Vão fechar mais
três livrarias históricas na Baixa de Lisboa
A Trindade,
Campos Trindade e o Centro Antiquário do Alecrim estão a despedir-se dos
leitores. Foram despejadas pelo senhorio.
20/03/2018 às 12:23
A Campos Trindade
está aberta desde 1960.
texto
Ricardo Farinha
Primeiro fechou a
Aillaud & Lellos, depois foi a vez da Pó dos Livros, também em Lisboa. No
Porto, a Leitura encerrou portas; enquanto em Coimbra, a Miguel de Carvalho
despediu-se dos leitores. Há mais três livrarias alfarrabistas históricas em
Lisboa que anunciam o seu fim nos primeiros meses de 2018: a Livraria Trindade,
a Campos Trindade e o Centro Antiquário do Alecrim, na Rua do Alecrim, na Baixa
da cidade.
O motivo foi o
mesmo dos outros espaços: a subida das rendas e o despejo dos senhorios, que já
não estão tão interessados em acolher espaços como estes.
“Em 2013, depois
de estarmos há mais de 30 anos neste local, a renda foi atualizada ao abrigo do
novo regime de arrendamento (cinco anos), não negociável, um novo contrato
surgiu fazendo tábua rasa do anterior contrato. A lei cumpriu-se”, escreve no
Facebook António Trindade, o responsável pela Livraria Trindade.
“Entretanto,
recebemos uma carta no dia 11 de janeiro com a informação sobre a conclusão do
contrato, com saída no final de setembro do presente ano, e apesar dos
contactos que fizemos, não há por parte do senhorio qualquer possibilidade
negocial. Metade da rua vai ser despejada.”
Ou seja, apesar
de terem aceitado aumentar a renda há cinco anos, agora não tiveram qualquer
hipótese para negociar um futuro naqueles espaços. Têm todos de sair até 30 de
setembro.
“Achamos que este
negócio tem história e tem carisma, não há quem em Lisboa não conheça a rua do
Alecrim com os seus alfarrabistas e com os seus antiquários. Um turismo de
massa arrasa com os centros históricos e faz com que as cidades se tornem todas
iguais, com as mesmas lojas e com os mesmos produtos em todo o lado. Os grandes
grupos financeiros podem fazer agora o seu festim e acabar com aquilo que era
único em Lisboa. Fica a aparência de uma cidade que já foi plural e distinta, e
que, presentemente se verga a uma única actividade, o turismo. Quem visita
Lisboa vê uma casca, o que lhe dava a vida, já desapareceu ou vai desaparecer.”
António Trindade,
que faz parte da terceira geração da família a gerir a livraria, está
naturalmente magoado com a decisão do senhorio. “Os meus avós eram antiquários
e alfarrabistas, conhecimentos que passaram e progrediram na nossa família.
Provavelmente, a família que há mais tempo está neste negócio e que teve a sua
origem em frente do Mosteiro de Alcobaça na década de 30 do século XX”,
explica.
Não é o único da
família que está prestes a perder a sua livraria. Oito portas acima, na mesma
Rua do Alecrim, fica a Livraria Campos Trindade, que também vai fechar este
ano, contou à NiT uma funcionária que não quis revelar mais informações. É do
livreiro Bernardo Trindade, primo de António Trindade. Ambas foram fundadas em
1960. No entanto, a Trindade de António não está perdida para sempre. Pelo
menos não é a intenção do dono, que pretende reabrir a livraria numa zona da
cidade menos central.
Centro Antiquário
do Alecrim
Esta livraria
existe desde 1955. “O meu pai começou a vender livros aos oito ou nove anos na
Feira da Ladra, salvou milhares de documentos”, conta a responsável pelo
espaço, Margarida Marques Leite. “É uma tristeza. O senhorio, que é da mesma
família há 60 e tal anos, disse que o meu espaço vale 10 mil euros de renda.
Mas que, mesmo que eu conseguisse pagar os 10 mil euros, não me renovava o
contrato. Tentámos concorrer ao programa [da autarquia] das Lojas com História,
mas acho que não vai mudar nada.”
