Câmara de Lisboa
simula consultas ao mercado para contratar histórico do PS
Joaquim Morão,
antigo autarca-modelo e membro da Comissão Política Nacional do PS, foi
consultor da Câmara de Lisboa até Setembro. Para o contratar, o município
simulou uma consulta ao mercado, recorrendo por duas vezes a duas empresas de
um amigo de Morão
JOSÉ ANTÓNIO CEREJO 31 de Março de 2018, 7:29
Esta é uma
história sobre dois amigos donos de três empresas. As três foram convidadas
duas vezes pela Câmara de Lisboa, em 2015 e em 2016, para apresentarem
propostas de prestação de serviços relativos à gestão de projectos. Aquela que
propusesse o preço mais baixo seria contratada.
Duas dessas empresas
pertencem à mesma pessoa, um empresário de Castelo Branco, cidade onde também
reside o dono da terceira. Este último preside a duas importantes associações
de desenvolvimento regional, largamente financiadas por dinheiros públicos, das
quais o primeiro é vice-presidente.
Os quatro
convites que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) dirigiu às duas empresas do
primeiro nunca tiveram resposta. Os dois contratos, no valor de cerca de 96 mil
euros foram adjudicados, como previsto, à empresa do outro convidado, criada um
mês antes.
A esta síntese
falta acrescentar que o primeiro, António João Realinho, estava na altura
pronunciado e a ser julgado por burla e falsificação, crimes pelos quais veio a
ser condenado a quatro anos e meio de prisão efectiva, condenação ainda
pendente no Tribunal Constitucional. Quanto ao segundo, trata-se de um
prestigiado dirigente do Partido Socialista, Joaquim Morão, conhecido como um
autarca modelo, que presidiu às câmaras de Idanha-a-Nova e Castelo Branco,
quase sem oposição durante quase três décadas, e que foi feito comendador por
Cavaco Silva.
A CML diz que
tudo foi feito de acordo com a lei. Morão alega que prestou os serviços “em
conformidade com o que foi contratado” e que a câmara convidou quem entendeu.
António Realinho, por seu turno, recorda-se “vagamente” de ter sido convidado,
mas não se lembra se respondeu e diz que não sabe a quem é que os contratos
foram adjudicados.
António Costa ou
Medina?
O primeiro
procedimento de contratação da empresa JLD, Consultoria, Unipessoal, Lda,
propriedade de Joaquim Morão Lopes Dias, teve início em data indeterminada,
pouco antes de António Costa deixar a Câmara de Lisboa no fim de Março de 2015,
ou pouco depois de Fernando Medina lhe ter sucedido. No processo camarário
encontra-se um documento sem data, da responsabilidade da directora municipal
de Projecto e Obras, Helena Bicho, que é o mais antigo de todos os que lá
constam. Trata-se de uma minuta de um convite não endereçado, mas dirigido, sem
margem para dúvidas, a Joaquim Morão.
Nele se afirma
que o objectivo do município consiste na contratação, “no âmbito das
actividades desenvolvidas em concretização do Programa de Governo da Cidade”,
de “um apoio técnico de assessoria experiente na área da gestão de projectos e
da construção de equipamentos e infra-estruturas municipais”. O texto esclarece
que “a abrangência do trabalho a desenvolver não permite, a priori, a definição
de um núcleo de funções restrito” e justifica o convite: “É do conhecimento
desta direcção municipal que V. Exa. tem desenvolvido uma actuação notável nas
áreas da gestão de projectos e construção de equipamentos e infra-estruturas,
onde se demonstra uma experiência profissional consistente a que se aliam uma
aptidão multidisciplinar ao nível da coordenação e gestão de projectos”.
Mais tarde, a 26
de Maio de 2015, a mesma directora municipal propõe a Manuel Salgado, vereador
do qual dependem os seus serviços, que aprove a decisão de contratar “um
aconselhamento consistente”, bem como a consulta de três entidades para o
feito: AJNR - Consultores Lda; Remir - Consultores, Engenharia e Arquitectura
Lda; e JLD – Consultoria Unipessoal Lda. A contratação proposta terá o preço
base de 22.500 euros mais IVA e terminará a 31 de Dezembro desse ano. Manuel
Salgado aprova de imediato e os convites são dirigidos às três empresas ainda
nesse dia.
O texto é igual
nas três cartas, mas não é exactamente o mesmo que consta da minuta anterior:
em vez de referir que “é do conhecimento desta direcção municipal que V. Exa.
tem desenvolvido uma actuação notável nas áreas (…)” diz que “é do conhecimento
desta direcção municipal que essa empresa tem desenvolvido uma experiência
considerável nas áreas (…)”. Entre a minuta sem data e os convites de 26 de
Maio, alguém achou que era melhor convidar três empresas com uma “experiência
considerável”, em vez de convidar apenas uma pessoa que “tem desenvolvido uma
actuação notável”.
