terça-feira, 29 de agosto de 2017

Operação Marquês: Todas as provas com que Sócrates foi confrontado




Operação Marquês: Todas as provas com que Sócrates foi confrontado

O Ministério Público revelou todos os indícios de corrupção. Um cofre suíço guardava documentos: primo do ex-líder do PS foi herdeiro de Santos Silva

29.08.2017 20:32 por António José Vilela

Tarde de 13 de Março de 2017. Isolados do rebuliço provocado pelos jornalistas à porta do edifício do Departamento Central de investigação e Acção Penal (DCIAP), os três homens do Ministério Público (MP) demoraram apenas 10 minutos a resumir numa das salas do DCIAP as 103 páginas com os indícios de crimes alegadamente praticados por José Sócrates na Operação Marquês. Depois, forneceram ao antigo primeiro-ministro uma cópia do longo despacho judicial e deram-lhe tempo para analisar o documento com os três advogados que o acompanhavam.

O interrogatório recomeçou 40 minutos depois, às 15h35. Como era previsível, Sócrates falou muito: esteve 5h30 a contrariar de forma contundente, às vezes, num tom de voz alto e visivelmente agressivo, as acusações dos procuradores Rosário Teixeira, Filipe Preces e Filipe Costa e do inspector tributário Paulo Silva.

Este foi o terceiro interrogatório do ex-governante na Operação Marquês e o primeiro em que os investigadores lhe imputaram de forma clara até a responsabilidade da estratégia para esconder os alegados pagamentos corruptos recebidos do Grupo Lena, de Vale do Lobo e do Grupo Espírito Santo (GES). Na prática, a equipa de investigadores do DCIAP assumiu que praticamente todos os indícios de corrupção e de dissimulação de património foram planeados e executados sob ordens directas de Sócrates. Por isso, o ex-líder do PS ficou indiciado de mais três crimes em relação ao anterior interrogatório ocorrido em Maio de 2015. Agora, são seis os crimes de que é suspeito:

– corrupção passiva para a prática de acto ou omissão contrários aos deveres do cargo (intervenções ilegais em negócios do Grupo Lena, Vale do Lobo e GES/PT);

– fraude fiscal qualificada (rendimentos ocultos controlados por testas-de-ferro);

– branqueamento de capitais (ocultação e falsa justificação de fundos através de terceiros);

– tráfico de influência (contactos estabelecidos com diplomatas portugueses para negócios do Grupo Lena no estrangeiro);

– falsificação (contrato de arrendamento de um apartamento em Paris e documentos de adesão ao regime extraordinário de regularização fiscal de 2010);

– recebimento indevido de vantagem (pagamento de despesas de lazer em 2011).

O extenso despacho de indiciação do Ministério Público dá ainda a entender que Sócrates foi corrompido enquanto se verificaram os casos Freeport (autorização e licenciamento de um outlet na zona de Alcochete, distrito de Setúbal) e Face Oculta (concursos ganhos por um sucateiro de Aveiro) e que foi devido ao impacto mediático destes processos que o político encetou novas estratégias de dissimulação dos milhões da corrupção que acertou com o empresário Joaquim Barroca, Armando Vara, Hélder Bataglia e o então banqueiro Ricardo Salgado. Directamente ou através de dois testas-de-ferro que lhe guardaram inicialmente na Suíça a fortuna suspeita, o primo José Paulo Pinto de Sousa e o amigo Carlos Santos Silva. Problema: os investigadores judiciais continuam a não dizer onde e quando é que exactamente é que isso sucedeu. Mas insistem (porventura devido às datas dos negócios e aos fluxos financeiros detectados de e para contas de offshores) que tudo se passou enquanto Sócrates era primeiro-ministro, entre Março de 2005 e Junho de 2011.

Os 127 levantamentos em numerário
A nova indiciação e os crimes imputados a José Sócrates, a que a SÁBADO acedeu juntamente com o resumo do interrogatório do ex-governante (um total de 105 páginas, sendo 103 com os factos imputados), contemplam 11 pontos que os investigadores provavelmente usarão para fundamentar a acusação final da Operação Marquês, prevista para o próximo mês de Junho. Por isso, muitos dos factos e indícios com que Sócrates foi confrontado neste novo interrogatório já constaram de forma mais ou menos completa em outra documentação do processo-crime aberto em 2013.

