Operação Marquês: Todas as provas com que Sócrates foi
confrontado
O Ministério Público revelou todos os indícios de corrupção.
Um cofre suíço guardava documentos: primo do ex-líder do PS foi herdeiro de
Santos Silva
29.08.2017 20:32 por António José Vilela
Tarde de 13 de Março de 2017. Isolados do rebuliço provocado
pelos jornalistas à porta do edifício do Departamento Central de investigação e
Acção Penal (DCIAP), os três homens do Ministério Público (MP) demoraram apenas
10 minutos a resumir numa das salas do DCIAP as 103 páginas com os indícios de
crimes alegadamente praticados por José Sócrates na Operação Marquês. Depois,
forneceram ao antigo primeiro-ministro uma cópia do longo despacho judicial e
deram-lhe tempo para analisar o documento com os três advogados que o
acompanhavam.
O interrogatório recomeçou 40 minutos depois, às 15h35. Como
era previsível, Sócrates falou muito: esteve 5h30 a contrariar de forma
contundente, às vezes, num tom de voz alto e visivelmente agressivo, as
acusações dos procuradores Rosário Teixeira, Filipe Preces e Filipe Costa e do
inspector tributário Paulo Silva.
Este foi o terceiro interrogatório do ex-governante na
Operação Marquês e o primeiro em que os investigadores lhe imputaram de forma
clara até a responsabilidade da estratégia para esconder os alegados pagamentos
corruptos recebidos do Grupo Lena, de Vale do Lobo e do Grupo Espírito Santo
(GES). Na prática, a equipa de investigadores do DCIAP assumiu que praticamente
todos os indícios de corrupção e de dissimulação de património foram planeados
e executados sob ordens directas de Sócrates. Por isso, o ex-líder do PS ficou
indiciado de mais três crimes em relação ao anterior interrogatório ocorrido em
Maio de 2015. Agora, são seis os crimes de que é suspeito:
– corrupção passiva para a prática de acto ou omissão
contrários aos deveres do cargo (intervenções ilegais em negócios do Grupo
Lena, Vale do Lobo e GES/PT);
– fraude fiscal qualificada (rendimentos ocultos controlados
por testas-de-ferro);
– branqueamento de capitais (ocultação e falsa justificação
de fundos através de terceiros);
– tráfico de influência (contactos estabelecidos com
diplomatas portugueses para negócios do Grupo Lena no estrangeiro);
– falsificação (contrato de arrendamento de um apartamento
em Paris e documentos de adesão ao regime extraordinário de regularização
fiscal de 2010);
– recebimento indevido de vantagem (pagamento de despesas de
lazer em 2011).
O extenso despacho de indiciação do Ministério Público dá
ainda a entender que Sócrates foi corrompido enquanto se verificaram os casos
Freeport (autorização e licenciamento de um outlet na zona de Alcochete,
distrito de Setúbal) e Face Oculta (concursos ganhos por um sucateiro de Aveiro)
e que foi devido ao impacto mediático destes processos que o político encetou
novas estratégias de dissimulação dos milhões da corrupção que acertou com o
empresário Joaquim Barroca, Armando Vara, Hélder Bataglia e o então banqueiro
Ricardo Salgado. Directamente ou através de dois testas-de-ferro que lhe
guardaram inicialmente na Suíça a fortuna suspeita, o primo José Paulo Pinto de
Sousa e o amigo Carlos Santos Silva. Problema: os investigadores judiciais
continuam a não dizer onde e quando é que exactamente é que isso sucedeu. Mas
insistem (porventura devido às datas dos negócios e aos fluxos financeiros
detectados de e para contas de offshores) que tudo se passou enquanto Sócrates
era primeiro-ministro, entre Março de 2005 e Junho de 2011.
Os 127 levantamentos em numerário
A nova indiciação e os crimes imputados a José Sócrates, a
que a SÁBADO acedeu juntamente com o resumo do interrogatório do ex-governante
(um total de 105 páginas, sendo 103 com os factos imputados), contemplam 11
pontos que os investigadores provavelmente usarão para fundamentar a acusação
final da Operação Marquês, prevista para o próximo mês de Junho. Por isso,
muitos dos factos e indícios com que Sócrates foi confrontado neste novo
interrogatório já constaram de forma mais ou menos completa em outra
documentação do processo-crime aberto em 2013.
