Os azulejos estão em frente ao nosso
nariz e nós não os vemos"
Há dez anos, no pico do furto de
azulejos, o Museu da PJ decidiu criar um projecto para sensibilizar um povo
distraído do tesouro que tinha em mãos. O SOS Azulejo conseguiu recentemente
uma das suas maiores conquistas.
João Pedro Pincha
JOÃO PEDRO PINCHA 27 de agosto de 2017, 8:00
Foi como um daqueles presentes de aniversário que se cobiçam
durante muito tempo. No ano em que o projecto SOS Azulejo celebra uma década de
actividade, o Parlamento pôs finalmente em lei aquilo que há muito era visto
como uma necessidade imperiosa por todos os defensores dos pequenos mosaicos
que decoram Portugal de norte a sul. Desde a semana passada que é proibido
demolir prédios com fachadas azulejadas e também retirar azulejos das mesmas.
Não bastava só proibir as demolições, era preciso prevenir
também os subterfúgios usados por quem se quer ver livre daqueles pedaços de
cerâmica. “Há sempre aquelas pessoas que pensam ‘se não vai abaixo com
azulejos, tiro-os e já pode ir abaixo’”, explica Leonor Sá, coordenadora do SOS
Azulejo, projecto criado há dez anos pelo Museu da Polícia Judiciária e o
principal responsável pela recente alteração legislativa.
Se dependesse das câmaras municipais, esta protecção aos
azulejos tarde ou nunca chegaria. Em 2013, depois de Lisboa ter inscrito no seu
Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação (RMUEL) as interdições agora
nacionais, o SOS Azulejo tentou, através de uma parceria com a Associação
Nacional de Municípios, que outros concelhos seguissem o exemplo. “Mas em três
anos houve só três pequenos municípios que aderiram e nós vimos que íamos ficar
vinte anos à espera” até que todas as câmaras mudassem as regras, diz Leonor
Sá. “Ao fim de vinte anos já não teríamos se calhar metade do património
azulejar que temos hoje”, pelo que era urgente agir. “Para grandes males,
grandes remédios. Decidimos que íamos ao Parlamento apresentar o projecto e
algumas propostas muito concretas.”
Os deputados aprovaram duas propostas – as proibições já
mencionadas e a criação do Dia Nacional do Azulejo, assinalado a 6 de Maio –,
mas há outra que continua na gaveta. Aquela que prevê limitar a venda de
azulejos antigos a um grupo restrito de comerciantes. “Hoje já há uma
obrigatoriedade legal de determinados estabelecimentos, sobretudo antiquários e
lojas de velharias, enviarem à polícia mapas mensais das suas transacções”,
sublinha Leonor Sá. Só esses espaços, defende, é que deviam ter autorização
para vender, uma vez que “são controláveis” pelas autoridades. “Deixava de
haver esta venda descontrolada”, acredita a responsável do projecto.
O lento caminho da abertura de olhos
Talvez uma lei desse género chegue como presente para o
décimo primeiro aniversário. Até lá, Leonor Sá quer que o SOS Azulejo se
empenhe no que sempre o moveu durante estes anos: a sensibilização dos
indiferentes. “Grande parte da população portuguesa, como vive rodeada de
azulejos, não lhes liga grande coisa. Mas existem grupos de pessoas –
historiadores de arte, cientistas, museólogos e até delinquentes, amigos do
alheio – que sabem muito bem o valor dos azulejos.”
Entre as décadas de 1980 e 2000 desapareceram 25% dos
azulejos artísticos existentes nos prédios de Lisboa. Dentro e fora de portas.
No resto do país, a perda é praticamente incalculável. “No final dos anos 90 e
no princípio do século XXI houve, de facto, um aumento exponencial de furtos”,
recorda Leonor Sá. E isso devia-se, em grande parte, a “uma indiferença
generalizada” da população, autarcas incluídos, talvez iludida por uma certa
ideia de progresso que olhava para os azulejos como objectos kitsch sem lugar
no Portugal moderno.
Foi para combater ideias deste tipo que o SOS Azulejo
nasceu, em 2007. “Os azulejos estão em frente ao nosso nariz e nós não os
vemos.” O que fazer? Valorizar, sensibilizar, conservar. “Nós preocupámo-nos em
ter uma abordagem interdisciplinar, ou seja, abordar não apenas a questão dos
furtos, mas também a falta de conservação e a falta de valorização”, explica a
coordenadora. Para além da publicação constante de fotografias de azulejos
roubados, o site do projecto tem conselhos práticos e exemplos de boas
práticas. Porque “a sensibilização é uma batalha difícil e lenta” e não pode
viver só de mostrar os maus exemplos. “Nós quando lançámos o projecto só
abordávamos coisas negativas: furtos, vandalismo, maus tratos, era tudo
negativo. De repente começámos a ver que também havia boas práticas, que não
tinham praticamente nenhuma visibilidade, que ninguém sabia que existiam.”
Surgiram assim os Prémios SOS Azulejo, de que já houve sete edições e que
galardoaram dezenas de projectos, artistas e arquitectos.
Aqui chegados, Leonor Sá não tem dúvidas: “Os azulejos são
encarados hoje de uma maneira muito diferente do que eram há dez anos. Temos
muito mais gente a ligar ao património, muito mais gente apaixonada pelo
património e pelos azulejos, isso até se vê nas redes sociais, há n páginas no
Facebook” sobre este tema.
Entre o activismo atrás do ecrã e a realidade há, ainda,
contudo, uma distância que vai demorar mais algum tempo a percorrer. A
legislação agora publicada é importante, até para limitar a venda, dado que
muitos dos azulejos que se encontram em feiras e lojas de velharias provêm de
demolições – que agora são ilegais. Mas, ainda assim, a protecção dos pequenos
mosaicos artísticos e históricos continua a depender da sensibilidade dos
técnicos camarários. A lei proíbe demolições e remoções, “salvo em casos
devidamente justificados, autorizados pela câmara municipal em razão da
ausência ou diminuto valor patrimonial relevante destes”.
Por outro lado, os painéis que se escondem atrás de portas,
por vezes em edifícios que por fora pouco chamam a atenção, continuam sem uma
protecção específica. Leonor Sá acredita a via legislativa não é a solução para
este caso. “Uma lei que protegesse também os interiores ia ser complicadíssima,
muito burocrática”, diz, alegando que “teríamos de ter cem vezes mais fiscais
do que temos, ou mil vezes mais” para fazer cumprir as regras. Por isso, também
aqui, é à sensibilidade de arquitectos, empreiteiros e proprietários que ficam
entregues os azulejos.
A receita, sublinha Leonor Sá, é a de sempre. “Estamos
convencidos de que, com as campanhas de sensibilização que temos vindo a fazer,
cada vez mais pessoas vão olhar para os azulejos dos interiores com outros
olhos e protegê-los, não os retirando com a facilidade com que têm vindo a
retirar.”
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