O fogo destruiu a
Faculdade de Ciências de Lisboa. E o pior é que todos sabiam que o desastre
iria acontecer
18.03.2018 às
9h00
O ex-Presidente
Ramalho Eanes conta ao Expresso que há 40 anos, a 18 de março de 1978, foi
acordado a meio da noite com um alerta de um violento incêndio na Faculdade de
Ciências de Lisboa. Foi imediatamente para o local e foi ele quem deu a ordem
para destruir a parte cimeira do portão de entrada que impedia a passagem da
viatura dos bombeiros. “Não aprendemos com os erros”
MANUELA GOUCHA
SOARES
RUI CARDOSO
Há 40 anos, “os
bombeiros sapadores só faziam vistoria a edifícios, a pedido dos responsáveis
desses mesmos edifícios”, conta ao Expresso o ex- Presidente da República
António Ramalho Eanes. O general – eleito PR em 1976 – vivia com a família no
Palácio de Belém, para onde se mudara por questões de segurança. Já estava a
dormir quando a polícia o alertou para a existência de um “grande incêndio.
Decidi ir de imediato para o local, para ver se haveria algo a fazer além do
trabalho dos bombeiros; em situações complicadas é bom haver alguém que tome
decisões em momentos de indecisão”. Foi o que aconteceu. Quando Eanes chegou ao
local e foi informado de que a viatura dos bombeiros não entrava no recinto por
causa da parte cimeira do portão, limitou-se a dizer: “Derrubem aquilo.”
Quem hoje visite
as instalações da Rua da Escola Politécnica, do Museu de Ciência ao Museu de
História Natural ou ao Laboratorio Chimico, não tem ideia da dimensão do
incêndio, nem do património que se perdeu, entre peças museológicas,
laboratórios, livros e equipamentos. Quem conheceu as instalações da Faculdade
de Ciências da época reconhece que nem era preciso um atentado para haver uma
desgraça. Para Lucília Carvalho, na altura ali assistente, “era um desastre à
espera de acontecer”. Fazia parte da comissão paritária de gestão da faculdade
eleita depois do 25 de Abril de 1974 e, tendo inspecionado com os seus colegas
os sótãos do edifício, deparou com “muita madeira velha e um cenário de barril
de pólvora”. Foram chamados os bombeiros que elaboraram um relatório
confirmando os piores receios da comissão. “Não resolveu nada mas quando se deu
o incêndio pelo menos tivemos a consolação de ter chamado a atenção para o
perigo”, lembra Lucília Carvalho. “Lembro-me de um peixe enorme pendurado à
entrada do Museu de História Natural. Era extraordinário mas tudo aquilo
cheirava a velho e não tinha nada a ver com as condições de segurança dos
museus atuais”, recorda Glória Ramalho que presidira à direção da Associação de
Estudantes antes do 25 de Abril.
O alarme foi dado
por um telefonema feito à 1h12 da madrugada de 18 de março para a central
telefónica do Comando do Batalhão de Sapadores Bombeiros. Pela leitura do
relatório a que o Expresso teve acesso, sabe-se que o telefonema foi feito por
uma “senhora muito aflita” que disse chamar-se Manuela Lamas. O telefonista de
serviço aos bombeiros “olhou na direção da Faculdade, viu um enorme clarão,
pelo que teve a perceção de que se tratava de um incêndio de grandes
dimensões”.
FACULDADE COM O
TELEFONE DESLIGADO
Manuela Lamas não
tinha nada a ver com a Faculdade; o incêndio foi detetado por um dos guardas
que de imediato se deslocou ao PBX [nome dado às centrais telefónicas com um
sistema de cavilhas]. O telefone estava desligado e o guarda foi para o portão
do edifício pedir a quem passava na rua que ligasse para os bombeiros. O
telefonema terá sido feito por uma moradora da zona ou por alguém num café das
redondezas.
O fogo terá
começado num dos vários pavilhões prefabricados montados nos espaços vazios da
faculdade, numa tentativa de adaptar as velhas instalações à massificação do
ensino universitário dos anos 70. Terá sido numa destas construções em madeira,
afeta à área de Matemáticas, que o fogo começou.
O que aconteceu
na Rua da Escola Politécnica – que liga o Largo do Rato ao Príncipe Real –
prefigurava o que viria a repetir-se no incêndio do Chiado dez anos depois [25
de agosto de 1988]: uma malha densa de construções antigas com travejamentos e
pavimentos em madeira ressequida, acumulação de carga térmica, inexistência de
sistemas de deteção e extinção automática, obstáculos à movimentação de
bombeiros e viaturas; de tal forma que foi preciso o Presidente em exercício
dar ordem para derrubar o obstáculo à entrada das viaturas dos bombeiros na
Faculdade.
EANES LEMBRA A
AÇÃO DA PROFESSORA MARIETA
Eanes destaca o
papel de uma professora que deu informações fundamentais para encaminhar os
bombeiros para os laboratórios de Química onde existiam produtos explosivos e
radioativos. Marieta da Silveira era “uma mulher impressionante”, lembra o
ex-Presidente da República.
A presença de
Ramalho Eanes acabou por ser providencial. “Havia muitos materiais perigosos,
inclusivamente radioativos, no Laboratório Químico, coisa para a qual a
professora Marieta da Silveira tentara em vão alertar os bombeiros. Só quando
falou com o Presidente é que estes a passaram a ouvir”, conta Lucília Carvalho.
