Cinemateca: o que será da cidade sem
o cinema e do cinema fora da cidade?
Rentrée da Cinemateca Portuguesa vai ter dezenas de filmes
sobre as cidades, numa altura em que elas perdem salas e que alguns
espectadores preferem a sua sala para o ver, mas também sobre a revolução
soviética de 1917 e sobre, e com, Luis Miguel Cintra.
JOANA AMARAL CARDOSO 3 de Agosto de 2017, 18:23
As cidades, e o país com elas, têm perdido salas de cinema –
o que lhes acontece, e ao próprio cinema, neste momento de “transformação
profunda que nos transcende”, como descreve o director da Cinemateca Portuguesa
José Manuel Costa? Em que a experiência cinematográfica e as cidades onde
surgiram “os grandes templos do cinema”, como detalha a programadora Joana
Ascensão, mudam tanto? A resposta tentará estar algures entre Godard, Oliveira,
Warhol, Tati, Vidor, Scorsese e o ciclo de cinema que pontuam, e debates e
colóquios a marcar a rentrée da Cinemateca em Setembro.
O Cinema e a Cidade é um dos três “ciclos principais” da
Cinemateca até ao final do ano, como disse aos jornalistas José Manuel Costa na
manhã desta quinta-feira, inicialmente abafado pelo ruído das obras que são,
nos últimos tempos, a banda-sonora do filme lisboeta. No mês de regresso à
cidade no fim do Verão, e numa capital que se transforma a olhos vistos, a
Cinemateca quer “reforçar o diálogo” com Lisboa, com a qual partilha uma “existência
participada” cujo final feliz, sem ilusões, como frisa José Manuel Costa, seria
o de “discutir, sugerir acções concretas e trabalhar com as comunidades [sobre]
formas dignas de continuar a dar às populações um espectáculo que merece
condições nobres de visionamento”, defendeu.
Não se trata apenas de reflectir sobre uma paisagem em
mudança. Em 2013 o país, e com ele muitos distritos e cidades, perderam mais de
60 salas de cinema. A esta “destruturação do parque de salas”, como lhe chama o
director da Cinemateca, junta-se a forma como recebemos o cinema. “Passa muito
pela mutação tecnológica”, explica José Manuel Costa, mas há “também uma
transformação sociológica, da história da arte cinematográfica” — nesta “nova
etapa” o cinema já não é só consumido em sala, mas muitas vezes “é uma
experiência individual e isolada”. No fundo, “é preciso perceber e discutir
isto intensamente”, pede. “Como vamos transmitir às próximas gerações o
património cinematográfico do século XX”, pergunta-se.
Tudo começará, dia 2 de Setembro, com o ciclo de cerca de
cem filmes, entre curtas e longas, datados desde o século XIX de Chegada ao
Cais do Sodré do Primeiro Comboio de Cascais (1896), de Henry Short, até Holy
Motors, de Leos Carax, de 2012, por exemplo. Até Novembro, o ciclo inclui
“sinfonias urbanas dos anos 1920 e 30”, como categorizou Joana Ascensão
falando, entre outros, de Manhatta, de Paul Strand e Charles Scheeler, e
Berlim, Sinfonia de uma Capital, de Walter Ruttmann. Os grandes temas são
filmes sobre uma cidade, filmes que fundem a experiência cinematográfica com a
cidade como nessas sinfonias urbanas ou filmes que focam a sala de cinema e a
sua fruição.
Lá dentro cabem obras pop como Blade Runner – Perigo
Iminente, de Ridley Scott e clássicos como Metropolis, de Fritz Lang, bem como
as Roma de Fellini ou Rossellini, a Lisboa do Cinema Novo português de Os
Verdes Anos de Fernando Lopes, O Acossado, Vontade Indómita, Playtime, ou Los
Angeles Plays Itself de Thom Andersen, o Chacun son Cinéma de tantos
realizadores e aqueles que filmaram a sala – Il giorno della prima di Close Up,
de Nanni Moretti, junta-se a Hoje Estreia, de Fernando Lopes sobre o cinema
Condes. Um ambicioso ciclo que terá um dia de abertura especial, com sessão à
tarde, fim de dia e noite, já na esplanada, e jantar no espírito de uma longa
sessão única de sábado; outro momento especial será a projecção integral das
oito horas de Empire, de Warhol, um olhar sobre o edifício homónimo de Nova
Iorque. Em vésperas de tudo isto, a 1 de Setembro, Jules e Jim passa na
Cinemateca, tributo à actriz Jeanne Moreau.