Por esses dias, o
ex-autarca de Castelo Branco, que não era titular de qualquer empresa, cria a
Joaquim Morão – Consultoria Unipessoal, Lda, cujo registo é efectuado em 20 de
Abril. Todavia, pouco mais de um mês depois, a 29 de Maio, averba a mudança do
nome da firma para uma muito mais discreta JLD – Consultoria Unipessoal, Lda.
Firma convidada
não existia
Não obstante,
três dias antes desse registo, quando a empresa acabada de criar ainda tinha o
nome de Joaquim Morão – Consultoria Unipessoal Lda, Manuel Salgado já está a
autorizar a consulta da JLD, atendendo à sua “experiência considerável”.
As curiosidades
do processo, todavia, não ficam por aqui. A adjudicação à JLD pelo preço base,
aprovada por Salgado em 22 de Junho, teve como fundamento o facto de esta ter
sido a única empresa a responder ao convite. No entanto, sem que se perceba o
porquê, e sem que a CML o explique, os originais dos convites dirigidos à AJNR
e à Remir estão arquivados no processo camarário com a menção manuscrita
“recebi 29.05.2015” e os carimbos das empresas. Com uma particularidade: a
caligrafia das menções inscritas nos convites feitos à AJNR e à JLD é
exactamente a mesma.
Quatro dias
depois da adjudicação de Salgado, o contrato é assinado e ostenta mais uma
singularidade. Ao contrário do que mandam as regras e do que é prática da
própria CML, o documento identifica o representante do município no acto, o
próprio Salgado, mas não identifica o representante da JLD: não tem nome, nem
residência, nem número do cartão de cidadão. Nem a qualidade em que outorga. Na
assinatura, porém, percebe-se que foi Morão quem lá esteve.
Em termos concretos
e de acordo com o caderno de encargos, os serviços a prestar pela JLD
prendem-se com a necessidade de “dar um impulso” a um conjunto de investimentos
municipais, designadamente ao nível do espaço público, em programas como “Uma
praça em cada bairro”, requalificação da Frente Ribeirinha, percursos
assistidos à Colina do Castelo e plano de pavimentações. Para garantir o
sucesso destas intervenções, lê-se na proposta de autorização de contratação, a
escolha da entidade consultora assentará nas suas valências técnicas e no
“compromisso com o projecto de política de acção gizado pelo município”.
Entre as
obrigações da empresa a escolher destacam-se “a monitorização da execução das
actividades previstas e o reporte sobre o andamento das mesmas”, bem como a
apresentação de “propostas de alterações aos procedimentos, processos de
trabalho e novas sinergias (…), tendo em conta os princípios da transparência e
da boa gestão dos fundos públicos”.
Dois meses depois
do termo deste primeiro contrato, no início de Março de 2016, a directora
municipal de Projectos e Obras propôs a Manuel Salgado, em termos semelhantes
aos da proposta anterior, que fossem feitos novos convites às mesmas três
empresas para a adjudicação de um segundo contrato, a vigorar até 31 de Agosto
de 2017. Salgado concordou e os convites seguiram para a AJNR, a Remir e a JLD.
Novo contrato,
mesmo esquema
Desta vez,
explica-se na proposta, a evolução das intervenções em curso exige “um nível de
acompanhamento, afectação e coordenação substancialmente superior ao que foi
objecto do contrato de avença” anterior. Daí que o preço-base proposto fosse de
73.788 euros mais IVA para 17 meses (contrato assinado a 24 Março de 2016),
contra 22.550 para seis meses no ano anterior. Ou seja 4340 euros mensais,
contra 3750 – um aumento de 16%. A AJNR e a Remir voltaram a não responder e a
JLD foi mais uma vez contratada.
Questionada sobre
as razões que a levaram a contratar a JLD, a CML respondeu - por escrito e sem
informar que tinha convidado mais duas empresas – que, nos ajustes directos, a
escolha das entidades a convidar se fundamenta no conhecimento que detém sobre
as respectivas “qualidades, características ou capacidades, bem como os meios
humanos a afectar pelas mesmas à prestação de serviços a contratar”.
No caso da JLD, a
autarquia acrescenta que “eram do conhecimento do município os meios a afectar
[pela JLD] à prestação de serviços na pessoa de Joaquim Morão, cujo curriculum,
capacidade e experiência para as funções são do conhecimento geral”. Solicitada
mais tarde - quando o PÚBLICO identificou os restantes convidados - a explicar
qual o conhecimento que detinha sobre as “qualidades, características e
capacidades” da AJNR e da Remir, a CML respondeu apenas que “os procedimentos
em causa respeitaram integralmente o quadro legal aplicável”.
