendem tudo aos estrangeiros. Tem de haver também
regulação do alojamento turístico, que continua a pagar menos impostos que o
arrendamento permanente, e repensar o investimento imobiliário - por exemplo o
programa Reabilita Primeiro Paga Depois foi muito usado para a especulação.
Vejo a secretária de Estado dialogante e interessada mas também oiço "não
vamos mexer no mercado porque está muito bom". Há uma contradição:
queremos que haja habitação para as pessoas mas não tocamos na lei das rendas,
nos vistos gold, mexemos no Alojamento Local com cuidado, nos incentivos
fiscais para residentes estrangeiros?"
"Rua rua que
esta casa não é tua"
Ana Benavente,
secretária de Estado da Educação nos governos de Guterres (1995-2001), partilha
a impaciência de Rita Silva. Com 72 anos, aposentada desde 2009 da sua carreira
na universidade pública e ainda no ativo na privada Lusófona, admite ter
"uma situação financeiramente confortável". Ainda assim, viu-se
aflita para arranjar uma alternativa quando os novos proprietários -- "uma
sociedade financeira" - do prédio para onde se mudou há quatro anos
denunciaram o contrato. "Vim para aqui porque a minha irmã e cunhado, que
viviam cá há 50 anos e estavam a pagar 80 euros, saíram e o senhorio queria
alguém conhecido. A renda era de 412 euros por quatro assoalhadas com duas
casas de banho, num prédio sem elevador nem placa que na altura ainda não tinha
tido obras. Achei normal, até porque esta zona, o Bairro dos Atores [entre a
Avenida Almirante Reis e a Penha de França] não tinha grande estatuto; a
loucura só chegou aqui há ano e meio. Em janeiro recebi uma carta de advogados
a dizer, em nome da tal sociedade, que se opõem à renovação. Perguntei o que
queriam, disseram 1500 euros no mínimo. Fiquei em choque, nunca pensei com esta
idade ter de procurar casa num mercado altamente inflacionado, de uma ganância
sem limites. Pensava viver aqui para o resto da vida e estava convicta, por mal
informada, de que as pessoas com mais de 65 estavam protegidas. Não
estamos."
De facto, a
proteção para maiores de 65 só se aplica nos contratos anteriores a 1990,
aqueles que correspondiam até 2006, data de publicação do Novo Regime de
Arrendamento Urbano, a rendas "congeladas". Parcialmente
descongeladas por esse diploma, que foi alterado em 2012, essas rendas são
fixadas, num período estendido até 2023, de acordo com o rendimento dos
inquilinos e mesmo após o período de transição não poderão ultrapassar uma
percentagem, determinada por lei (1/15) do valor patrimonial do locado.
Desenganada, a ex
governante pôs-se em campo. "Andei três meses - três meses de horror e
insónia -- à procura. Vi buracos a 900 e mil euros e cheguei a pôr a hipótese
de sair de Lisboa, ir morar para uma aldeia. Mas aterrorizou-me a ideia de
acabar a vida isolada, não por decisão mas por impossibilidade de encontrar uma
habitação digna." A experiência de procura não passou só pela certificação
de preços desajustados: "Agora temos de dizer quem somos, que rendimento
temos, estamos em concorrência." Revoltada com o que descobria, procurou
os movimentos que denunciam a situação. "Percebi que é o reino do horror.
Que as pessoas estão desorientadas, mal informadas, aflitas. Até eu confesso
que desde 1996 vivo em casas arrendadas e nunca olhei para os contratos. E, ao
contrário da ideia que se tem, as pessoas que estão neste desespero não são desmunidas.
São professores, jornalistas, fotógrafos. Não querem falar publicamente porque
acham que é um estigma, e que se aparecerem nenhum senhorio lhes vai querer
arrendar." Determinada a contrariar a vergonha e o silêncio, Ana anda, com
uma colega, a fazer uma recolha de testemunhos a que já deu nome: "Rua rua
que esta casa não é tua."
Entretanto,
conseguiu poiso -- a mil euros mês. "Vou pagar uma grande percentagem do
meu rendimento por um T2 com cozinha e uma casa de banho, na mesma zona. Está
muito bem arranjada mas apesar do preço é uma casa média, não é de ricos. E não
sei se daqui a três anos não recomeça tudo. Porque esta consegui através de uma
vizinha: pelos anúncios é impossível, tudo caríssimo. E mesmo um contrato de
três anos já me parece fantástico, nesta zona estão a fazer só de um ano."