Por exemplo, a questão das entregas de numerário. Só que,
agora, o MP já não refere a existência de apenas 40 entregas em cash, mas
"pelo menos, 127 levantamentos por caixa, os quais perfazem o montante
total de €993.220, todos eles ocorridos na sequência de solicitação do arguido
José Sócrates e/ou realizados no interesse deste".
A equipa de investigadores do MP e da Autoridade Tributária
(AT) acredita que tem provas de que estes levantamentos em numerário de Santos
Silva começaram a 17 de Dezembro de 2010, logo após o início da transferência
de mais de 23 milhões de euros que o empresário tinha escondidos em contas na
Suíça e que regularizou ainda nesse ano com base numa lei fiscal extraordinária
aprovada pelo governo liderado por José Sócrates. Dinheiro que, no entender do
MP, sempre foi quase todo de Sócrates.
Além destes valores, os investigadores garantem que
identificaram outros levantamentos de contas de terceiros realizados novamente
por Santos Silva e sempre destinados ao ex-político que também exerceu funções
de ministro do Ambiente entre Outubro de 1999 e Abril de 2002. Ainda segundo
estas contas, no total, o dinheiro vivo entregue a Sócrates atingiu os
€1.169.700. E neste montante não está incluído o valor dos três imóveis da mãe
de Sócrates que foram comprados por Santos Silva – mais cerca de 750 mil euros.
No primeiro e único interrogatório em que aceitou prestar
declarações, o empresário Santos Silva reconheceu ao MP e ao juiz de instrução
Carlos Alexandre – e depois também o fez na contestação das primeiras medidas
de coacção para o Tribunal da Relação de Lisboa – que tinha entregado a José
Sócrates, por via directa ou através de intermediários, apenas cerca de
"550 mil euros" em numerário. E que se tratara de empréstimos para o
ex -primeiro-ministro "honrar alguns compromissos que tinha" e para
lhe "permitir um nível de vida compatível com o seu estatuto social"
enquanto não recompusesse a vida profissional (Sócrates só terá pago até hoje
250 mil euros a Santos Silva).
"A circulação de tais fundos por diversas contas, o seu
levantamento e a posterior circulação em numerário, de maneira a não haver
rasto na transposição de tais fundos para a esfera de José Pinto de Sousa [José
Sócrates], a forma pela qual (…) se referem (…) utilizando palavras de código,
o tom da exigência com que tais solicitações são efectuadas [nos telefonemas
gravados no processo], denotam claramente o intuito da sua ocultação e
encobrimento, incompatível com a tese de estarmos, como os arguidos querem
fazer crer, perante meros empréstimos", contrapôs na altura o procurador
Rosário Teixeira, que insistiu neste argumento durante o último interrogatório
de Sócrates.
No entanto, segundo a nova documentação a que a SÁBADO
acedeu, os registos das entregas de dinheiro vivo a Sócrates foram descritos de
forma resumida, mas novamente com valores pouco exactos. Num dos casos, que
segundo o MP terá ocorrido a 29 de Outubro de 2013, Santos Silva teria dado a
Sócrates "entre €10.000 e €50.000". Dois dias depois, as autoridades
registaram outra alegada entrega, desta vez concretizada pela mulher do
empresário, Inês do Rosário, no apartamento de Lisboa de José Sócrates. Na indiciação,
surge referido um valor aberto: "entre €5.000 e €10.000".
Nestes registos os investigadores anotaram outras
transacções com intervalos relevantes de valores. Uma ocorreu a 11 de Novembro,
quando Santos Silva e Sócrates terão voltado a encontrar-se e o empresário
ter-lhe-á entregado "entre 10 mil e 100 mil euros" em dinheiro vivo.
O hiato de valores terá sido ditado pelas dificuldades óbvias da investigação
em saber exactamente o que constava no interior dos envelopes transportados por
Santos Silva e deixados no recato da casa de Sócrates. Mais do que chegar a
entregas de montantes exactos, os investigadores apostam nas datas dos
levantamentos que Santos Silva fez em diversos bancos (e na relativa
coincidência temporal das entregas subsequentes a Sócrates) para fundamentar a
prova (indirecta) da passagem do dinheiro. Mesmo quando estão em causa valores
bastante díspares, como aconteceu a 10 de Dezembro de 2013, quando se verificou
uma nova passagem de dinheiro que pode ter variado entre "5 mil e 50 mil euros".
