A coragem de Medina
Medina está a tirar os autocarros
gigantes do centro da cidade e começou pelo centro histórico. Eleitoralismo?
Não. É respeito pela cidade. O mínimo que se pede a um autarca eleito.
BÁRBARA REIS
4 de Agosto de 2017, 6:48
Lisboa acaba de se juntar ao clube europeu das cidades que
não permitem a circulação de autocarros turísticos gigantes nos centros
históricos e as reacções estão a ser tão, tão previsíveis que até divertem.
Mesmo assim, vale a pena olhar para alguns dos argumentos contra a decisão do
presidente da câmara, Fernando Medina.
Há o argumento do “isto é eleitoralismo puro e duro” e “caça
ao voto descarada”. É fácil esquecer que a política é sempre a escolha entre
uma coisa má e uma coisa muito pior — e que a decepção fará sempre parte da
política. É fácil, mas é pena que seja assim. Medina ganha ou perde votos por
impedir os autocarros de levarem turistas até ao centro histórico? Não sabemos.
Mas com dois grupos em confronto — os residentes e os operadores de turismo —,
o autarca socialista optou pela solução mais difícil. Ou pelos eleitores, o que
também é nobre. Um presidente da câmara tem a responsabilidade pública de
servir os residentes da cidade que o elegeu. Essa é uma das suas obrigações.
Com isso, ganhou um acrescento de legitimidade.
Se "caçou" votos, não terão sido muitos. Esta
primeira restrição do acesso de autocarros turísticos gigantes — autênticos
“muros com rodas” — afecta a vida diária de um número residual de eleitores.
Moradores da Sé propriamente dita, são 800. E do Castelo ao Chiado (os 12
bairros abrangidos pela freguesia de Santa Maria Maior) há, ao todo, 10,4 mil
eleitores. Medina nunca foi a eleições, mas António Costa ganhou as autárquicas
de 2013 com uma margem de 186.112 votos (mais 22% do que o partido que ficou em
segundo lugar).
Há também o argumento do “isto é um atentado terrorista ao
turismo”. Mas o inverso é mais verdadeiro. Os "muros com rodas"
cheios de turistas estavam a dar cabo do turismo no centro histórico. Se a
cidade perder identidade, se perder os seus residentes e se se transformar numa
gincana urbana entupida por “muros com rodas”, perdemos mais do que ganhamos.
Perdemos em qualidade de vida para quem cá mora e perdermos turismo. A
“autenticidade” é uma das características mais elogiadas pelos estrangeiros que
nos visitam. Carla Dourado, uma moradora do bairro do Castelo, resumiu a ideia
numa reportagem que fizemos aqui no PÚBLICO há uns meses. “A partir do momento
em que os turistas vierem cá e deixarem de poder tirar fotografias enquanto eu
estou a estender a roupa e começarem a ver, à janela, turistas iguais a eles,
perdem o interesse em vir.”
Neste momento, já há rendas de três e quatro mil euros
mensais e as casas para alugar praticamente desapareceram. Sobrevivem os
residentes-resistentes proprietários das casas onde moram. Veneza, para onde
podemos olhar como possível espelho futuro, tinha 175 mil residentes em 1951.
Hoje tem 50 mil. A freguesia de Santa Maria Maior já está a fazer esse caminho:
nos últimos quatro anos perdeu 3200 eleitores. Alguns saíram porque estavam
cansados de viver numa Disneylândia à beira rio.
Já agora, se há coisa de que Fernando Medina não pode ser
acusado é de não pensar no turismo. Diria mesmo que pensa demasiado no turismo.
Continua a aprovar a transformação de prédios residenciais em hotéis uns atrás dos
outros, sem garantir o necessário equilíbrio entre residentes (que tomam conta
das cidades) e visitantes ocasionais (que experimentam as cidades); o caos
gerado pelos tuk tuk é generalizado e as regras aprovadas estão longe de serem
respeitadas, e o Alojamento Local cresce sem regras, ao contrário do que outras
cidades já fizeram, como Berlim, Paris, Barcelona ou São Francisco.
Tirar os "muros com rodas" do centro deve ser
seguido por outras medidas já tomadas pelas cidades que estão na vanguarda. Em
teoria, essa é a estratégia da câmara e do Governo. Em Fevereiro, Portugal
assinou um memorando de adesão ao Ano Internacional do Turismo Sustentável para
o Desenvolvimento, um projecto da Organização Mundial do Turismo (OMT) das
Nações Unidas. Na altura, a secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes
Godinho, resumiu a estratégia socialista para o turismo com seis palavras: “Não
quer crescer só por crescer.” Na cerimónia, Taleb Rifai, o secretário-geral da
OMT, disse que tinha ficado impressionado com uma coisa em particular na sua
visita a Lisboa: “Ver a consciência política da importância do turismo.” E
sublinhou: “Nunca vi nada comparável a isto.” (o senhor Rifai visitou 84 países
nos últimos quatro anos). Outra coisa que o marcou foi ter almoçado com os três
secretários de Estado do Turismo dos últimos dez anos, que “apresentaram uma
única mensagem”.
