O Professor "Máventura" autor de "Em defesa da Venezuela” |
A revolução na Venezuela, novo ópio
dos intelectuais
Uma democracia exige liberdade de
expressão, pluralidade de opiniões e imprensa livre. Nada disto existe na
Venezuela de hoje.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
31 de Julho de 2017, 15:42
1. Ao ler o artigo de Boaventura Sousa Santos no PÚBLICO do
passado 29/07/2017, “Em defesa da Venezuela” — na realidade mais uma defesa do
que terão sido os progressos sociais e políticos do regime de Hugo Chávez e
Nicolás Maduro —, veio-me à mente o livro de Raymond Aron, O Ópio dos
Intelectuais. O contexto era outro, o Guerra Fria e o da disputa ideológica
entre o socialismo-comunista e a democracia liberal (o livro foi escrito nos
anos 1950). Raymond Aron fazia aí uma crítica contundente à sedução de muitos
intelectuais por ideologias não democráticas, ou mesmo totalitárias, que não
perdeu sentido no mundo de hoje. Para este, muitos intelectuais andavam à
procura de uma nova religião. Envolviam-se em disputas que não eram agora
teológicas, para saber qual a verdadeira doutrina, mas seculares, sobre o
verdadeiro partido/ideologia que devia guiar o ser humano. Neste meio, a
difusão do marxismo seria algo comparável à do Cristianismo na Antiguidade.
2. Raymond Aron via ainda semelhanças noutros planos. O
marxismo, tal como o Cristianismo, também condena a sociedade existente,
fornecia uma imagem do futuro e apontava para um homem, ou um grupo, que
levaria a um futuro radioso. Nas palavras cáusticas de Raymond Aron, o
comunismo era a “primeira religião de intelectuais bem-sucedida”. Com o final
Guerra Fria e o colapso da União Soviética, esta “religião” teve um forte abalo
e perdeu a grande maioria dos seus seguidores. O que parece ter perdurado foi a
necessidade de cultivar simpatia, e dar credibilidade, a ideologias e líderes
com tendências autoritárias dos mais diversos quadrantes. É bem conhecido que
Benito Mussolini, Adolf Hitler, José Estaline (Joseph Stalin) ou Mao Tsé-Tung
(Mao Zedong) tiverem inúmeros admiradores na elite intelectual europeia e
ocidental. As razões desse atractivo voltaram recentemente a ser analisadas num
interessante livro de Paul Hollander, From Benito Mussolini to Hugo Chávez.
Intellectuals, and a Century of Political Hero Worship (Cambridge University
Press, 2017). Hoje Hugo Chávez — e o seu continuador, Nicolás Maduro — parecem
ter dado novo alento ao “ópio dos intelectuais” que parecia esquecido no
"caixote do lixo" da história.
3. A situação tem uma grande ironia por outras razões. Em
1857, Karl Marx escreveu para a New American Cyclopaedia um artigo biográfico
sobre Simón Bolívar (o texto está traduzido e publicado no livro Simón Bolívar
por Karl Marx, Martins Fontes, 2007). Hoje, na Venezuela de Hugo Chávez e
Nicolás Maduro, Simón Bolívar é idolatrado. Os três, em conjunto, formam uma
espécie de “Santíssima Trindade” do regime. Para além disso, o PSUV – Partido
Socialista Unido da Venezuela tem defendido ideias atribuídas a Simón Bolívar
no seu programa político bolivariano e socialista. No seu programa, são também
feitas referências ao marxismo. A ironia da história, independentemente das
várias explicações que possam ser dadas para isso (uma delas é a origem aristocrática
de Simón Bolívar, que era um rico latifundiário e não via nas classes populares
grande utilidade, por falta de adequada consciência política), é que Karl Marx
não nutriu qualquer simpatia, pessoal ou política, por Simón Bolívar. Pelo
contrário, as palavras de Marx para descrever Bolívar foram particularmente
duras. A impressão com que se fica ao ler o texto de Marx é que Bolívar não foi
nem libertador usualmente retratado, nem sequer um herói militar, mas um
oportunista com muito pouco de heróico e muito de ambição pessoal de poder,
fundamentalmente um ditador.
4. A representação que Karl Marx fez de Simón Bolívar pode
não ser historicamente a mais correcta, mas, curiosamente, parece captar muitos
dos males que hoje padecem aqueles que reclamam o seu legado político na
Venezuela. A peculiar eleição de uma Assembleia Constituinte convocada por
Nicolás Maduro para 30/07/2017, muito pouco, ou nada, tem de democrático. O
problema começa logo na forma como são escolhidos os 545 deputados: oito pelos
indígenas, 364 pelos círculos territoriais e 173 sectoriais: trabalhadores;
camponeses, pescadores; estudantes; pessoas com incapacidades; pensionistas e
reformados; empresários e comunidades locais. Percebe-se que os partidos
políticos — especialmente os da oposição — são cada vez mais vistos como um
empecilho para a "democracia" bolivariana. Na realidade, estamos
perante um sistema que não desdenharia, nem à direita nem à esquerda, a todos
os que menosprezam a democracia representativa e a alternância democrática,
através de eleições onde o voto em diferentes partidos/ideologias políticas é
livre e respeitado.