Está a dar parte dos livros, que não cabem todos no novo apartamento; a filha,
que vivia com ela, está também à procura de casa. "Ela ganha pouco mais de
mil euros, não pode sequer pagar 700. Convenci-a a comprar. Porque o
arrendamento tornou-se a barbárie. Cheguei a ser proprietária mas deixei de ser
num divórcio e decidi que não queria nada meu, queria ser livre. Mas essa
liberdade transformou-se num castigo. Hoje em Portugal não ser proprietário é
um pecado digno de grande castigo."
Ana Benavente tem
ainda assim uma situação muito confortável se comparada com a de Teresa, que
partilha a mesma zona (Arroios/Areeiro). Com 58 anos, esta argumentista de TV,
mãe de seis filhos com dois ainda a viver consigo - um com 30 anos que devido a
um problema psiquiátrico é "muito dependente" e outro, com 20, na
faculdade - mais a irmã desempregada de longa duração, acaba de receber uma
carta a denunciar o contrato do T3 onde está há quatro anos e meio, pagando 750
euros, pouco mais de um terço do seu rendimento. "O contrato acaba em
agosto e nem me propuseram outra renda. Atendendo ao que sei dos preços que
estão a ser praticados, poderão arrendar por mais do dobro. Estou em fase de
negação, isto para mim era a minha casa. Sinto-me numa situação impossível,
naquele patamar em que não tenho direito a uma casa social e não consigo chegar
aos preços do mercado. Ainda nem comecei a procurar, mas para quê se não há
nada com o tamanho de que preciso e que possa pagar? Não sei que fazer."
Há um desespero
quase tranquilo na voz de Teresa, o de quem não consegue ver-se daqui a seis
meses sem ter onde viver ou em busca frenética de casa, como aquela que Joana,
46 anos, e João, 55, ela artista e professora universitária e ele curador de
arte contemporânea, levaram a cabo com alguns meses de intervalo. Com
rendimentos semelhantes, habitavam na mesma zona - Picoas/Saldanha - quando ela
em abril e ele no fim do ano perceberam que tinham de se pôr no mercado.
"Estava ali há seis anos a pagar 450 euros e fui-me deixando ficar, não
pensei em procurar para comprar. Tinha a esperança de mais tarde ou mais cedo
comprar aquela. Entretanto a bolha surgiu mas só percebi mesmo o que se está a
passar porque me aconteceu a mim", conta Joana. Durante um mês, fez
"profissão" de procurar um apartamento. "Acordava às seis da
manhã e fazia telefonemas. Vi muitas casas em Picoas por 750 e 800 euros onde
não cabiam as minhas coisas - e a minha casa já não era grande. Em Alvalade só
encontrei aluguer de curta duração. Fiquei com a noção de que é a selvajaria
total." Acabou porém por encontrar um T2 de 55 metros quadrados, em Belém,
por 650 euros (pouco mais de um terço do seu rendimento líquido) e contrato de
um ano. Acha-se cheia de sorte. "À partida disseram-me que quem se porta
bem fica. Mas quem está numa casa arrendada hoje em dia tem o coração nas
mãos."
Meses mais tarde,
João deparou-se com preços ainda mais puxados. "No Saldanha, onde vivia,
uma casa com duas ou três assoalhadas e 100 metros quadrados pode chegar aos
2500 euros; falaram-me de uma na Rua Filipe Folque por 3000 euros - nem chego a
ganhar isso. Num mês e meio vi pouco mais de 20 casas. Tudo bastante caro.
700/800 euros era tudo Tzeros. Quando ia ver uma casa na Graça/Sé fui informado
de que tinha tido uma atualização de preço de mais mil euros." Ri do
nonsense. "Fiquei com a ideia de que, primeiro, há bastantes casas no
mercado - aparecem imensas todos os dias -- e que, segundo, apesar dos valores
brutais há quem pague. Quando não tens um poiso ficas angustiado. Eu próprio
estive quase a arriscar uma renda de 900, que seria perigosa para mim. Por
exemplo vi uma loja em Alcântara com montra para rua que estavam a alugar como
casa - era um open space com cozinha e casa de banho. Pediam 800 ou 900 e ainda
ponderei, achei que podia ter graça, era uma altura em que queria ir para um
lado qualquer."