Temos de pensar em sustentabilidade antes de Lisboa se
transformar num palco artificial com um cenário bonito ao fundo. Em 2016, foi a
5.ª cidade europeia em crescimento de chegadas de turistas entre 2009 e 2016,
recuando um lugar. Um dos indicadores importantes de qualquer estratégia de
turismo é a "vontade de regressar". Depois de um pico em 2014,
perante a pergunta “é muito provável regressar a Lisboa?”, as respostas
positivas caíram de 90% para 48%. Lisboa tem muitos turistas e poderão até
caber mais 30%, como diz Fernando Medina. Mas tem de haver regras. Segundo o
Mastercard Global Destination Cities Index, no ano passado Lisboa recebeu 3,63
milhões de turistas. Quantos recebeu Nova Iorque? 12,75 milhões. Duas cidades
com dimensões incomparáveis.
Tudo indica que haverá cada vez mais turistas, mas no centro
histórico da capital parece Agosto durante os 12 meses do ano. Lisboa teve o
“melhor Maio de sempre” em passageiros de cruzeiros, quando 82 mil pessoas
desembarcaram no Porto de Lisboa (um aumento de 30% em relação ao ano passado).
Cruzeiros como o MSC Orchestra (2550 passageiros e 1050 tripulantes) e o
colossal MSC Meraviglia, o maior navio de cruzeiros europeu (5714 passageiros e
1536 tripulantes), integraram Lisboa nas suas rotinas. É assim tão difícil
perceber que estas pessoas não podem ser enfiadas em autocarros gigantes e
levadas até à Sé dia após dia?
Há também o argumento do “como é que os turistas chegam aos
hotéis?! De transportes públicos?!”. Li isso há uns dias. A resposta é sim. Em
Lisboa, os turistas chegarão aos seus hotéis exactamente como nós chegamos aos
hotéis do centro de Londres, Paris ou Roma. E, já agora, aos centros históricos
de Frankfurt e Münster, cidades alemãs de dimensões muito diferentes, ou ao
castelo de Silves, onde os autocarros de turistas deixaram de poder subir a
colina há décadas.
Há ainda o argumento de que “as pessoas vão deixar de vir à
Sé”. Mas não faltam exemplos que mostram o contrário. Ainda esta semana, a
Monte da Lua anunciou que, no primeiro semestre de 2017, os parques e
monumentos públicos sob gestão da Parques de Sintra receberam 1,3 milhões de
visitas, um aumento de 27% em relação ao período homólogo do ano passado. Como
vão os turistas até ao Palácio da Pena? A pé, de táxi, de Uber ou nos
autocarros de média dimensão da Scotturb (22 lugares no máximo, cinco euros por
viagem). Só a Pena recebeu mais 180 mil turistas (e sim, Sintra está longe de
ser uma história de turismo ideal, mas não há “muros com rodas” à porta da
Pena).
Há, finalmente, o argumento do “viva o turismo baratucho dos
estrangeiros tesos que vêm a Lisboa e utilizam os tuk tuk”. Por oposição,
imagina-se, aos “turistas ricos” que chegam nas excursões e nos cruzeiros e que
utilizam os autocarros gigantes para visitar a Sé. É apenas mais um mito. Já em
2015, os 512 mil passageiros que desembarcaram em Lisboa em cruzeiros gastaram
menos 25 milhões do que tinham gasto no ano anterior. E alguém se lembra dos
números da Global Blue, a empresa que gere as operações de tax free? No ano
passado, os turistas chineses (que quase não usam cruzeiros nem excursões de
autocarros) gastaram em média 640 euros em compras, por oposição aos 190 euros
gastos pelos passageiros dos cruzeiros (sobretudo europeus). Já agora, só quem
nunca viu alguns dos grupos que saem dos autocarros gigantes à porta da Sé é
que acredita que são turistas com carteiras carregadas e cheios de vontade de
gastar. A propósito: o exacto inverso aplica-se a muitos passageiros de tuk
tuk. Muitos são famílias de classe média e alta, claramente avessos ao turismo
de massas e mais barato do que o oferecido pelas excursões das operadoras dos
“muros com rodas”.
Isto chama-se eleitoralismo de um político que quer acabar
com o turismo? Diria outra coisa: é coragem política e respeito pela cidade.
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