Ao contrário dos
seus colegas e vizinhos, o Centro Antiquário do Alecrim, que começou na Rua da
Misericórdia com outro nome, não tem negócio online e só vende na loja. “Este é
um negócio de paciência, mas tem melhorado nos últimos quatro anos. Tenho
clientes de todo o mundo. Adoro ver a cidade de Lisboa com este movimento, mas
é triste que se tenha de sacrificar este tipo de lojas, para abrir um hostel ou
um hotel. Não me disseram que é o que vai acontecer, mas de certeza que será.”
Margarida Marques
Leite diz que está a ponderar mudar-se para uma pequena loja no centro
comercial Espaço Chiado, que tem recebido ultimamente várias lojas de discos.
“Mas é muito diferente passar deste espaço de 500 metros quadrados para uma
loja de 25 metros quadrados.”
Segundo um estudo
da Confidencial Imobiliário, as casas no centro histórico de Lisboa estão duas
vezes mais caras do que em 2013. Um grupo de cidadãos criou o movimento Rock in
Riot, que tem o primeiro evento de rua este sábado, 24 de março, para “ocupar a
rua e reclamar a cidade”.
Livros e antiguidades estão a ser expulsos da rua do Alecrim
São mais duas lojas
históricas a desocupar os espaços onde estão há décadas porque o senhorio não
lhes quer renovar o contrato de arrendamento. Aos poucos e poucos, estes
"negócios da paciência"estão a desaparecer da baixa da cidade.
CRISTIANA FARIA
MOREIRA 21 de Março de 2018, 8:25
Partilham a rua
que “ajudaram a criar”. Dedicaram toda a vida aos livros, aos documentos, aos
manuscritos que a família lhes deixou. Agora, têm o mesmo destino pela frente:
fechar as portas. No final de Setembro, a rua do Alecrim já não terá os livros
da Livraria Trindade e do Centro Antiquário do Alecrim.
No princípio de
Janeiro, ambos os estabelecimentos receberam uma carta do senhorio a dar-lhes
conta de não querer renovar o contrato de arrendamento. O PÚBLICO não conseguiu
entrar em contacto com os proprietários do prédio.
“É um espaço que
está avaliado em dez mil euros por mês. Mas mesmo que eu pagasse esse valor
eles não o arrendariam. Querem o espaço livre”. Se calhar, “para mais um
hotel”, diz Margarida Leite, 53 anos, que trabalha no Centro Antiquário do
Alecrim desde os 20 e herdou o negócio do pai.
Em 1956, Américo
Marques enraizou o seu negócio na rua do Alecrim, num espaço onde antes
funcionara a antiga Fábrica Âncora, dos licores, de onde ficaram os rótulos das
garrafas que preenchem hoje uma das paredes. E ali ficaram entre livros,
desenhos, gravuras, quadros, mapas como o que Margarida diz ser o primeiro mapa
impresso de Portugal, de 1560, de Álvaro Seco.
O pai começou com
oito anos por vender na feira da ladra. Vendia O Mosquito, a revista com
“histórias aos quadradinhos” que foi fundada em 1936. Américo ficou sem mãe
muito cedo. O pai era embarcadiço, andava a pôr carvão nos barcos que andavam
pelo mundo durante sete ou oito meses. E Américo andava por aí sozinho. Ia
buscar o material que vendia, às terças e sábados na feira, aos ferros velhos
que compravam o recheio das casas.
“O meu pai salvou
manuscritos, inclusive cartas de D. Sebastião que ele vendeu mais tarde à Torre
do Tombo, cartas de reis, primeiras edições [de livros]. Antigamente era tudo
para desfazer e fazer papel”, conta Margarida Marques. Se fosse vivo, o pai
teria hoje 95 anos. E recorda como, “na febre da ida do homem à Lua”, o pai fez
chegar a Neil Armstrong a obra de Francis Godwin, L’homme dans la lune (O Homem
na Lua, século XVII). “[O astronauta] mandou-lhe uma fotografia assinada a
agradecer o livro, que relatava a primeira viagem à Lua, com uns gansos que
levavam o homem”, conta.
