REPORTAGEM
Saudades lá do
bairro
A partir de 1990
centenas de pessoas saíram do centro histórico com a promessa de que voltariam
para casas reabilitadas, mas muitas ficaram nos bairros de acolhimento. Agora
há 21 famílias de regresso.
JOÃO PEDRO PINCHA
12 de Março de 2018, 8:20
Na sala de Jorge
Dias as paredes estão impecavelmente brancas e quase despidas. A monotonia só é
quebrada por uma gravura, não muito grande, colocada por cima da mesa de
jantar, que mostra como seria o Largo do Chafariz de Dentro no século XIX. “O
bairro é sempre o bairro. Eu posso dizer que gosto de estar aqui, mas há sempre
qualquer coisa neste cantinho”, suspira, já resignado, enquanto leva a mão ao
peito e aponta para o coração.
Alfama não lhe
sai do pensamento, mas para lá das vidraças o que se vê é o vale de Chelas, com
a sua vegetação mais ou menos selvagem, as casas precárias e os armazéns
enferrujados, enquanto no topo da encosta se erguem desordenadamente os prédios
da Picheleira e das Olaias. A paisagem foi-se tornando familiar com o passar
dos anos. Jorge Dias sabe e aceitou que já não vai sair da Quinta do Ourives, o
bairro municipal para onde foi forçado a mudar-se em 1992.
Vivera até aí na
Rua da Regueira. “Naquela casa nasceu a minha irmã mais velha, nasci eu e a
minha filha. A casa era muito grande, tinha uma sala de jantar enorme e uma
grande cozinha”, recorda, sentado à mesa com o amigo Domingos Silva, também um
alfamista deslocado. Ambos vieram para a Quinta do Ourives com a promessa de um
dia regressar a casa, mal se concluíssem as obras de reabilitação acordadas
entre a câmara e os senhorios. “O meu prédio foi demolido e nunca fizeram mais
nada. Eu tenho aí uma acta em como voltávamos para a nossa habitação, mas era
tudo mentira”, lamenta Jorge.
Os dois vizinhos
moravam em casas velhas muito necessitadas de obras, tal como milhares de
outras em todo o centro histórico. Entre meados dos anos 1980 e o início dos 1990,
a Câmara Municipal de Lisboa criou os primeiros gabinetes técnicos locais, que
depois alargou a mais zonas, cujo objectivo era reabilitar os bairros
arruinados. A autarquia comprou prédios e negociou com os proprietários de
outros. Centenas de famílias foram realojadas em casas municipais, à espera que
as obras se fizessem. A grande maioria nunca regressou ao local de origem.
“Eu fui chamado à
junta e o presidente disse-me ‘Eh pá, tu tens de sair dali, já viste como
aquilo está?’”, conta Domingos Silva. Deixou a sua casa na Calçadinha de Santo
Estêvão em 1987. “Esteve vinte e tal anos sem ninguém lá dentro, sem ter obras
nenhumas”, relata. Tanto tempo depois já não lhe passa pela cabeça sair da
Quinta do Ourives, onde se entretém com um quintal que foi fazendo crescer. Tem
pessegueiros, pereiras, laranjeiras, tangerineiras e morangueiros espalhados
pelo terreno labiríntico, que percorre entusiasmado, enquanto mostra o
elaborado sistema de som que conseguiu instalar e que leva a Rádio Amália a
todos os recantos.
Hoje os dias são
pacíficos e encarados com boa disposição, mas a vinda para aqui foi dura. Para
lá de terem saído de Alfama, tanto Jorge como Domingos tiveram de viver em
casas pré-fabricadas, num terreno ali perto, até que os novos lotes estivessem
acabados. “Caía lá água e tudo”, diz Jorge. “Eu estive lá dois anos. Um dia um
vereador foi lá e disse ‘Isto está impróprio para animais, quanto mais para
pessoas’”, lembra Domingos. No dia em que lhe deram a chave da casa nova já não
dormiu na pré-fabricada. Foi a correr desmontar a cama e mudou-se logo, ainda
nem tinha luz.
Ao contrário da
zona em que moram Domingos Silva e Jorge Dias, só concluída a meio dos anos
1990, a parte mais elevada da Quinta do Ourives foi construída ao longo da
década de 1970. É num desses prédios que vivem Filomena e Mário Rodrigues,
também antigos moradores de Alfama. “A câmara obrigou o senhorio a fazer obras
coercivas e eu disse-lhes que queria uma casa. Fomos a reuniões e concordámos
que, enquanto eles faziam as obras, nós vínhamos para aqui durante cinco anos.
Já lá vão 15”, conta Filomena Rodrigues.
Em 2002, quando o
casal deixou a casa da Travessa São João da Praça, o município tinha mudado de
estratégia em relação à reabilitação urbana. Esta passou a fazer-se com intervenções
de larga escala, muitas vezes obrigando os senhorios a fazer obras. E quando
estes se recusavam ou mostravam não ter capacidade, a câmara substituía-se. Foi
nesta época que se fez, por exemplo, a famosa reabilitação da Rua da Madalena.
Entre 1990 e
2008, a câmara gastou mais de 450 milhões de euros em reabilitação urbana, a
maior parte através dos gabinetes técnicos locais. Ainda assim, no fim da
década passada, muitos bairros continuavam a cair aos bocados. E a factura era
pesada para os cofres municipais. Dos 77 edifícios que era suposto terem sido
intervencionados até 2007 directamente pela câmara, só 33 tinham tido obras.
Foram gastos 32 milhões de euros em obras coercivas até 2010, mas a autarquia
nunca voltou a ver a cor de grande parte desse dinheiro: àquela data, os
proprietários só tinham pago 4,2 milhões.
Pelo meio, as
pessoas sentiram-se esquecidas. “Na minha casa, só a sala metia esta casa toda
lá dentro. Tinha lá uma mesa para oito pessoas, sofás e um móvel-bar de canto”,
conta Mário Rodrigues. A revolta cresce-lhe à medida que fala porque não gosta
da Quinta do Ourives, não gosta da casa, já devia estar de volta a Alfama. Um
vizinho, que veio do Castelo, também reage com irritação. “Eu não gosto disto,
nunca gostei. Se eu pudesse ia-me embora já amanhã”, diz.
A actual
vereadora da Habitação diz que há ainda 187 famílias espalhadas pela cidade que
antes viviam nas freguesias do centro. “A orientação que eu dei aos serviços
foi: negociar família a família, quem quiser regressar ao centro histórico pode
regressar; quem quiser ficar na localização em que está, fica”, explica Paula
Marques. Houve 21 famílias que mostraram interesse em voltar. “Na Quinta do
Ourives são cinco. Temos outras pessoas em Marvila, Campo de Ourique, Olivais”,
precisa a vereadora. Ninguém regressará à casa de origem, antes a outras
habitações que a câmara está agora a reabilitar.
“Eu nasci na
Mouraria, mas estou há 50 anos em Alfama. Já dá para dizer que sou de Alfama”,
afirma Filomena Rodrigues, indiferente ao facto de viver na freguesia do Beato
há década e meia. “Isto não me diz nada. Queria fugir daqui, não é bairro que
me diga alguma coisa.”
“O meu pai morreu
com 90 anos. Todos os dias ia com a bengalita até Alfama para estar com os
amigos e voltava só à noite. Para ele, aquilo tinha de ser. O vício de ir lá
era muito grande. E continua a ser”, conta Jorge Dias. “Não nos faltava lá
nada”, comenta Domingos Silva – e as saudades param-lhe os olhos por uns
instantes.
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