O ciclo será pontuado por um colóquio na Cinemateca a 28 e
29 de Setembro, em vésperas de eleições autárquicas, e está em aberto — no
sentido de aberto a desafios e colaborações país fora — o plano para debates
descentralizados sobre o tema, talvez até com filmes na bagagem. Costa quer
“dizer ao país que a Cinemateca não volta a cara à responsabilidade de pensar
este problema a nível nacional” e que tem “um plano estratégico” para o papel
da Cinemateca na descentralização. Porém, as verbas e o momento ainda não
chegaram para o pôr em prática.
Os outros dois ciclos da rentrée da Cinemateca são dedicados
ao centenário da revolução soviética de 1917, desde 7 de Setembro, e a Luis
Miguel Cintra, a partir de dia 4.
Em 1917 no Ecrã convocam-se os incontornáveis Outubro e O
Couraçado de Potemkin, esse filme de Eisenstein que “incendiou a imaginação de
cineastas de todo o mundo” e que, sendo sobre a revolução de 1905, tornou-se
símbolo da revolução de 17 — “é essa a força do cinema”, decreta José Manuel
Costa — mas também é preciso “confrontar pontos de vista”. É aí que entram
filmes de realizadores da Alemanha nazi ou da Itália fascista sobre a revolução
ou as luzes da grande indústria americana sobre o acontecimento histórico em
Dr. Jivago (1965) ou Reds (1981). Noventa anos de cinema, de A Mãe, de
Pudovkine a O Barqueiro do Volga de De Mille ou à “obra-prima pouco conhecida”
Os 26 Comissários de Baku, de Nikolai Chenguelaia, estão a partir de 7 de
Setembro, sem ordenação cronológica, à mostra na Barata Salgueiro. Entre 4 e 8
de Setembro, o director do arquivo nacional russo de cinema, o Gosfilmofond sem
o qual muitas das obras do ciclo não seriam vistas em Portugal, vai contar
Histórias do Cinema sobre o realizador Fridrikh Ermler.
“Uma das maiores
figuras da cultura portuguesa das últimas décadas”, nas palavras de José Manuel
Costa, o actor e encenador Luis Miguel Cintra será homenageado no âmbito da sua
relação com o cinema e num momento de fim de um ciclo, após o fecho da Cornucópia
– companhia com uma “obra absolutamente histórica”. Os filmes em que actuou, de
Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, de João César Monteiro, até
O Novo Testamento de Jesus Cristo Segundo João, de Joaquim Pinto e Nuno Leonel,
passando pelas direcções de Paulo Rocha, do seu cúmplice Manoel de Oliveira, de
Pedro Costa, João Botelho ou Catarina Ruivo, estarão em diálogo com o ciclo em
que lhe deram Carta Branca. A programação de dez filmes, alguns dos quais
coincidentes com os do ciclo da Cidade, que o marcaram. Escolheu Fatalidade, de
Sternberg, mas também Assim Nasce Uma Estrela, de Cukor, ou Acto da Primavera,
de Oliveira, e Os Pássaros, de Hitchcock, entre outros.
Além destes três ciclos, a Cinemateca ocupar-se-á até ao
final do ano com um ciclo dedicado a Jean-Marie Straub em Dezembro, um Novembro
também marcado pelo ciclo Hollywood B e cerca de 20 sessões com as escolhas do
público da instituição. Para 2018, o ciclo de cinema anunciado, mas ainda não
detalhado, será sobre o Medo. Também para o futuro próximo, José Manuel Costa
prevê um “grande ciclo Manoel de Oliveira, agora que a obra está fechada”.
A programação diária e detalhada dos ciclos estará a partir
de sexta-feira no site da Cinemateca.
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