Madalena Alfaia,
38 anos e Frederico Carvalho, 41, foram em 2005 para um apartamento num prédio
vazio no Chiado, que viram num anúncio de jornal. Ficaram lá 12 anos, a pagar
600 euros e sonhando comprar a casa de 130 metros quadrados e azulejos
pombalinos que adoravam e onde tiveram a filha Violeta, em 2010. Em 2016, foram
notificados de que o contrato, até dezembro de 2017, não seria renovado. Agora
estão em Campo de Ourique a pagar 800 euros
| DIANA QUINTELA / GLOBAL IMAGENS
"Não é uma
bolha e ainda agora começou"
Apesar de ter já
uma noção do que o esperava - conhecia a experiência de Joana e de vários
artistas que estão a perder os ateliers e não sabem para onde ir -
surpreendeu-se. "Não há nada a preço razoável. Quem não tiver um ordenado
fixo médio-alto não pode ficar em Lisboa. Não tenho um rendimento baixo mas não
poderia pagar sozinho uma casa no centro. Mesmo na Picheleira/Olaias, que é uma
zona afastada e mais degradada, vi uma casa pequena por 700." Acabou por
se decidir pelo primeiro apartamento que visitou, nos Olivais. "Estou a
pagar 750 por 85 metros quadrados. Como sou só eu e a gata e os livros - tenho
seis mil - dá." O contrato é de um ano, mas tem esperança de que lho
renovem. "Só a mudança custa uma fortuna. Empacotar tanto livro não sai
barato." Se lamenta não ter comprado casa? "Nunca achei necessário
ser proprietário. Compraria se por exemplo recebesse uma herança, se tivesse o
dinheiro na mão. Pensei sempre na vantagem da mobilidade, e preferi comprar arte,
livros... Mas a verdade é que tenho noção de que encontrar uma casa como esta
não é fácil. Não diria que há um sentimento de pânico mas anda perto."
É uma bolha? Vai
rebentar? A investigadora do ISCTE Sandra Marques Pereira, organizadora da
conferência Lisboa, que futuro?, acha que não. "Creio que se trata de um
fenómeno estrutural de sobreposição do mercado global de imobiliário ao local.
Uma coisa muito recente e rápida e por isso muito avassaladora. Não é uma
especificidade de Lisboa, está a suceder em várias cidades do mundo. E a
procissão vai no adro; começou a ser mais visível em 2016." Considerando
que a natureza do fenómeno o tornou completamente imprevisível - "Dei em
2013 uma entrevista sobre os dados do Censo em que dizia que o arrendamento de
longa duração ia vingar por causa do corte no crédito bancário, pela maior
insegurança laboral e também por motivos ideológicos, por as pessoas acharem
mais importantes o viver que o ter. Enganei-me" --, a socióloga não está
otimista. "Se nem conseguimos como país resolver completamente o problema
habitacional das pessoas com menos capacidade económica, que vivem em condições
insalubres, como é que vamos resolver o do acesso de toda a gente menos dos
milionários?" Porque, frisa, para o rendimento médio das pessoas que vivem
em Lisboa, que andará nos 1500 euros, não há casas no mercado.
"Ainda não
vimos a proposta do governo para o arrendamento acessível mas parece-me que
essa acessibilidade tem de ser determinada em função do rendimento das pessoas,
que é muito baixo, e não dos preços de mercado. E qual a minha vantagem como
proprietário de ter uma pequena diminuição dos impostos se posso pedir um valor
muito mais elevado pela renda? Temos de nos pôr na cabeça dos proprietários
também."
Frisando que até
ao início do século as pessoas não valorizavam o centro, Sandra Marques Pereira
desdiz o cliché da história da habitação em Lisboa. "Nunca houve uma
expulsão massiva do centro para as periferias; a área metropolitana encheu-se
com pessoas vindas de fora e das colónias; os modelos culturais do que se
pretendia de uma casa tinham a ver com a propriedade, com equipamentos como
elevadores e condutas de lixo, daí as pessoas não terem ocupado o centro, que
tinha casas antigas. Não foi por motivos económicos." E agora que, comenta,
havia "um paulatino crescimento de interesse pelo centro", foi
interrompido porque quem quer ir para lá não tem dinheiro para. "Neste
momento temos um fenómeno de displacement [deslocamento] de três tipos: o de
quem é expulso por motivos económicos, de quem sai por ter vendido ou porque já
não gosta do ambiente e de quem queria entrar e não consegue. Como é que isto
se resolve? Deve haver políticas locais mas a questão da acessibilidade das
cidades tem de ser tratada também a nível supranacional. Há já governos a
admitir que não conseguem lidar com o processo."
O capitalismo não
tem pátria, lembra Ana Benavente. E agora, parece, as cidades e as casas também
não.
Sem comentários:
Enviar um comentário