O cofre secreto encontrado na Suíça
A tese final do Ministério Público estará já delimitada e
aponta para o facto de Sócrates ter sido corrompido com a ajuda de dois
testas-de-ferro, o primo José Paulo e o amigo Santos Silva, que abriram contas
bancárias na Suíça e usaram durante anos diversas entidades offshore para
dissimular o dinheiro da corrupção. Aliás, segundo consta no relato da nova
indiciação de Sócrates, foi o antigo político que até apresentou Santos Silva
ao tio, António Pinto de Sousa (já falecido), o pai de José Paulo.
Depois vieram os negócios suspeitos conjuntos, iniciados com
uma espécie de teste (uma tentativa frustrada de sociedade com uma empresa do
grupo do construtor civil José Guilherme) e, finalmente, a aproximação
definitiva ao Grupo Lena. "Entre 2005 e 2006, os arguidos Carlos Santos
Silva e José Sócrates mantiveram contactos no sentido de o primeiro vir a
assumir o papel de intermediário entre os grupos empresariais portugueses, em
particular ligados ao sector das obras públicas, e o poder político, na pessoa
do arguido José Sócrates", lê-se no auto de interrogatório de 13 de Março
de 2017.
Mais adiante, o documento judicial concretiza melhor esta
ideia dos investigadores do DCIAP: "A estratégia então acordada entre os
arguidos passava pela utilização de uma sociedade do sector de obras públicas
que se posicionaria no mercado de forma a participar, ainda que com posição
minoritária, em consórcios que iriam concorrer a grandes empreitadas de obras
públicas, em Portugal e no estrangeiro, com o apoio do Governo português, de
forma a aproveitar os ganhos que viessem a ser gerados, oferecendo essa
sociedade a vantagem, por via do acesso à informação e facilitação e angariação
de negócios, da proximidade ao poder político, através da pessoa do arguido
José Sócrates."
Segundo esta versão, que Sócrates desmentiu novamente com
veemência no último interrogatório, o político teria acordado com Santos Silva
a abertura de contas no estrangeiro, sobretudo no banco UBS, na Suíça. E
precisamente uma dessas contas ficou registada em nome do offshore Belino
Foundation, com o MP a garantir que a maior parte dos fundos ali depositados
foram sempre de José Sócrates, apesar de o antigo primeiro -ministro nunca ter
figurado oficialmente como titular quer do offshore quer das referidas contas
bancárias. Mais: caso Santos Silva morresse, o herdeiro de 80% do saldo da
Belino Foundation seria entregue a José Paulo, "actuando este na qualidade
de fiduciário do arguido José Sócrates", conforme garantiram os
investigadores.
Uma parte das provas deste episódio foram encontradas num
discreto cofre na Suíça alugado para guardar a documentação que prova que José
Paulo chegou a ser o herdeiro deste património acumulado por Santos Silva. O
mesmo José Paulo que os investigadores da Operação Marquês garantem que, numa
das estadias de Sócrates e de vários familiares no hotel de luxo Sheraton Pine
Cliffs, no Algarve, pagou em notas a conta de €21.478,32.
"A partir de Julho de 2007, os arguidos Carlos Santos
Silva, José Sócrates e José Paulo Pinto de Sousa acordaram que seriam
concentradas nas contas abertas pelo Carlos Santos Silva, em nome da Giffard e
da Belino [dois offshores], outros fundos que viessem a ser recebidos como
contrapartida por actos do arguido José Sócrates, incluindo os que já se
encontravam na esfera de José Paulo Pinto de Sousa", salientou a
indiciação, alertando que o primo de Sócrates transferiu logo nesse mês dois
milhões de euros para os offshores de Santos Silva.
No início do ano seguinte, em 2008, seguiram-se outras
transferências de dinheiro e aplicações financeiras avaliadas em quase 4,5
milhões de euros, "em face de referências públicas ao José Paulo no âmbito
de investigações em curso em Portugal, relativas ao caso Freeport" (um
processo que acabou sem condenados em 2012 e que visou o alegado pagamento de
subornos a políticos portugueses, tendo sido associado a Sócrates). Contas
feitas, o MP diz que até à data do encerramento, em meados de Abril de 2008, a
conta da Belino recebeu cerca de 9,8 milhões de euros.
