(…) “Durante anos, Portugal viveu debaixo de um impiedoso
diktat do pensamento da direita neoliberal produzido em centros universitários
como o Instituto de Ciências Sociais e disseminado por uma rede eficaz de
jornalistas e colunistas. Hoje Portugal começa a viver debaixo de uma impiedosa
rede de vigilância montada pelos intelectuais do Bloco, pelos apparatchiks do
PCP e pela intelligentsia socialista que se investiu da missão de purgar as
mentalidades dos perigos desviantes. Só se pode falar do Governo e das suas
políticas com perfume de incenso e mãos juntas em jeito de oração. Pouco a
pouco, foram sendo criados os códigos, as palavras e as frases que podemos
dizer e citadas as questões da actualidade que podemos criticar. Quem não o
fizer quebra consensos ou faz fretes a obscuras forças nacionais ou
estrangeiras. Ou se é a favor do Governo, ou se é “pafiano” ou “troikiano” ou,
como agora, entra no “aproveitamento político de tragédias” que estrafega os
“consensos nacionais”(…)
Manuel Carvalho
Sua Santidade, o Governo
Manuel Carvalho
16 de agosto de 2017, 7:10
Antes de produzir declarações majestáticas sobre os supostos
consensos nacionais em torno de “tragédias como as dos incêndios” para criticar
a oposição, o primeiro-ministro devia fazer uma busca no Google. Se o tivesse
feito teria evitado esse campo minado pela demagogia que se abre sempre que um
líder político se quer fazer passar por santinho. Porque a verdade é que o PS
da oposição (e ainda mais o fervoroso Bloco) fez sempre exactamente a mesma
coisa que o PSD e o CDS fazem agora em torno dos incêndios: exploram as feridas
abertas pela tragédia para desgastar quem manda. Foi precisamente o que fez o
actual secretário de Estado das Florestas e então deputado do PS, Miguel
Freitas, em Novembro de 2013, quando acusou Governo de Passos Coelho de se
“tentar desresponsabilizar” pela falta de uma “estratégia integrada” no combate
aos fogos desse Verão que provocaram a morte de nove pessoas e a maior
destruição da floresta nacional desde 2005. Foi também o que fizeram o Bloco e
o PCP sempre que os relatos dos incêndios subiam de tom e colocavam, como
agora, o país em estado de alarme.
Nós percebemos que haja em todo este clima de denúncias da
oposição um certo ar de necrotério e na sua estratégia um certo voo de abutre.
Nós conseguimos entender as razões que levam tantos militantes do Governo a
criticar as televisões pelos direitos dos fogos ou pelo tempo de antena que
lhes concedem. Mas era o que faltava que num país democrático que vive um dos
seus momentos mais dramáticos em anos se limitasse a cantar em coro a partitura
do Governo. António Costa tenta santificar a sua missão e demonizar a da
oposição precisamente porque a revelação de sucessivas falhas no combate aos
incêndios o incomodam, estragam o seu sucesso na frente económica e obrigam-no
a medir a popularidade em “focus group”. Exigir que essas falhas sejam
reveladas (como o fez exemplarmente esta semana a ministra da Administração
Interna) e discutidas é essencial para escrutinar o Governo e, principalmente,
para se exigir a reparação de erros no futuro.
Pedir silêncio quando o Estado falha e o país arde é um
absurdo a menos que tenha uma finalidade sub-reptícia: dar argumentos às hostes
que defendem com unhas e dentes o Governo. Ou seja, de criar uma narrativa. Já
sabemos como isso funciona. É munir os sapadores políticos dos partidos da
coligação com uma cartilha: não se pode falar dos erros no combate aos
incêndios; não se deve pedir a demissão da ministra; o Governo virou mesmo a
“página da austeridade” porque é uma estrela que veio do firmamento para nos
salvar da troika; a união de facto entre os partidos da esquerda é uma
maravilha da política contemporânea celebrada pelo mundo fora e só rejeitada
entre portas por causa da proverbial estupidez e inveja dos indígenas.