Por exemplo, a questão das entregas de numerário. Só que, agora, o MP já não refere a existência de apenas 40 entregas em cash, mas "pelo menos, 127 levantamentos por caixa, os quais perfazem o montante total de €993.220, todos eles ocorridos na sequência de solicitação do arguido José Sócrates e/ou realizados no interesse deste".

A equipa de investigadores do MP e da Autoridade Tributária (AT) acredita que tem provas de que estes levantamentos em numerário de Santos Silva começaram a 17 de Dezembro de 2010, logo após o início da transferência de mais de 23 milhões de euros que o empresário tinha escondidos em contas na Suíça e que regularizou ainda nesse ano com base numa lei fiscal extraordinária aprovada pelo governo liderado por José Sócrates. Dinheiro que, no entender do MP, sempre foi quase todo de Sócrates.

Além destes valores, os investigadores garantem que identificaram outros levantamentos de contas de terceiros realizados novamente por Santos Silva e sempre destinados ao ex-político que também exerceu funções de ministro do Ambiente entre Outubro de 1999 e Abril de 2002. Ainda segundo estas contas, no total, o dinheiro vivo entregue a Sócrates atingiu os €1.169.700. E neste montante não está incluído o valor dos três imóveis da mãe de Sócrates que foram comprados por Santos Silva – mais cerca de 750 mil euros.

No primeiro e único interrogatório em que aceitou prestar declarações, o empresário Santos Silva reconheceu ao MP e ao juiz de instrução Carlos Alexandre – e depois também o fez na contestação das primeiras medidas de coacção para o Tribunal da Relação de Lisboa – que tinha entregado a José Sócrates, por via directa ou através de intermediários, apenas cerca de "550 mil euros" em numerário. E que se tratara de empréstimos para o ex -primeiro-ministro "honrar alguns compromissos que tinha" e para lhe "permitir um nível de vida compatível com o seu estatuto social" enquanto não recompusesse a vida profissional (Sócrates só terá pago até hoje 250 mil euros a Santos Silva).

"A circulação de tais fundos por diversas contas, o seu levantamento e a posterior circulação em numerário, de maneira a não haver rasto na transposição de tais fundos para a esfera de José Pinto de Sousa [José Sócrates], a forma pela qual (…) se referem (…) utilizando palavras de código, o tom da exigência com que tais solicitações são efectuadas [nos telefonemas gravados no processo], denotam claramente o intuito da sua ocultação e encobrimento, incompatível com a tese de estarmos, como os arguidos querem fazer crer, perante meros empréstimos", contrapôs na altura o procurador Rosário Teixeira, que insistiu neste argumento durante o último interrogatório de Sócrates.

No entanto, segundo a nova documentação a que a SÁBADO acedeu, os registos das entregas de dinheiro vivo a Sócrates foram descritos de forma resumida, mas novamente com valores pouco exactos. Num dos casos, que segundo o MP terá ocorrido a 29 de Outubro de 2013, Santos Silva teria dado a Sócrates "entre €10.000 e €50.000". Dois dias depois, as autoridades registaram outra alegada entrega, desta vez concretizada pela mulher do empresário, Inês do Rosário, no apartamento de Lisboa de José Sócrates. Na indiciação, surge referido um valor aberto: "entre €5.000 e €10.000".

Nestes registos os investigadores anotaram outras transacções com intervalos relevantes de valores. Uma ocorreu a 11 de Novembro, quando Santos Silva e Sócrates terão voltado a encontrar-se e o empresário ter-lhe-á entregado "entre 10 mil e 100 mil euros" em dinheiro vivo. O hiato de valores terá sido ditado pelas dificuldades óbvias da investigação em saber exactamente o que constava no interior dos envelopes transportados por Santos Silva e deixados no recato da casa de Sócrates. Mais do que chegar a entregas de montantes exactos, os investigadores apostam nas datas dos levantamentos que Santos Silva fez em diversos bancos (e na relativa coincidência temporal das entregas subsequentes a Sócrates) para fundamentar a prova (indirecta) da passagem do dinheiro. Mesmo quando estão em causa valores bastante díspares, como aconteceu a 10 de Dezembro de 2013, quando se verificou uma nova passagem de dinheiro que pode ter variado entre "5 mil e 50 mil euros".