Para José Sócrates, esta versão dos factos é simplesmente
disparatada. No mês passado, à entrada no Departamento Central de Investigação
e Acção Penal, Sócrates disse aos jornalistas que iria responder a todas as
questões que lhe fossem colocadas, mas que deveria ser o MP a dar explicações
por aquilo que o ex-primeiro-ministro classificou como uma "campanha
maldosa e difamatória" contra ele. E acrescentou que estava ali para se
defender de "insinuações delirantes, absurdas, falsas, injustas e
mentirosas".
E fê-lo durante o interrogatório, pois reafirmou que nunca
teve intervenção em qualquer concurso – como no caso das obras referentes ao
projecto do comboio de alta velocidade ou nas intervenções da Parque Escolar –
e na abertura de portas ao Grupo Lena para entrar na Venezuela. A resposta de
Sócrates incidiu na seguinte imputação do MP: "Tais favores acabaram aliás
por se traduzir, em particular, no apoio à contratação de empresas do Grupo
Lena no âmbito do projecto Parque Escolar, na concessão a um consórcio
integrado pela Lena, designado Elos, do troço Poceirão-Caia no âmbito da Rave
[a fixação de uma indemnização caso não avançasse a obra] e nos negócios
celebrados na Venezuela para a construção de casas pré-fabricadas."
Na indiciação, os investigadores do MP e da Autoridade
Tributária concluíram que houve corrupção nestes negócios, mas só avançaram com
os valores de adjudicações ao Lena pela sociedade Parque Escolar, ou seja, um
conjunto de obras avaliadas em cerca de "90 milhões de euros" que
representarão "10,6% das adjudicações totais, numa dimensão superior à
quota de mercado do mesmo grupo".
Os pagamentos e a corrupção com oxigénio
Quanto aos pagamentos corruptos, o MP diz que a forma
encontrada foi o contrato de prestação de serviços (os investigadores
consideram-no fictício) que o Grupo Lena fez com uma empresa de Carlos Santos
Silva, a XLM, que previa o pagamento de 250 mil euros por trimestre entre 1 de
Agosto de 2009 e 31 de Julho de 2012. O pagamento total terá atingido os 3
milhões de euros (sem IVA).
O MP acha que isto fazia também parte do esquema de
dissimulação do circuito do dinheiro para fazer chegar dinheiro a Sócrates,
directamente ou através de outras pessoas como um dos sócios de Santos Silva,
Rui Mão de Ferro. E também para pagar ao blogger que defendia Sócrates na
Internet, António Peixoto, ou remunerar a ex-mulher do político, Sofia Fava
(recebeu cerca de 333 mil euros que só declarou às Finanças após a detenção de
Sócrates), Domingos Farinho (o professor universitário que ajudou ou escreveu o
livro de Sócrates, A Confiança no Mundo) e até o aluguer de longa duração de
carros utilizados, por exemplo, por Sofia Fava, pela cunhada de José Paulo,
pela mãe e pelo irmão de Sócrates.
O antigo governante defendeu-se de tudo isto, mas pediu para
abrir o interrogatório do mês passado com um "protesto" sobre a
questão da competência do DCIAP e do Tribunal Central de Instrução Criminal
para apreciar os factos da Operação Marquês, uma vez que estão em causa actos
praticados no exercício do cargo de primeiro-ministro. Depois, criticou o que
considerou ser a violação dos prazos do inquérito (dias depois deste
interrogatório, a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, deu mais
tempo aos investigadores para concluírem o processo até Junho, tendo o trabalho
de ser avaliado ainda este mês) e insistiu no facto de "não lhe serem
apresentadas quaisquer provas ou elementos do processo" de onde
resultassem "as imputações que lhe são feitas".