Sucede que a AJNR
não tem no seu currículo qualquer contrato referente à gestão de projectos e
obras públicas, tendo registados nos dez anos de existência da base de dados
dos contratos públicos apenas três pequenas contratações de outra natureza.
Menos qualificada mostra-se ainda a Remir, que tem uma actividade residual e
desde a sua criação, em 2012, celebrou um único contrato com entidades sujeitas
ao Código dos Contratos Públicos.
Amigos contratam
amigos
Trata-se de um
contrato celebrado em Outubro de 2017 por uma empresa turística acabada de
constituir pela Misericórdia de Idanha-a-Nova, cujo provedor é Joaquim Morão. O
objectivo consistia na preparação de uma candidatura daquela empresa a fundos
públicos. O contrato, no valor de 33 mil euros, foi assinado pelo gerente da
Remir, um irmão de António Realinho, e pela mulher de Joaquim Morão, então
gerente da empresa da Misericórdia. Explicação: “Eles são os melhores”, diz o
provedor.
Contactado pelo
PÚBLICO, António Realinho que se mantém como gerente da AJNR e passou a gestão
da Remir, em 2016, para uma cunhada e depois para o irmão, adiantou que “o core
[o cerne] da actividade das duas empresas são as candidaturas de empresas aos
fundos comunitários”. Quanto à prestação de serviços a autarquias, diz que
abriu um escritório em Lisboa já há alguns anos, altura em que começou a fazer
prospecção desse mercado juntamente com dois colaboradores. “Acabou por nunca
acontecer [o trabalho com autarquias na região de Lisboa] porque os preços
estavam muito esmagados na área da consultoria e não compensava.”
António Realinho
condenado por burla e falsificação
António João
Realinho, economista, empresário, dirigente de duas grandes associações de
desenvolvimento regional da Beira Baixa e docente convidado da Universidade
Lusófona. Estava a ser julgado por burla e falsificação quando a Câmara de
Lisboa o convidou para lhe prestar serviços de consultoria de obras. À época em
que a CML dirigiu o primeiro convite a duas das suas empresas, Realinho já
estava acusado por aqueles crimes e quando foi convidado pela segunda vez já
tinha começado o julgamento, no termo do qual, em Novembro de 2016, foi
condenado a quatro anos e meio de prisão efectiva.
Os factos pelos
quais era acusado, juntamente com um sócio, Fernando Lopes Pereira, e com o
advogado e professor de Direito Álvaro Dias, prendem-se com a apropriação, em
2007, por meios fraudulentos, de uma moradia pertencente a Pedro Agapito, um
agente de seguros de Castelo Branco. No final do julgamento, realizado em
Lisboa, Álvaro Dias foi condenado a cinco anos e meio de prisão efectiva,
enquanto os outros dois arguidos foram condenados a quatro anos e meio de
prisão efectiva.
Álvaro Dias viria
a falecer um mês depois, esmagado acidentalmente por um dos automóveis de luxo
de que era proprietário. António Realinho e o sócio recorreram para o Tribunal
da Relação. No recurso entregue no início de 2017 reconhecem o essencial dos
factos que lhes são imputados pelo Ministério Público, afirmam que “não os
confessaram em julgamento por lhes ter sido aconselhada tal postura” e dizem
que “interiorizaram, sinceramente, o desvalor dos factos cometidos”. No
essencial, pretendiam que a Relação alterasse a qualificação jurídica dos
factos provados, de forma a que lhes fosse aplicada uma pena não superior a
três anos, suspensa na sua execução.
No acórdão
emitido em Julho do ano passado, o Tribunal da Relação de Lisboa negou
provimento ao recurso, sustentando que os arguidos “evidenciaram um manifesto e
profundo desprezo pelos mais elementares valores que regem uma sociedade”. Os
desembargadores sublinharam que não podiam “ignorar a forma de actuação” dos
arguidos para com Pedro Agapito, “que se viu obrigado a deixar uma casa que
tinha pago e onde residia com a família”.
Contrariamente à
tese de Realinho e do sócio, a Relação considerou que os juízes da primeira
instância foram “particularmente benévolos”, sendo por isso de rejeitar
qualquer redução das penas.
Inconformados, os
arguidos apelaram para o Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu os
respectivos recursos, uma vez que a decisão é, pelas suas características,
legalmente irrecorrível. O processo encontra-se actualmente no Tribunal
Constitucional, para onde os arguidos recorreram.