O cofre secreto encontrado na Suíça
A tese final do Ministério Público estará já delimitada e aponta para o facto de Sócrates ter sido corrompido com a ajuda de dois testas-de-ferro, o primo José Paulo e o amigo Santos Silva, que abriram contas bancárias na Suíça e usaram durante anos diversas entidades offshore para dissimular o dinheiro da corrupção. Aliás, segundo consta no relato da nova indiciação de Sócrates, foi o antigo político que até apresentou Santos Silva ao tio, António Pinto de Sousa (já falecido), o pai de José Paulo.

Depois vieram os negócios suspeitos conjuntos, iniciados com uma espécie de teste (uma tentativa frustrada de sociedade com uma empresa do grupo do construtor civil José Guilherme) e, finalmente, a aproximação definitiva ao Grupo Lena. "Entre 2005 e 2006, os arguidos Carlos Santos Silva e José Sócrates mantiveram contactos no sentido de o primeiro vir a assumir o papel de intermediário entre os grupos empresariais portugueses, em particular ligados ao sector das obras públicas, e o poder político, na pessoa do arguido José Sócrates", lê-se no auto de interrogatório de 13 de Março de 2017.

Mais adiante, o documento judicial concretiza melhor esta ideia dos investigadores do DCIAP: "A estratégia então acordada entre os arguidos passava pela utilização de uma sociedade do sector de obras públicas que se posicionaria no mercado de forma a participar, ainda que com posição minoritária, em consórcios que iriam concorrer a grandes empreitadas de obras públicas, em Portugal e no estrangeiro, com o apoio do Governo português, de forma a aproveitar os ganhos que viessem a ser gerados, oferecendo essa sociedade a vantagem, por via do acesso à informação e facilitação e angariação de negócios, da proximidade ao poder político, através da pessoa do arguido José Sócrates."

Segundo esta versão, que Sócrates desmentiu novamente com veemência no último interrogatório, o político teria acordado com Santos Silva a abertura de contas no estrangeiro, sobretudo no banco UBS, na Suíça. E precisamente uma dessas contas ficou registada em nome do offshore Belino Foundation, com o MP a garantir que a maior parte dos fundos ali depositados foram sempre de José Sócrates, apesar de o antigo primeiro -ministro nunca ter figurado oficialmente como titular quer do offshore quer das referidas contas bancárias. Mais: caso Santos Silva morresse, o herdeiro de 80% do saldo da Belino Foundation seria entregue a José Paulo, "actuando este na qualidade de fiduciário do arguido José Sócrates", conforme garantiram os investigadores.

Uma parte das provas deste episódio foram encontradas num discreto cofre na Suíça alugado para guardar a documentação que prova que José Paulo chegou a ser o herdeiro deste património acumulado por Santos Silva. O mesmo José Paulo que os investigadores da Operação Marquês garantem que, numa das estadias de Sócrates e de vários familiares no hotel de luxo Sheraton Pine Cliffs, no Algarve, pagou em notas a conta de €21.478,32.

"A partir de Julho de 2007, os arguidos Carlos Santos Silva, José Sócrates e José Paulo Pinto de Sousa acordaram que seriam concentradas nas contas abertas pelo Carlos Santos Silva, em nome da Giffard e da Belino [dois offshores], outros fundos que viessem a ser recebidos como contrapartida por actos do arguido José Sócrates, incluindo os que já se encontravam na esfera de José Paulo Pinto de Sousa", salientou a indiciação, alertando que o primo de Sócrates transferiu logo nesse mês dois milhões de euros para os offshores de Santos Silva.

