De Chico Buarque a Charlottesville
Há um caminho que vai de Chico
Buarque a Charlottesville, e que é rapidamente percorrido por todos aqueles que
querem higienizar a História e suprimir discursos ofensivos.
João Miguel Tavares
24 de agosto
de 2017, 6:47
O meu texto sobre o suposto machismo de Chico Buarque nunca
teve o objectivo de impor um pensamento único sobre as letras das suas canções.
Ouvi este argumento: se cada pessoa tem direito a dizer o que lhe apetece, e se
eu defendo tão fervorosamente esse direito, porque estou incomodado com uma
simples opinião? De facto, não são as opiniões isoladas que me incomodam. O que
me incomoda é quando milhares de pessoas convergem para alimentar as chamadas
“políticas de identidade”. A alegada protecção dos grupos historicamente desfavorecidos
está a traduzir-se numa vigilância obsessiva da linguagem e dos costumes, com
consequências tragicamente opostas ao pretendido: em vez de promovermos
sociedades mais tolerantes e abertas à diferença – mais liberais, se quisermos
–, estamos a promover sociedades cada vez mais radicalizadas, como se começa a
ver um pouco por todo o lado.
Ontem, o meu colega de página Rui Tavares – que eu muito
prezo por ser um dos dois opinadores à esquerda do PS (três, no máximo) que não
fala sobre a direita numa posição de superioridade moral – criticava-me por eu
ter dito que estamos “num mundo onde as palavras estão sob uma vigilância que
já não se via desde os tempos da Inquisição”. Rui Tavares considera que
exagero, e dava como exemplo o facto de haver gente que era presa em Portugal
no século XVII por “varrer a casa ao contrário”. Mas exagero mesmo? É claro que
ninguém é preso neste país por dizer o que lhe apetece, nem eu disse que era. O
que disse – e mantenho – é que a vigilância verbal está a atingir níveis
delirantes, sobretudo nos círculos universitários e culturais anglo-saxónicos,
e que tenho genuínas dificuldades em encontrar paralelo histórico para tal
obsessão fora dos dispositivos inquisitoriais e confessionais.
Quem leia a imprensa esbarra diariamente nos exemplos mais
absurdos, que diferem muito pouco de varrer a casa ao contrário. É o metro de
Londres que decide abandonar o “ladies and gentlemen” para não ofender quem não
se considera nem “lady” nem “gentleman”. É a adição de pronomes alternativos
para quem não se satisfaz com o “she” ou o “he” (e que inclui tanto o patusco
“ze” como o uso do “they” na terceira pessoa do singular para quem tem “género
flutuante”). É a petição para que o antirracista To Kill a Mockingbird seja
retirado das escolas da Virginia por conter palavras racistas. É a praga da
“apropriação cultural”, que considera desadequado o uso de penteados rastafari
por quem não é jamaicano, que uma criança branca se disfarce de índio, ou que o
sushi seja consumido em cantinas americanas. É o frenesim da remoção de
estátuas confederadas, que começa a ter réplicas por todo o lado – Afua Hirsch
defendeu há dois dias no Guardian que o monumento ao almirante Nelson, que
classifica como “supremacista branco”, deveria sair de Trafalgar Square.
O problema é que a falta de bom-senso, a descontextualização
histórica e o desvario linguístico são o combustível que tem alimentado a
fogueira da alt-right americana, os racistas do Ku Klux Klan e os bandos de
nazis que começam a sair do hospício. Chamar “supremacista branco” a um herói
britânico que morreu em 1805 é uma prenda magnífica para os supremacistas
brancos de 2017. Há um caminho que vai de Chico Buarque a Charlottesville, e
que é rapidamente percorrido por todos aqueles que querem higienizar a História
e suprimir discursos ofensivos. Ironia das ironias: em nome da tolerância, é a
intolerância que alastra.
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