Jogando com o fogo: a Catalunha e os
jihadistas marroquinos
A Catalunha apostou, para
arregimentar votos favoráveis à independência, no grupo de populações
árabes-islâmicas. Vejamos melhor esta estratégia e os seus efeitos colaterais.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
Imagem de OVOODOCORVO
22 de agosto de 2017, 12:14
https://www.publico.pt/…/jogando-com-o-fogo-a-catalunha-e-o…
1. Agora que os contornos do trágico atentado terrorista de
17 de Agosto de 2017 começam a ser mais claros, várias questões delicadas
emergem. A resposta policial após a ocorrência foi rápida, corajosa e eficaz.
Mas o mesmo não pode ser dito da actuação prévia dos serviços de informações e
segurança, seja a responsabilidade política e operacional do governo espanhol,
do governo autonómico da Catalunha (Generalitat), ou até de ambos. Importa
começar por notar que estamos a falar de um atentado que envolveu uma dúzia de pessoas
— e que levou vários meses a preparar — e de uma actuação isolada de um ou dois
indivíduos, que seria muito mais difícil de antecipar, ou mesmo impossível. A
primeira interrogação é, por isso, a de saber como foi possível que um atentado
envolvendo tanta gente não tivesse sido detectado em comunicações entre os
participantes, ou por movimentos suspeitos feitos por estes. Isto quando era
previamente bem conhecido que a Catalunha, e Barcelona em particular, é uma
zona de alto risco pela presença de islamistas-jihadistas.
2. A segunda interrogação é sobre a explosão na casa de
Alcanar, em Tarragona, ocorrida na noite antes dos atentados e que derrubou
totalmente a casa. É verdade que o tempo para actuar foi bastante escasso — o
ataque no centro de Barcelona ocorreu a meio da tarde do dia seguinte —, mas,
ainda assim, não poderia ter sido uma pista decisiva para ter evitado o
atentado? A casa continha mais de uma centena de garrafas de gás butano, o que
se soube logo na altura, e estava apenas ocupada irregularmente nos últimos
meses dos indivíduos de origem magrebina. Tudo apontava para um caso que não
era o de uma normal explosão de botijas de gás num edifício de habitação.
Sabemos agora que um dos mortos foi o imã da mesquita de Ripoll, em Girona, Abdelbaki
Es Satty — o principal mentor do atentado. Note-se ainda que, há alguns meses
atrás, a polícia espanhola tinha feito circular internamente informação
indicando haver sinais de interesse por esse tipo de material para uso como
explosivos.
3. O imã Abdelbaki Es Satty tinha antecedentes criminais.
Registava já uma condenação por tráfico de haxixe entre Ceuta e Algeciras. Mais
grave ainda, na prisão criou proximidade com um dos perpetradores do atentado
terrorista de 11 de Março de 2004 em Madrid, Rachid Aglif. Anteriormente ao
atentado de Barcelona, viajou também para a Bélgica. Passou alguns meses em
Vilvoorde. Tal como Molenbeek, Vilvoorde ficou bem conhecida pelas piores
razões durante o ano passado, quando ocorreram atentados no aeroporto e metro
de Bruxelas. Vilvoorde e Molenbeek foram as bases — e onde estiveram as redes
de solidariedade e cobertura — dos islamistas-jihadistas com ligações ao
atentado de Bruxelas. Há aí presença ex-combatentes do Daesh e outros grupos
islamistas radicais na guerra da Síria. Mais: existe uma conexão a Marrocos e
em particular a populações oriundas do Rif, onde têm origem muitos dos
islamistas-jihadistas — Abdelbaki Es Satty era também marroquino. Tinha, por
isso, um perfil óbvio para que as suas actividades fossem seguidas de perto, e
com muito cuidado, pelos serviços de informações e segurança. Aparentemente não
foram, porquê?
4. Uma outra interrogação é a de saber a razão pela qual o
governo da Catalunha, ou a gestão municipal de Barcelona, não colocaram
barreiras impeditivas de veículos entrarem em locais com grande concentração de
pessoas, como são as Ramblas. Parece uma medida de segurança bastante óbvia e
necessária, sobretudo desde os precedentes graves dos atentados do ano passado
em Nice, no passeio dos ingleses, e em Berlim, num mercado de Natal. Em ambos
os casos — e de forma particularmente trágica no primeiro —, foram usados
veículos automóveis para atropelar indiscriminadamente pessoas em locais de
grande concentração na via pública. Não se percebe, por isso, o motivo pelo
qual não foram colocadas tais barreiras, tanto mais que já existia uma
recomendação do governo espanhol nesse sentido. Será por avaliação inadequada
da ameaça, achando que bastava ter uma presença policial forte no local, meras
razões estéticas, ou para ser diferente do resto de Espanha, numa estranha
afirmação de autonomia?