No início do ano seguinte, em 2008, seguiram-se outras transferências de dinheiro e aplicações financeiras avaliadas em quase 4,5 milhões de euros, "em face de referências públicas ao José Paulo no âmbito de investigações em curso em Portugal, relativas ao caso Freeport" (um processo que acabou sem condenados em 2012 e que visou o alegado pagamento de subornos a políticos portugueses, tendo sido associado a Sócrates). Contas feitas, o MP diz que até à data do encerramento, em meados de Abril de 2008, a conta da Belino recebeu cerca de 9,8 milhões de euros.

Para José Sócrates, esta versão dos factos é simplesmente disparatada. No mês passado, à entrada no Departamento Central de Investigação e Acção Penal, Sócrates disse aos jornalistas que iria responder a todas as questões que lhe fossem colocadas, mas que deveria ser o MP a dar explicações por aquilo que o ex-primeiro-ministro classificou como uma "campanha maldosa e difamatória" contra ele. E acrescentou que estava ali para se defender de "insinuações delirantes, absurdas, falsas, injustas e mentirosas".

E fê-lo durante o interrogatório, pois reafirmou que nunca teve intervenção em qualquer concurso – como no caso das obras referentes ao projecto do comboio de alta velocidade ou nas intervenções da Parque Escolar – e na abertura de portas ao Grupo Lena para entrar na Venezuela. A resposta de Sócrates incidiu na seguinte imputação do MP: "Tais favores acabaram aliás por se traduzir, em particular, no apoio à contratação de empresas do Grupo Lena no âmbito do projecto Parque Escolar, na concessão a um consórcio integrado pela Lena, designado Elos, do troço Poceirão-Caia no âmbito da Rave [a fixação de uma indemnização caso não avançasse a obra] e nos negócios celebrados na Venezuela para a construção de casas pré-fabricadas."

Na indiciação, os investigadores do MP e da Autoridade Tributária concluíram que houve corrupção nestes negócios, mas só avançaram com os valores de adjudicações ao Lena pela sociedade Parque Escolar, ou seja, um conjunto de obras avaliadas em cerca de "90 milhões de euros" que representarão "10,6% das adjudicações totais, numa dimensão superior à quota de mercado do mesmo grupo".

Os pagamentos e a corrupção com oxigénio
Quanto aos pagamentos corruptos, o MP diz que a forma encontrada foi o contrato de prestação de serviços (os investigadores consideram-no fictício) que o Grupo Lena fez com uma empresa de Carlos Santos Silva, a XLM, que previa o pagamento de 250 mil euros por trimestre entre 1 de Agosto de 2009 e 31 de Julho de 2012. O pagamento total terá atingido os 3 milhões de euros (sem IVA).

O MP acha que isto fazia também parte do esquema de dissimulação do circuito do dinheiro para fazer chegar dinheiro a Sócrates, directamente ou através de outras pessoas como um dos sócios de Santos Silva, Rui Mão de Ferro. E também para pagar ao blogger que defendia Sócrates na Internet, António Peixoto, ou remunerar a ex-mulher do político, Sofia Fava (recebeu cerca de 333 mil euros que só declarou às Finanças após a detenção de Sócrates), Domingos Farinho (o professor universitário que ajudou ou escreveu o livro de Sócrates, A Confiança no Mundo) e até o aluguer de longa duração de carros utilizados, por exemplo, por Sofia Fava, pela cunhada de José Paulo, pela mãe e pelo irmão de Sócrates.

O antigo governante defendeu-se de tudo isto, mas pediu para abrir o interrogatório do mês passado com um "protesto" sobre a questão da competência do DCIAP e do Tribunal Central de Instrução Criminal para apreciar os factos da Operação Marquês, uma vez que estão em causa actos praticados no exercício do cargo de primeiro-ministro. Depois, criticou o que considerou ser a violação dos prazos do inquérito (dias depois deste interrogatório, a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, deu mais tempo aos investigadores para concluírem o processo até Junho, tendo o trabalho de ser avaliado ainda este mês) e insistiu no facto de "não lhe serem apresentadas quaisquer provas ou elementos do processo" de onde resultassem "as imputações que lhe são feitas".