Ali, “é tudo
original. Não há reproduções”, garante Margarida. Pode-se tocar em tudo, sentir
o cheiro, a textura do papel. É também disso que vive um antiquário. Do cliente
que entra e se perde entre os detalhes, que troca dois dedos de conversa, que
sabe que “ali se encontram coisas que não se encontram em mais lado nenhum”.
Diz-nos que a loja se estende muito além da sala da entrada, mas que não mostra
mais porque já começou a encaixotar as 14 toneladas de livros que ali tem
guardados.
Separar o trigo
do joio
Este ano, foi já
anunciado o fecho de portas da Aillaud & Lellos, da Pó dos Livros, em
Lisboa, da Leitura, no Porto, ou da Miguel de Carvalho, em Coimbra. Na porta ao
lado do Antiquário do Alecrim, a Livraria Trindade tem o mesmo destino. António
Trindade, 50 anos, culpa o “terramoto” da especulação imobiliária que atravessa
Lisboa e que está “a destruir” o que ali está há muito tempo e que “dá o
charme” à cidade.
É ele que está
hoje à frente do negócio que diz ter começado pela mão dos avós ainda na década
de 1930, em Alcobaça, e por onde passavam “presidentes, ministros,
intelectuais, historiadores, escritores”.
“Isto está-nos no
corpo. O que nós fazemos é uma espécie de selecção do trigo do joio. E, às
vezes, até salvar, obras do século XVI, XVII”, diz.
“Aí há dois anos
vieram-me aqui dois tipos que encontraram numa cave de uma casa de Lisboa a
segunda ou terceira edição do Dom Quixote (1615)”, conta.
O certo,
reconhece António, é que “não se lê como se lia”. Vende muito para estudantes
universitários, mas conserva os clientes que procuram “as jóias, as raridades”.
É que os livros “têm essa magia e há quem goste de ter na mão a primeira edição
da Mensagem”. É isso que mantém estas casas, onde se encontra o que não se
vende nas grandes cadeias, diz o livreiro, enquanto aponta para os sacos com
volumes de arquitectura que tinha acabado de comprar e para outros cheios com
os “setecentos e tal livros” da colecção Vampiro.
Ainda assim, pode
não ser o fim do negócio. Era para sair em Setembro, mas em finais de Abril
conta mudar-se para outra loja “relativamente perto” da rua do Alecrim.
E com isto, quem
perde? “A cidade de Lisboa”, diz Margarida. “As casas típicas estão a
desaparecer e depois passa a ser hotel com hotel”.
“O centro de
Lisboa está a ser vendido a capitais estrangeiros”, continua António. “Tem que
se cuidar daquilo que é único, aquilo que dá o charme à cidade. E Lisboa vai
perder esse charme”. É que a cidade, nota, vive dos alfarrabistas, das casas de
penhores que já desapareceram, das lojas das velas, das Belas Artes, das casas
de cerâmica como a vizinha Sant’Ana, que tem também o fim anunciado.
“Eu não me sinto
vítima. O que eu aprendi com os meus pais, com os meus avós e com os meus tios,
ninguém me tira. Vou para outro sítio e sou capaz de reconstruir. O que me
custa é o que está a acontecer à cidade”, diz António.
Margarida diz que
o Antiquário do Alecrim se vai mudar para uma pequena loja do centro comercial
Espaço Chiado, na rua da Misericórdia. Um “espaçozinho com 20 metros quadrados”
que não está na rua. E “este tipo de negócios precisa de ter vida, de ter
pessoas a passar”. “É o negócio da paciência”, como diz, e “devia ser mais
apoiado”.
Ambas as lojas
dizem ter reunido com a câmara e tentado concorrer ao programa Lojas com
História, mas admitem já não haver tempo para travar o processo.
Agora, é tempo de
começar a encaixotar livros e recordações e assim despir um espaço que sentem
como deles. De se despedirem dos leitores e da rua que ajudaram a fazer.
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