A Lisboa ribeirinha do pregão e da
varina agora é só dos turistas
Nos bairros históricos de Lisboa, os
residentes estão divididos entre o negócio que o turismo gera e a falta de
habitação a preços acessíveis
Ana Margarida Pinheiro 19.08.2017
Há dois anos que Natividade luta em tribunal para conseguir
manter aberto o Mercado Estrela do Castelo, o único supermercado do bairro,
mesmo ali, a 300 metros do Castelo de São Jorge. Tal como muitos moradores da
freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, também ela foi avisada que o
edifício foi vendido e que o novo proprietário quer reabilitar o espaço para
alojar turistas. “Disseram-me que tinha três meses para fechar o negócio,
esvaziar a loja e sair. Querem montar aqui um hotel para o turismo, mas eu vou
resistindo”. A luta tem permitido adiar o que no início parecia inevitável, mas
com o tempo tem visto os vizinhos abandonarem as casas de uma vida – “e há
tantas vazias que podiam ser usadas e estão ali fechadas, a cair…” Não tem
dúvidas: é preciso proteger os moradores e afastar os “olhos gordos” de quem vê
no turismo a galinha dos ovos de ouro. “Não é o turismo, é este
aproveitamento…Devia ser proibido porem pessoas de 80 anos na rua, com tantos
edifícios vazios…é um crime”. Aponta o dedo aos políticos e lamenta já não ter
do seu lado a frescura da juventude. “Eu moro aqui há 48 anos, nunca vi uma
coisa assim. Agora, o meu trabalho serve para pagar as contas”. Apesar de tudo,
Natividade não consegue repetir o que ouve os mais radicais dizerem. É que são
os euros, os dólares e as libras que estão a gerar novo movimento e a aguentar
os negócios. “No fundo, estamos a viver à custa deles, mas também estamos a ser
comidos por eles”, resume apressadamente enquanto atende os dois clientes que
tem na mercearia. A poucos metros, na Rua dos Cegos, Sónia e Paula começam a
preparar o dia que, por esta altura, promete ser agitado. Para já, o
restaurante República Portuguesa tem apenas um casal estrangeiro na esplanada.
“Aqui, 90% do negócio é gerado pelos estrangeiros, isto se não for 99%”, diz
Paula. Sónia anui. “Tem um lado bom e um lado mau, o nosso ordenado hoje
depende muito do turismo, mas para quem mora…” É o seu caso. Há mais de 30 anos
a viver no Castelo diz que hoje “já só aqui vivem 20 famílias, o resto é
turistas”. São hostéis, alojamentos locais e guest houses, muitos a ocupar
prédios inteiros, desocupando quem lá mora. “O meu prédio tem três andares, o
2.o andar já é para turistas, o prédio da frente também é só para turistas. O
do lado igual”. O que aconteceu aos moradores? “As pessoas que lá viviam
morreram, foram postas na rua ou não lhes renovam os contratos. Estão a
esvaziar tudo para os turistas”. “Também há muitos velhotes que voltam para as
terras e aproveitam o dinheirinho que lhes dão”, acrescenta Paula. Não vive
exatamente ali, a sua rua é “um pouco mais abaixo”. Por isso, também é mais
resguardada, mas à sua volta as opiniões repetem-se. “Os vizinhos acham todos o
mesmo, há zonas onde chega a ser uma invasão. Vêm para aqui para ver o que é
típico, mas assim os bairros acabam”, lamenta. “Olhe, já ali à frente” – aponta
– “o prédio do canto é todo para alojamentos locais, o edifício abaixo é um
hostel, do outro lado da estrada aqueles dois edifícios também são só para
turistas, veja são tantos ali nas varandas…” A visão não deixa margem para
dúvidas, enquanto o sol vai moendo os que começam a acender os fogareiros nos
restaurantes, nos prédios os turistas aproveitam as pequenas varandas para
estender as pernas e aproveitar o sol. Há famílias ainda a terminar os
pequenos-almoços, muitas toalhas penduradas e quem esteja simplesmente de livro
na mão. As ruas do Castelo também estão cheias. Sónia e Paula advertem: “Alfama
está pior, Alfama morreu muito”. Seguimos caminho até ao Castelo, antes de
rumarmos a Alfama. Forma-se uma fila enorme para os bilhetes, as lojas de
souvenirs estão cheias e, as sombras são disputadas pelos que passam e acabam
por ficar a admirar o local. Entre os muitos está João Tomé. Mora em Sacavém
mas decidiu rumar à capital para mostrar a cidade aos compadres de Saragoça.