Sobre a questão das obras públicas em que há suspeitas de ter sido corrompido, Sócrates reafirmou que nunca teve intervenção em qualquer concurso público ou sequer na abertura de portas ao Grupo Lena para entrar na Venezuela. Em anteriores documentos judiciais, já o MP tinha deixado escrito que as suspeitas de corrupção do processo residiam genericamente no facto de o Grupo Lena ter ganho em Portugal "mais de 200 milhões de euros" em obras públicas entre 2007/10.

Esta é há muito a tese do MP sobre parte dos crimes de corrupção que as defesas do empresário Santos Silva e do ex-primeiro-ministro rejeitam desde sempre de forma peremptória. Logo após os interrogatórios a seguir às detenções de Novembro de 2014, que decretaram a prisão preventiva de Sócrates e de Santos Silva, o advogado João Araújo, que defende ainda hoje o ex-primeiro-ministro, deixou expresso na acta judicial que o crime de corrupção tinha sido "alimentado a oxigénio" pela investigação para não provocar a derrocada do processo. E ainda especificou que o cliente não tinha sido "confrontado com qualquer facto que pudesse indiciar com razoabilidade mínima a prática de um crime de corrupção (activa?; passiva?; outra coisa qualquer?; quando?; para quê?; com que vantagem?)". De seguida, concluiu: "Ora, este crime de corrupção é absolutamente indispensável à história em que assenta esta imputação porque sem a corrupção (...) inexiste a origem ilícita dos fundos, não há branqueamento [de capitais]."

Os negócios da PT e de Vale do Lobo
No recurso subsequente da prisão preventiva para a Relação de Lisboa (Sócrates foi depois mantido em prisão preventiva pela Relação de Lisboa), o advogado reiterou o que já tinha dito ao juiz Carlos Alexandre, vincando que a suspeita de corrupção resultava de um "acervo de indefinições, generalidades meramente conclusivas, intoleráveis em processo penal". Também no recurso de Paula Lourenço, que defende Santos Silva, a questão da corrupção foi arrumada em meia dúzia de linhas: "E é o facto de a Lena ter sido beneficiada de contratos por parte do Estado no processo que constitui o indício de corrupção? Não foram muitas as empresas portuguesas a beneficiar de contractos com o Estado no tempo em que o Engº José Sócrates foi primeiro-ministro? Só por isso há fundamento para a suspeita?"

Mas com o tempo, as suspeitas de corrupção tornaram-se maiores na Operação Marquês. E sempre com Sócrates como o alvo principal. No recente interrogatório, o antigo político foi confrontado com as provas sobre os negócios da Portugal Telecom (PT) e o milionário financiamento público da Caixa Geral de Depósitos (CGD) ao empreendimento de Vale de Lobo. "O arguido Armando Vara [administrador da CGD nomeado pelo Governo de Sócrates] transmitiu ao arguido José Sócrates que, uma vez ultimados os financiamentos a conceder pela CGD, os referidos investidores particulares, através dos executivos e líderes do projecto, os arguidos Diogo Ferreira e Rui Horta e Costa, estariam dispostos a realizar o pagamento de uma contrapartida financeira que poderia ser repartida entre os dois", lê-se na indiciação, que ainda especifica que Sócrates informou Vara que aceitava "apoiar politicamente o investimento, se necessário junto da restante administração da CGD (…), mas agindo em função da perspectiva de poder beneficiar de contrapartida por esse seu apoio". No total, a CGD financiou Vale de Lobo com cerca de 284 milhões de euros e os sócios do empreendimento entraram com "entre 5 a 6 milhões de euros".

O MP diz ainda que os pagamentos corruptos, subsequentes à concessão dos empréstimos a Vale do Lobo, passaram também por um circuito de dissimulação de offshores e contas internacionais. "Assim, a pedido de José Sócrates, o arguido Carlos Santos Silva veio a transmitir ao arguido Armando Vara, de quem era amigo, a identificação da conta suíça aberta em nome de Joaquim Barroca [um dos donos do Grupo Lena]", vincou o despacho de indiciação de Sócrates, para depois concluir de forma peremptória: "Por sua vez, o arguido Armando Vara fez chegar ao arguido Diogo Ferreira, administrador do grupo Vale do Lobo, a identificação da referida conta, a fim de que pudesse dar início aos pagamentos da contrapartida então já acordada, no montante de 2 milhões de euros." Segundo a tese do MP, o dinheiro foi dividido em partes iguais por Vara e Sócrates.