No resto do país,
Realinho afirma que não tem a certeza, mas que lhe parece que fizeram “algumas
coisas” para as câmaras de Castelo Branco e do Fundão. No entanto, a fazer fé
na base de dados dos contratos públicos, tal nunca aconteceu. A AJNR tem apenas
registados três contratos: um com a Câmara de Oleiros, em 2016, e dois, em 2010
e 2011, com a Câmara de Trancoso. À época, o presidente dessa autarquia era o
ex-deputado do PSD Júlio Sarmento, com o qual António Realinho criou em 2011,
no Brasil, uma sociedade gestora de participações sociais.
A propósito dos
convites que a CML lhe dirigiu, Realinho diz que se recorda vagamente, que não
se lembra se respondeu e que não sabe quem foi contratado.
Joaquim Morão,
por seu lado, nega qualquer interferência na decisão camarária de convidar as
empresas do amigo e garante que só soube mais tarde. Questionado sobre se acha
que esses convites foram uma coincidência, o ex-autarca respondeu que sim.
Apesar disso, assegura que não ficou surpreendido. “Era preciso convidar três e
eles convidaram quem entenderam.”
Por parte da CML,
todas as coincidências destes processos, bem como a omissão da identificação do
representante da JLD nos contratos e a ausência de currículo das empresas de
Realinho não merecem qualquer explicação. Mais do que isso: às perguntas do
PÚBLICO responde apenas que os contratos foram adjudicados ao abrigo da
legislação em vigor, “pelo que não se entende a razão de ser das questões”.
O que é que fez
Morão?
Surpreendente é
também a resposta do município ao pedido do PÚBLICO para consultar os
relatórios, pareceres e outros documentos resultantes dos contratos celebrados
com Joaquim Morão. “As prestações de serviços em apreço não implicavam a
realização de relatórios ou pareceres escritos; os serviços contratados
referiam-se ao acompanhamento e monitorização integrada das intervenções em
curso, com reuniões de acompanhamento/coordenação e contactos com as várias
partes envolvidas”, responde a CML.
Discreto foi no
entanto o relacionamento de Morão com os serviços da direcção municipal que o
contratou durante 23 meses. Várias vezes, desde meados do ano passado, os
pedidos de contacto feitos telefonicamente pelo PÚBLICO junto dos mesmos
tiveram como resposta de telefonistas e secretárias a informação de que não
conheciam ali nenhum consultor com o nome de Joaquim Morão.
O ex-autarca, no
entanto, responde no mesmo tom da CML. “Eu não sou um burocrata, sou um homem
de acção. Não fazia relatórios. Estou muito habituado a trabalhar assim.
Reportava ao Salgado e reunia frequentemente com ele.” Joaquim Morão adianta
que “fazia o trabalho político, resolvia os problemas que os empreiteiros iam
encontrando” em obras como as do programa “Uma praça em cada bairro” e as do
Eixo Central.
“Quem diz que eu
não ia lá são os invejosos”, defende-se, garantindo que o seu trabalho foi
“imaculado” e está à vista de todos. “Era uma coisa que não obrigava a uma
presença física. Mas se a Câmara de Lisboa nunca tinha feito aquelas obras,
porque é que as fez agora? O meu papel foi fundamental e é reconhecido pelas
pessoas.”
No período em que
vigoraram os seus contratos com a CML, Morão desempenhava também funções em
numerosas entidades públicas e privadas, ocupando, entre outros, os lugares de
presidente do Conselho de Administração da Caixa de Crédito da Beira Baixa Sul,
provedor da Misericórdia de Idanha-a-Nova, membro do secretariado nacional da
União das Misericórdias Portuguesas, presidente do conselho fiscal da
associação mutualista Montepio Geral e presidente das associações de
desenvolvimento regional Adraces (que tem António Realinho como vice-presidente
e director técnico) e Beiralusa (da qual António Realinho é um dos
vice-presidentes).
Questionado sobre
a possibilidade prática de alguém que reside em Castelo Branco, e tem todos
estes cargos, cumprir as obrigações que ele assumiu com a CML, o ex-autarca
afirma que passava parte da semana em Lisboa, onde tem casa, e mostra-se
indignado com a pergunta. “Eu sou uma pessoa séria. Fiz o trabalho e fi-lo bem
feito. Não cometi nenhuma ilegalidade. Sempre fui uma pessoa humilde e pobre e
continuo a sê-lo.”
Quanto ao facto
de António Realinho estar a braços com uma pesada condenação judicial (ver
caixa), diz apenas que “os problemas que ele tem na vida são com ele”. Realinho
confirma: “O dr. Joaquim Morão nunca teve nada a ver com as minhas empresas.”