Sobre a questão das obras públicas em que há suspeitas de
ter sido corrompido, Sócrates reafirmou que nunca teve intervenção em qualquer
concurso público ou sequer na abertura de portas ao Grupo Lena para entrar na
Venezuela. Em anteriores documentos judiciais, já o MP tinha deixado escrito
que as suspeitas de corrupção do processo residiam genericamente no facto de o
Grupo Lena ter ganho em Portugal "mais de 200 milhões de euros" em
obras públicas entre 2007/10.
Esta é há muito a tese do MP sobre parte dos crimes de
corrupção que as defesas do empresário Santos Silva e do ex-primeiro-ministro
rejeitam desde sempre de forma peremptória. Logo após os interrogatórios a
seguir às detenções de Novembro de 2014, que decretaram a prisão preventiva de
Sócrates e de Santos Silva, o advogado João Araújo, que defende ainda hoje o
ex-primeiro-ministro, deixou expresso na acta judicial que o crime de corrupção
tinha sido "alimentado a oxigénio" pela investigação para não
provocar a derrocada do processo. E ainda especificou que o cliente não tinha
sido "confrontado com qualquer facto que pudesse indiciar com
razoabilidade mínima a prática de um crime de corrupção (activa?; passiva?;
outra coisa qualquer?; quando?; para quê?; com que vantagem?)". De
seguida, concluiu: "Ora, este crime de corrupção é absolutamente
indispensável à história em que assenta esta imputação porque sem a corrupção
(...) inexiste a origem ilícita dos fundos, não há branqueamento [de
capitais]."
Os negócios da PT e de Vale do Lobo
No recurso subsequente da prisão preventiva para a Relação
de Lisboa (Sócrates foi depois mantido em prisão preventiva pela Relação de
Lisboa), o advogado reiterou o que já tinha dito ao juiz Carlos Alexandre,
vincando que a suspeita de corrupção resultava de um "acervo de
indefinições, generalidades meramente conclusivas, intoleráveis em processo
penal". Também no recurso de Paula Lourenço, que defende Santos Silva, a
questão da corrupção foi arrumada em meia dúzia de linhas: "E é o facto de
a Lena ter sido beneficiada de contratos por parte do Estado no processo que
constitui o indício de corrupção? Não foram muitas as empresas portuguesas a
beneficiar de contractos com o Estado no tempo em que o Engº José Sócrates foi
primeiro-ministro? Só por isso há fundamento para a suspeita?"
Mas com o tempo, as suspeitas de corrupção tornaram-se
maiores na Operação Marquês. E sempre com Sócrates como o alvo principal. No
recente interrogatório, o antigo político foi confrontado com as provas sobre
os negócios da Portugal Telecom (PT) e o milionário financiamento público da
Caixa Geral de Depósitos (CGD) ao empreendimento de Vale de Lobo. "O
arguido Armando Vara [administrador da CGD nomeado pelo Governo de Sócrates]
transmitiu ao arguido José Sócrates que, uma vez ultimados os financiamentos a
conceder pela CGD, os referidos investidores particulares, através dos
executivos e líderes do projecto, os arguidos Diogo Ferreira e Rui Horta e
Costa, estariam dispostos a realizar o pagamento de uma contrapartida financeira
que poderia ser repartida entre os dois", lê-se na indiciação, que ainda
especifica que Sócrates informou Vara que aceitava "apoiar politicamente o
investimento, se necessário junto da restante administração da CGD (…), mas
agindo em função da perspectiva de poder beneficiar de contrapartida por esse
seu apoio". No total, a CGD financiou Vale de Lobo com cerca de 284
milhões de euros e os sócios do empreendimento entraram com "entre 5 a 6
milhões de euros".
O MP diz ainda que os pagamentos corruptos, subsequentes à
concessão dos empréstimos a Vale do Lobo, passaram também por um circuito de
dissimulação de offshores e contas internacionais. "Assim, a pedido de
José Sócrates, o arguido Carlos Santos Silva veio a transmitir ao arguido
Armando Vara, de quem era amigo, a identificação da conta suíça aberta em nome
de Joaquim Barroca [um dos donos do Grupo Lena]", vincou o despacho de
indiciação de Sócrates, para depois concluir de forma peremptória: "Por
sua vez, o arguido Armando Vara fez chegar ao arguido Diogo Ferreira,
administrador do grupo Vale do Lobo, a identificação da referida conta, a fim
de que pudesse dar início aos pagamentos da contrapartida então já acordada, no
montante de 2 milhões de euros." Segundo a tese do MP, o dinheiro foi dividido
em partes iguais por Vara e Sócrates.