5. Tal como aconteceu nos já referidos atentados de Bruxelas
em 2016, fica a sensação de que as autonomias e rivalidades internas criaram
alguma descoordenação nas forças de segurança e nos serviços de informações.
Independentemente de a responsabilidade ser do governo de Madrid, ou do governo
autonómico da Catalunha, ou de ambos, o resultado final foi dificultar uma
actuação preventiva. Sob uma unidade de fachada face à tragédia, simbolizada
pela presença, no dia seguinte ao atentado, do rei Filipe VI na cerimónia de
homenagem às vítimas, nota-se o mal-estar político. O ministro do Interior
espanhol, Juan Ignacio Zoido, anunciou o desmantelamento da célula responsável
pelos ataques. A declaração foi logo criticada e considerada prematura por
Joaquim Forn, Conselheiro do Interior do Governo da Catalunha. Quanto à polícia
catalã — os Mossos d’Esquadra —, formalmente enquadrada pelo governo central,
teve uma actuação muito corajosa e meritória após o atentado, na perseguição
aos culpados. Mas também parece (demasiado) zelosa de uma actuação autónoma.
6. Para além das autonomias e rivalidades internas e do seu
efeito negativo sobre a coordenação das forças de segurança e serviços de
informações, há um aspecto relevante e que tem passado despercebido. Como já
notado, os autores do atentado terrorista eram de origem marroquina (ou de
Melilla). É o caso de Younes Abouyaaqoub, o principal executor. É também o caso
de Abdelbaki Es Satty, o imã de Ripoll. Será um acaso ser essa a origem dos
islamistas-jihadistas? Não é. A questão remete-nos, de alguma forma, para as
políticas do governo autonómico da Catalunha e para a sua ambição
independentista. Está empenhado em organizar um referendo para a independência,
mesmo contra a vontade do governo de Madrid, e em arregimentar, o mais
possível, votos favoráveis. Aqui entra o papel dos estrangeiros residentes na
Catalunha que não têm origem na União Europeia. A ideia é que possam participar
nesse referendo. Numa votação muito próxima, o seu voto poderá ser decisivo. Os
dois grupos substanciais de estrangeiros/ migrantes são os que têm origem na
América Latina e os que provêm do Norte de África. A Catalunha apostou no
segundo grupo de populações árabes-islâmicas (as populações latino-americanas
já falam espanhol/ castelhano e muitos não vêem, por isso, interesse na
aprendizagem da língua catalã). Vejamos melhor a estratégia e os seus efeitos
colaterais.
7. Na Catalunha vive um grupo bastante substancial de
população de origem marroquina, na ordem das trezentas mil pessoas. Nos últimos
anos, o governo autonómico adoptou uma série de medidas favoráveis à emigração
para o seu território e acolhimento dessa população. Entre outras, foi previsto
o ensino escolar do árabe e do tamazig (berber) — usado sobretudo nas zonas das
montanhas Rif e do Atlas de Marrocos. A questão tem a sua ironia se pensarmos
que o governo de Madrid acusa frequentemente a Catalunha de dificultar, ou até
impedir, a aprendizagem e uso do espanhol/ castelhano. Mais: foi dada às
autoridades religiosas de Marrocos um papel fundamental na elaboração de
conteúdos sobre o Islão para a maioria dos muçulmanos na Catalunha, bem como
para a sua disseminação nas escolas e mesquitas. É arriscado ter colocado esse
ensino nas mãos de autoridades religiosas estrangeiras. Claro que tudo isto foi
a pensar mais na independência: os emigrantes marroquinos iam assim ter um
estímulo para se identificar com a Catalunha e isso dará mais votos num referendo.
Foi assim ignorado, ou, pelo menos, subestimado, que o aumento dessa população
incrementava a possibilidade, até por probabilidade estatística, de uma
presença acrescida de adeptos do islamismo-jihadista no seu território. O
atentado terrorista de 17/8 mostrou que essa probabilidade é bem real e da pior
maneira.
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