Durante anos, Portugal viveu debaixo de um impiedoso diktat
do pensamento da direita neoliberal produzido em centros universitários como o
Instituto de Ciências Sociais e disseminado por uma rede eficaz de jornalistas
e colunistas. Hoje Portugal começa a viver debaixo de uma impiedosa rede de
vigilância montada pelos intelectuais do Bloco, pelos apparatchiks do PCP e
pela intelligentsia socialista que se investiu da missão de purgar as
mentalidades dos perigos desviantes. Só se pode falar do Governo e das suas
políticas com perfume de incenso e mãos juntas em jeito de oração. Pouco a
pouco, foram sendo criados os códigos, as palavras e as frases que podemos
dizer e citadas as questões da actualidade que podemos criticar. Quem não o
fizer quebra consensos ou faz fretes a obscuras forças nacionais ou
estrangeiras. Ou se é a favor do Governo, ou se é “pafiano” ou “troikiano” ou,
como agora, entra no “aproveitamento político de tragédias” que estrafega os
“consensos nacionais”.
Desta vez, não é preciso haver um Armando Vara e um José
Sócrates a pensarem em planos sórdidos de controlo dos jornais e dos
jornalistas para que a luta por um novo pensamento único ganhe fulgor. Com a
direita ultraliberal resignada e ressentida com um mundo que tolera a
existência de um Governo socialista capaz de cumprir o défice, basta uma dúzia
de colunistas de varapau, e, principalmente, uma rede de detectores de falhas
da imprensa para que os desvios sejam rapidamente identificados e denunciados.
É aí que um erro ou uma omissão dos jornalistas se transformam numa conspiração
planeada nos segredos dos bastidores por forças poderosas que ameaçam a “sua”
democracia. O que os move não é a saudável exigência por uma imprensa
escrutinada, forçada a ser mais exigente, mais crítica e mais servidora do
interesse público: é antes a criação de uma suspeita genérica sobre a sua
legitimidade. Se há críticas ao Governo ou elogios ao CDS não é por causa do
pluralismo: só pode ser por causa de um plano subversivo das forças do mal. Um
jornal sarcástico e comprometido como “O Independente” seria, nestes dias, um
crime.
Neste campo minado, a direita enterra-se todos os dias.
Porque a sua doutrina, as suas fragilidades e os seus erros são presas fáceis
para os lobbies da esquerda indiscutível que vai de Pedro Nuno Santos a
Francisco Louçã. Porque é incompetente. E porque caiu na tentação de ser do
contra por sistema. Quando numa crise tão grave como a actual o CDS e o PSD se
limitam a criticar sem serem capazes de produzir uma única ideia, uma só
proposta, está quase tudo dito sobre a sua moral para pedir contas. O caso
extremo desta política “partisan” aconteceu com a reforma da Floresta, da qual
os dois partidos do centro-direita se retiraram para entregar o PS às
exigências disparatadas do Bloco de Esquerda. Por culpas próprias e eficiências
alheias, o que começa a ser evidente não é apenas a demolição da liderança de
Passos ou de Assunção Cristas; é também a própria leitura do passado recente
que está a ser reescrita. Não se pode dizer que em 2010 Portugal estava no
limiar da bancarrota ou que a austeridade nos foi imposta porque para os novos
donos das palavras isso é ou mentira ou submissão ao jogo da direita, do FMI,
de Bruxelas ou do capital.
Esta onda que tende a seguir os velhos trilhos dos
populismos e das ditaduras, quase sempre iniciados com a apropriação das
palavras e a generalização da maldade das “forças de bloqueio”, seja a oposição
ou os jornalistas, vem de longe. Mas a militância apaixonada da
extrema-esquerda e o poder das redes sociais tornam-na mais forte. Portugal é
felizmente uma democracia consistente onde ainda se respira bem. Mas para
percebermos onde estamos, é bom apontar o dedo aos que o apontam a cada passo a
todos os que falam ou pensam de forma diferente.
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