Nessa mesma
noite, a professora Marieta – que ainda hoje é recordada por Maria Emília
Brederode dos Santos que morava nas imediações da Faculdade – disse à agência
de notícias ANOP que “era mais do que previsível que o edifício viesse a ser
destruído por um incêndio”.
José Leite
Pereira, antigo diretor do “Jornal de Notícias”, hoje reformado, era na altura
repórter do “Diário Popular”: “Estava em casa de uns amigos com o Nelson Veiga
[repórter do 'Popular'] e já não me lembro se ouvimos a notícia na rádio ou se
alguém telefonou, mas largámos a correr para a Politécnica e fomos os primeiros
jornalistas a chegar lá.”
“A imagem mais
forte que retive foi o general Eanes entrar por ali dentro, saltando por cima
de barrotes queimados e indo lá para o meio. Não era coisa que associássemos a
um Presidente da República mas ele era militar e estava habituado àquelas
coisas,” conta José Leite Pereira, que passou a noite no local.
O jornalista
evoca uma noite inteira de reportagem, publicada na edição desse sábado do
vespertino, num trabalho de duas páginas co-assinado com Nelson Veiga. Era um
cenário de grande confusão no combate às chamas e enormes dificuldades para
trabalhar, dadas as restrições de acessos impostas pela polícia. O próprio
professor António Galopim de Carvalho teve que enganar guardas teimosos que não
queriam saber se ele era catedrático ou não e esgueirar-se para dentro do
edifício através de uma porta que só ele conhecia.
Evitou-se uma
tragédia ainda maior mas é plausível pensar que a consequência da concentração
de meios à volta da Química possa ter sido a quase total destruição das áreas
dedicadas à Matemática, Zoologia e Mineralogia. Pelo meio houve episódios
memoráveis como o do professor Galopim, um bombeiro e um contínuo com mantas
pela cabeça a fazerem idas e vindas para salvar livros raros. Do outro lado da
faculdade, o professor Francisco Carrapiço conseguia, através de uma janela,
passar para a estufa do Jardim Botânico preparações para o microscópio
eletrónico e muito material da Botânica.
Neste vídeo,
entre muitas outras coisas, o professor Filipe Duarte Santos, da [área de] Física
conta como naquela noite ficou sem sapatos. A professora Maria João Colares
Pereira perdeu a tese de doutoramento que deixara por acabar em cima da mesa do
gabinete. E só não se perdeu um livro acabado de fazer pelo professor Carlos
Teixeira porque – já praticamente cego − como tinha “com uma memória de cavalo”
no dizer do seu colega Galopim, voltou a ditar capítulo por capítulo.
Como se escreveu
na altura, um saber acumulado ao longo de séculos desapareceu numa noite mas,
apesar de tudo, a sorte não nos abandonou totalmente. Eanes faz questão de
lembrar que o “Museu de História Natural era único a nível europeu”.
Felizmente, que
uma parte do que se perdeu na área da Mineralogia e Geologia tinha equivalente
na coleção do Museu Geológico que ainda hoje podemos visitar na Rua da Academia
das Ciências. Integrado no Museu de Ciência, o Laboratorio Chimico foi recuperado
em 2007. Algumas das melhores exposições sobre dinossáurios têm passado pelo
Museu Nacional de História Natural que, juntamente com o Jardim Botânico e o
referido Museu de Ciência, ocupam hoje as instalações da Rua da Escola
Politécnica, contíguas ao Jardim Botânico de Lisboa.
Um ano depois, os
prejuízos foram avaliados no equivalente a sete milhões e quinhentos mil euros,
como se pode ler nesta informação
Um ano depois, os
prejuízos foram avaliados no equivalente a sete milhões e quinhentos mil euros,
como se pode ler nesta informação
Em 1978 os tempos
eram politicamente agitados e o incêndio da Faculdade, tida como um reduto das
esquerdas, chegou a ser reivindicado por um grupo armado de extrema-direita, o
CODECO (Comandos Operacionais de Defesa da Civilização Ocidental), responsável,
entre 1975 e 1982, por uma longa lista de ataques à bomba e a tiro contra
esquadras da polícia, sedes de partidos de esquerda ou instalações militares.
Em 1982, “O Diário”, matutino próximo do PCP, viria a publicar uma entrevista
com um recluso de Pinheiro da Cruz que se apresentou como ex-operacional da
organização e se disse traído pelos partidos de direita como o CDS, em
consonância com os quais fizera atentados bombistas e outras ações armadas
durante o PREC (1974/75).
“Os bombeiros
fizeram um trabalho excecional”, diz o ex-Presidente da República: “Somos bons
a apagar fogos mas não a evitar a deflagração de fogos. O papel dos políticos é
estarem atentos a áreas estratégicas”, acrescenta Ramalho Eanes.
O incêndio
acelerou, ainda que moderadamente, o processo das novas instalações da
Faculdade de Ciências no Campo Grande. É neste complexo, no átrio do Edifício
C6, que está patente desde quarta-feira passada e até dia 23 de março a
exposição “Incêndio em Ciências, 40 Anos Depois”.
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