Mas a maior fatia de alegados pagamentos a José Sócrates
teve origem nos negócios da PT e terão sido acordados logo durante a Oferta
Pública de Aquisição pelo grupo Sonae do capital da empresa, em 2006. Os
pagamentos ascenderam a 6 milhões de euros, tendo transitado de um alegado
financiamento à Escom (uma empresa do BES liderada por Hélder Bataglia), feito
através do BES Angola e do BES. Segundo o MP, o dinheiro passou por contas de
offshores de Bataglia, com uma parte a ser encaminhada para o offshore Gunter,
com conta na Suíça e detido por José Paulo, "que havia aceite guardar os
fundos por conta do arguido José Sócrates".
Os milhões seguiram depois para as contas de Santos Silva.
Meses depois, a administração da PT iniciou um processo de restruturação da
empresa, com a separação da PT Multimédia e a perspectiva de novos
investimentos no Brasil. "Assim, em meados do ano 2007, o arguido Ricardo
Salgado acordou com o arguido José Sócrates a realização de pagamentos a favor
do mesmo, até um montante que poderia atingir os 15 milhões de euros, no
sentido de garantir o apoio do mesmo, enquanto primeiro-ministro, à estratégia
definida para a PT", concluiu a indiciação de Sócrates, especificando que
Salgado recorreu a Bataglia para o ajudar a transferir os milhões, através de
uma "aparente relação contratual" entre a Pinsong International, uma
entidade controlada pela ES Enterprises, e o offshore Markwell, de Bataglia.
Para o MP, através deste circuito, foram primeiro
transferidos 3 milhões para as contas controladas por José Paulo na Suíça.
"Na sequência do acordado entre os arguidos Ricardo Salgado e José
Sócrates, os pagamentos prometidos ao segundo continuaram a ser realizados em
2008 e 2009 até atingir o montante de 15 milhões de euros que haviam sido
prometidos", frisou o documento judicial. Ou seja, depois do pagamento
inicial de 3 milhões de euros ao primo de Sócrates, seguiram outros 12 milhões
para as contas na Suíça controladas por Santos Silva/Joaquim Barroca.
Em 2010, com a venda da participação na operadora Vivo e a
entrada da PT na nova operadora Oi, Ricardo Salgado precisou de uma nova ajuda
do primeiro-ministro José Sócrates, que detinha o poder de bloqueio permitido
pela golden share do Estado português. E para pagar esse apoio foi usado um
esquema alegadamente montado por Bataglia, Santos Silva e Joaquim Barroca.
Tratou-se de um negócio imobiliário angolano feito através de um contrato de
promessa de compra e venda de um imóvel, que não chegaria ao fim e que levaria
à perda do pagamento inicial feito a título de sinal. "Em execução do
acordado, o arguido Hélder Bataglia concertou-se com Carlos Santos Silva no
sentido de montar um pretenso negócio que permitisse justificar o recebimento
pelo Grupo Lena de uma quantia de €8.000.000 destinada a depois ser utilizada
em pagamentos de pretensos serviços a contratualizar com a sociedade XLM
[Santos Silva], sendo depois, a partir desta última, distribuídos no interesse
do arguido José Sócrates."
O problema é que Hélder Bataglia e Joaquim Barroca, dois dos
delatores do MP, desmentem que este negócio abortado fosse um esquema para
transferir dinheiro para José Sócrates. Ricardo Salgado também negou que as
transferências de 15 milhões de euros identificadas pelos investigadores, e com
origem na ES Enterprises e destinadas às contas de Bataglia, tenham servido
para pagar luvas a José Sócrates. No recente interrogatório, Sócrates acusou
igualmente o MP de ser selectivo nas investigações de factos para o culpar de
crimes e de fechar os olhos a outros dados que o poderiam inocentar. E afirmou
que se limitou a ter um relacionamento "meramente institucional" com
Ricardo Salgado. Só falta explicar porque é que entraram todos aqueles milhões
nas contas de Santos Silva na Suíça.
Artigo originalmente publicado na edição n.º 675 da SÁBADO,
de 6 de Abril de 2017
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