“Já se notam alguma consequências negativas do excesso de turistas. Por
exemplo, nos Jerónimos aquilo é uma vergonha: só filas por todo o lado. E as
ruas estão todas sujas. Aquele urinol ali. Acha aquilo bem? É uma vergonha,
tudo sujo”. Gael também lá está. Veio de França com duas amigas e ficou numa
Pousada da Juventude. Não esperava ver a cidade assim. “Em apenas uma noite
vimos tantos franceses…não sei porquê. Há franceses em todo o lado”. Quando
sair de Lisboa ainda vai a Aveiro e Coimbra. A visita termina no Porto onde
ficará dois dias antes de seguir viagem; ao todo são 8 noites em Portugal. Por
Lisboa, o percurso faz-se pelos bairros históricos, para conhecer o que é
típico. É também para “sentir o ambiente local” que Maria e as duas amigas com
que veio dos EUA escolheram Alfama para pernoitar. Encontramo-las ainda de
malas “à espera do host” que lhes vai entregar as chaves do apartamento onde
vão ficar. A visita a Portugal vai durar seis dias e reparte-se também pelas
praias do Algarve. Para procurar alojamento utilizaram a Internet, onde
encontraram “preços acessíveis”. Além disso, perceberam que “havia opções mais
baratas do que as tabelas oferecidas pelos hotéis”. A escolha recaiu em Alfama
e no Alojamento Local. Desde 29 de
setembro de 2013 que 12 das mais antigas freguesias de Lisboa, e do país,
fundiram-se para se tornar uma só. Falamos de Mártires, Sacramento, Madalena,
Santa Justa, Sé, Santiago, São Cristóvão e São Lourenço, Castelo, Socorro, São
Miguel, São Nicolau e Santo Estêvão. A maioria dava forma aos bairros de Alfama
e da Mouraria. Outras duas faziam parte do Chiado e três da Baixa de Lisboa.
Apesar desta união, em 2013 não se contavam mais do que 13 mil eleitores
naquele espaço. Os Censos de 2011 mostram o porquê: é que a pan-freguesia tinha
apenas 10 787 habitações. Destas, 1296 eram habitações secundárias e 3498
estavam vagas ou desocupadas. É na desocupação de grande parte do espaço que o
sector do alojamento local se resguarda. É que de acordo com o Registo Nacional
(RNAL), Santa Maria Maior conta com 2483 habitações com destino ao alojamento
local, menos do que o número de casas vazias. Mas os moradores desafiam os
números e denunciam não-renovações de contratos e despejos encobertos nos
contratos novos, que terminam, e não têm de ser automaticamente renovados. “Eu
tenho uma cunhada que teve de sair e foi um caso sério para encontrar uma
casinha aqui no bairro”, relata Maria da Luz, enquanto aproveita o lavadouro
municipal do Beco do Mexias para “ganhar mais qualquer coisinha”. Não é contra
o turismo, mas já viu os cartazes e os escritos que vão surgindo com maior
frequência nas janelas e nas paredes. “A mim não me estorvam, mas é chato
porque um bairro tão típico está a ver as pessoas que aqui nasceram e as suas
famílias sair para virem para aqui turistas”. Mais abaixo Alice repete: “Eu não
tenho medo porque tenho um senhorio muito bonzinho, que já vem do tempo do meu
marido. Pago 150 euros de renda e tenho uma casa grande. Mas o resto está para
eles. Para aqui já não há nada, isto é só para estrangeiros. Olhe esta aqui em
cima também já é, vê a janela?”, aponta enquanto tenta atrair a atenção do que
passam com o pregão ‘Olha a Ginjinha. É só um euro!’. Telma não tem a mesma
sorte. Com uma renda de 350 euros por um T0 assume que no seu prédio “o 1º
andar já venderam e o 2º é para turistas”. “Faço limpeza ali numa casa, que é
de um norte-americano. Mas não mora ali, também aluga a turistas”. *com MJB
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