Mas a maior fatia de alegados pagamentos a José Sócrates teve origem nos negócios da PT e terão sido acordados logo durante a Oferta Pública de Aquisição pelo grupo Sonae do capital da empresa, em 2006. Os pagamentos ascenderam a 6 milhões de euros, tendo transitado de um alegado financiamento à Escom (uma empresa do BES liderada por Hélder Bataglia), feito através do BES Angola e do BES. Segundo o MP, o dinheiro passou por contas de offshores de Bataglia, com uma parte a ser encaminhada para o offshore Gunter, com conta na Suíça e detido por José Paulo, "que havia aceite guardar os fundos por conta do arguido José Sócrates".

Os milhões seguiram depois para as contas de Santos Silva. Meses depois, a administração da PT iniciou um processo de restruturação da empresa, com a separação da PT Multimédia e a perspectiva de novos investimentos no Brasil. "Assim, em meados do ano 2007, o arguido Ricardo Salgado acordou com o arguido José Sócrates a realização de pagamentos a favor do mesmo, até um montante que poderia atingir os 15 milhões de euros, no sentido de garantir o apoio do mesmo, enquanto primeiro-ministro, à estratégia definida para a PT", concluiu a indiciação de Sócrates, especificando que Salgado recorreu a Bataglia para o ajudar a transferir os milhões, através de uma "aparente relação contratual" entre a Pinsong International, uma entidade controlada pela ES Enterprises, e o offshore Markwell, de Bataglia.

Para o MP, através deste circuito, foram primeiro transferidos 3 milhões para as contas controladas por José Paulo na Suíça. "Na sequência do acordado entre os arguidos Ricardo Salgado e José Sócrates, os pagamentos prometidos ao segundo continuaram a ser realizados em 2008 e 2009 até atingir o montante de 15 milhões de euros que haviam sido prometidos", frisou o documento judicial. Ou seja, depois do pagamento inicial de 3 milhões de euros ao primo de Sócrates, seguiram outros 12 milhões para as contas na Suíça controladas por Santos Silva/Joaquim Barroca.

Em 2010, com a venda da participação na operadora Vivo e a entrada da PT na nova operadora Oi, Ricardo Salgado precisou de uma nova ajuda do primeiro-ministro José Sócrates, que detinha o poder de bloqueio permitido pela golden share do Estado português. E para pagar esse apoio foi usado um esquema alegadamente montado por Bataglia, Santos Silva e Joaquim Barroca. Tratou-se de um negócio imobiliário angolano feito através de um contrato de promessa de compra e venda de um imóvel, que não chegaria ao fim e que levaria à perda do pagamento inicial feito a título de sinal. "Em execução do acordado, o arguido Hélder Bataglia concertou-se com Carlos Santos Silva no sentido de montar um pretenso negócio que permitisse justificar o recebimento pelo Grupo Lena de uma quantia de €8.000.000 destinada a depois ser utilizada em pagamentos de pretensos serviços a contratualizar com a sociedade XLM [Santos Silva], sendo depois, a partir desta última, distribuídos no interesse do arguido José Sócrates."

O problema é que Hélder Bataglia e Joaquim Barroca, dois dos delatores do MP, desmentem que este negócio abortado fosse um esquema para transferir dinheiro para José Sócrates. Ricardo Salgado também negou que as transferências de 15 milhões de euros identificadas pelos investigadores, e com origem na ES Enterprises e destinadas às contas de Bataglia, tenham servido para pagar luvas a José Sócrates. No recente interrogatório, Sócrates acusou igualmente o MP de ser selectivo nas investigações de factos para o culpar de crimes e de fechar os olhos a outros dados que o poderiam inocentar. E afirmou que se limitou a ter um relacionamento "meramente institucional" com Ricardo Salgado. Só falta explicar porque é que entraram todos aqueles milhões nas contas de Santos Silva na Suíça.

Artigo originalmente publicado na edição n.º 675 da SÁBADO, de 6 de Abril de 2017

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