Uma década gloriosa para António Costa
O país endividado até à medula parece pronto para se
deleitar com um novo ciclo de obras públicas.
Manuel Carvalho
30 de agosto de 2017, 6:53
O cumprimento de uma simples legislatura já não cabe na
ambição de António Costa. No seu longo discurso na Pontinha, no fim-de-semana
passado, o primeiro-ministro desfez as vestes do líder circunstancial, vestiu a
pele do estadista e rasgou os horizontes do país para os próximos dez anos. A
mudança da perspectiva é muito mais do que uma declaração adaptada ao momento:
é todo um programa. O primeiro-ministro que chegou ao poder depois de o seu partido
ter ficado em segundo lugar nas eleições, o líder frágil que embarcou na
aventura incerta de governar com parceiros historicamente rivais acumulou
músculo para deixar de se preocupar com a mercearia do quotidiano e ganhou
confiança para meter as mãos na construção do futuro. Mais do que o homem que
“virou a página à austeridade” e recolocou o país na senda das contas estáveis
e da economia a crescer, António Costa começa a ver-se imortalizado num
pedestal com o braço a apontar o lustro do Portugal que se reergueu dos
escombros da troika.
Ninguém esperaria grandes novidades de um discurso de fim de
Verão. Seria normal aguardar palavras, ideias ou afectos carregados de
propaganda, porque em causa estava em primeiro lugar um abraço às hostes
socialistas e um chega para lá aos adversários. Ninguém estranharia uma ou
outra promessa a inscrever no Orçamento do Estado ou um gesto de afago à função
pública. Mas António Costa foi muito para lá da tradição. Num ápice, o Governo
que falhou clamorosamente no combate aos incêndios florestais do Verão fez o
reset de todos os seus males e, com galhardia, diz-se capaz de convergir com os
parceiros mais ricos da União Europeia. O país endividado até à medula parece
pronto para se deleitar com um novo ciclo de obras públicas. O tesouro que dá
para as pagar as contas públicas com um défice marginal apenas à custa de
enormes apertos na despesa pública – ou pela conjuntura externa excepcional -,
está aí pronto para distribuir IRS, pensões ou progressões nas carreiras do pessoal
do Estado em nome de “uma mudança de políticas”.
Já vivemos na nossa existência pelo menos uma vez este clima
morno baseado na profecia de um futuro risonho baseado no devaneio do desejo.
Na segunda metade dos anos 90, quando Portugal começava a esgotar a sua energia
e o efeito do choque da Europa e dava sinais de derrapar, ouviam-se a cada
passo os gurus do optimismo a garantirem que, no prazo de uma geração, seríamos
tão ricos como a rica Alemanha. Na segunda metade dos anos 2000, quando o
Governo Sócrates dizia ter o défice controlado e apostava na inovação e no
conhecimento, havia quem prenunciasse uma transformação por decreto de uma
sociedade com fortes laivos de arcaísmo num modelo de ciência capaz de fazer
corar a Suécia de inveja. Deu no que deu. No alheamento, na passividade, no
torpor, no endividamento, na corrupção ou na criação ou reforço das velhas
redes clientelares que adoram governos refastelados e autocomplacentes.
O Portugal que ardeu, o Portugal que conserva dos mais
baixos índices de produtividade da Europa, o país que tem uma economia em
desenvolvimento incapaz de pagar o seu estado social do primeiríssimo mundo, a
extensão do trabalho precário, mal remunerado e mal pago ou o universo das
empresas sem margens para investir não cabem no augúrio da convergência
decretado por António Costa. Mais do que palavras e despesa pública, o combate
a essas amarras do atraso exigem trabalho, disciplina, um Estado amigo da
iniciativa privada, uma fiscalidade incentivadora do risco e do investimento,
um discurso realista e exigente ou um caldo de cultura política capaz de atrair
mais capitais estrangeiros.
É bom que um primeiro-ministro fale do futuro e o faça com
convicção e confiança. É bom que António Costa sublinhe a importância da
educação e da ciência, uma feliz recuperação das políticas de Mariano Gago que,
ao contrário do que a direita neoliberal apregoava, foram decisivas para que a
agricultura, a têxtil ou o calçado sejam o que são hoje. É importante que se
destaque a urgência de um compromisso político para as obras públicas ou para o
próximo ciclo dos fundos estruturais da União Europeia – embora esse apelo soe
a falso no meio de críticas infundadas a Pedro Passos Coelho sobre a sua
avaliação dos bombeiros ou remoques “àquela senhora” do CDS. Essas apologias,
porém, arriscam-se a exprimir apenas ideais abstractos e intemporais. Como na
década perdida de Durão/Santana/Sócrates, em que Portugal acumulou o terceiro
lugar mundial entre as economias que menos cresceram, o país volta a distender-se
e a dedicar-se aos milagres. Não há cura para recidivas assim.
Envolto nas discussões sobre a ideologia do género que fazem
emergir o vazio de uma elite jactante e distante do mundo real, amparado numa
reforma florestal que nasce já ultrapassada pela dimensão dos incêndios, o
Governo sente necessidade do futuro para, como se dizia no salazarismo, “viver
habitualmente”. Criar despesa certa sem nos preocuparmos na receita incerta é,
afinal, uma das grandes tradições nacionais. Agora com uma justificação
suplementar: a “devolução dos rendimentos” é o esqueleto que mantém a
estabilidade política. António Costa pedala uma bicicleta empurrada por
Catarina Martins e por Jerónimo de Sousa e a despesa pública é o combustível
que os alimenta. Nada parece existir para lá dessa necessidade, a não ser um
rancor visceral a Passos Coelho. António Costa e o ministro das Finanças têm
sabido com mérito controlar a dose de combustível que o Estado distribui. Mas
governar parece ser cada vez mais a gestão de trunfos eleitorais.
Concebida para resistir o tempo possível, a actual solução
de Governo está presa à sua transitoriedade original e dificilmente poderá
projectar o país para tempo algum a não ser o do quotidiano. Nem o “optimismo
crónico e às vezes ligeiramente irritante” de António Costa chega para apagar a
imagem de que é um primeiro-ministro limitado pela sua minoria no Parlamento e
pela necessidade de negociar com partidos que, na economia pelo menos, falam
uma língua diferente. O modelo poupa-nos à instabilidade política, o que é uma
dádiva, mas não dá para muito mais. O equilíbrio entre as pressões de Bruxelas
e as exigências dos seus parceiros obriga a que o imediatismo tenha prioridade
sobre a visão a prazo. Com greves como a da Autoeuropa, com palavras como investimento,
risco, exportação, competitividade ou produtividade cada vez mais distantes do
quotidiano, vai-se vivendo um dia de cada vez. O diabo, é certo, não está ao
virar da esquina, mas foi num manto de lassidão assim que o défice, a dívida e
a troika encontraram o ecossistema ideal para prosperar.
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