5. Há nesta eleição para a Assembleia Constituinte
paralelismos estranhos e preocupantes. Apesar do actual regime venezuelano se
ver, a si próprio, como progressista e socialista, o sistema eleitoral
provavelmente não desagradaria a regimes autoritários como o do Estado Novo
português. Este, numa das suas características próximas do fascismo italiano,
tinha também a ideia da representação de sectores/corporações numa Assembleia
Nacional. O argumento era o de uma suposta representatividade do todo nacional.
Na realidade, tratava-se de contornar e proibir o pluralismo e os partidos
políticos de diferentes quadrantes ideológicos. No Estado Novo, a função da Câmara
Corporativa era "dar voz" a sectores de natureza económica, cultural,
social, laboral, autárquico e outros, vistos como “elementos estruturais da
pátria”. No sistema eleitoral sectorial da Venezuela de hoje, independentemente
das justificações “progressistas”, algo parecido parece estar a ocorrer. Se a
isto juntarmos a contínua propaganda centrada no culto da personalidade,
especialmente de Hugo Chávez — associada a um uso/apropriação da imagem/legado
de Simón Bolívar —, a estratégia política ressoa, ainda mais, a algo
perigosamente próximo do fascismo italiano dos anos 1920 e 1930. Benito
Mussolini, quando jovem, também passou por uma fase de socialista
revolucionário.
6. Na Venezuela, Nicolás Maduro usa outra estratégia
clássica de governantes sem legitimidade democrática, ou então que enfrentam
crescente perda de apoio popular, como é o seu caso. Procura manipular o
sentimento patriótico da população criando a ideia que o país está cercado por
inimigos externos e de traidores internos (ou seja, a oposição). É preciso
salvar a pátria e a revolução bolivariana. Assim, galvaniza permanentemente a
sua base de apoio. Ao mesmo tempo, tem uma suposta legitimidade para reprimir
os opositores — apresentados, indiscriminadamente, como “lacaios” do
“imperialismo americano” e conspirando contra a revolução bolivariana,
incluindo a imprensa —, limitando-lhes a liberdade de expressão, ou mesmo
prendendo-os. A manobra política de Nicolás Maduro, de convocar eleições para
uma Assembleia Constituinte, mostra-se demasiado óbvia nos seus objectivos de
controlo do poder. Tudo indica pretender afastar qualquer oposição pluralista,
para ser levada a sério como genuína manifestação de democracia. Não se
descortina onde está o intuito democrático e pacificador que oficialmente diz
ter.
7. A ideia de manobra para afastar a oposição de todos os
órgãos de soberania é reforçada pelo facto de a Constituição em vigor, que data
de 1999, já ter sido feita sob o impulso de Hugo Chávez, e com este no poder.
Quer dizer, trata-se de uma Constituição do actual regime político. É também
reforçada pelo facto de o parlamento, a Assembleia Nacional da República
Bolivariana da Venezuela, estar em funções desde inícios de 2016 e ter um
mandato constitucional até 2021. O problema de Nicolás Maduro é que aí os
partidos da oposição têm uma clara maioria, resultante da vitória nas eleições
parlamentares de finais de 2015 — onde obtiveram mais de 56% dos votos. Nicolás
Maduro e os seus apoiantes do Grande Polo Patriótico Simón Bolívar/Partido
Socialista Unido da Venezuela – PSUV pretendem eleger uma Assembleia
Constituinte que diz ir resolver os males da Venezuela. Tudo indica, como já
referido, que o objectivo último é outro: dissolver o actual parlamento e
retirar qualquer representação nos órgãos de soberania aos partidos da oposição
da Mesa da Unidade Democrática. A partir daí, a lógica da alternância
democrática está cada vez mais posta em causa.
8. Mas os atropelos ao pluralismo político e ao voto livre e
democrático não se ficam por aqui. Funcionários de empresas públicas como a
Petróleos da Venezuela (PDVSA) ou o Metro de Caracas denunciaram pressões e
ameaças internas para votarem nas eleições para a Assembleia Constituinte —
essencialmente candidatos do regime, ou próximos, devido ao boicote da oposição
—, sob pena de despedimento. Similares pressões terão sido feitas sobre todos
os que dependem do governo — e são muitos, devido às dependências criadas pelo
regime para maximizar o seu poder sobre a população —, seja devido a pensões,
subsídios ou simplesmente a acesso a alimentos e medicamentos, numa economia
onde quase nada funciona com normalidade. Neste clima de pressões, intimidação
e violência, a liberdade de escolha está condicionada à partida. Uma democracia
exige liberdade de expressão, pluralidade de opiniões e imprensa livre. Nada
disto existe na Venezuela de hoje. Por muito que tenham sido meritórias as
medidas sociais tomadas por Hugo Chávez (e algumas foram), o que existe agora é
uma perigosa deriva para o autoritarismo e uma economia estilhaçada. Ambas
levam cada vez mais gente a abandonar o país. Essa é uma realidade trágica e o
melhor antídoto de bom senso para os que se iludem com novos ópios.
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