Moradores da Vila Dias criticam o
novo senhorio e apelam à intervenção da CML
POR O CORVO • 4 AGOSTO, 2017 •
“Já nem conseguimos dormir bem, nos últimos tempos, tal a
preocupação”. Maria (nome fictício), 39 anos, e o marido têm andado em
sobressalto só de pensar no que lhes poderá acontecer e aos três filhos
menores, acaso se confirme o temido aumento da renda da pequena casa em que
vivem na Vila Dias, no Beato – pela qual pagam 100 euros mensais. A morar ali
desde 1999, sente que todo o esforço feito, desde então, na reabilitação de uma
habitação que se encontrava em muito mau estado de conservação, possa agora vir
a ser comprometido por essa possibilidade. “Nós sentimos isto como nosso. Fomos
nós que mantivemos isto, gastámos do nosso bolso, eles nunca fizeram nada. A
nossa casa, como está, saiu do nosso esforço”, diz, ansiosa.
O “eles” é o senhorio
sobre o qual recaem todas as dúvidas e suspeitas, em relação às suas reais
intenções, por parte dos residentes das 120 casas ocupadas, de um total de 160.
Temem estar a ser enxotados de um local com grande potencial de valorização
urbanística. Pedem, por isso, a intervenção da Câmara de Lisboa. Mas Morais
Rocha, que adquiriu a vila em abril com o objectivo de a regenerar e
rentabilizar, reafirma o que já dissera a O Corvo, há um mês, e garante que a
maior parte das pessoas o receberam de “braços abertos”. “Aquilo esteve muitos
anos ao abandono, precisa de uma recuperação profunda. E é isso que vou fazer,
sem aumentar as rendas aos que lá vivem. Os valores das novas rendas é que,
naturalmente, serão diferentes”, afirma, assegurando que já deu conta das suas
intenções a quem lá vive, “por diversas vezes”.
Depois de décadas de
intensificação da degradação, fruto da falta de investimento por parte dos
antigos proprietários deste conjunto habitacional erguido em 1888, como
residência dos operários da Fábrica de Fiação de Xabregas, a última primavera
chegou com a promessa de um investimento de 5 milhões de euros na sua
reabilitação integral. O investidor José Morais Rocha, através da Sociedade
Vila Dias (SVD), dava a cara por uma operação de vulto, após ter adquirido o depauperado
núcleo residencial por cerca de dois milhões de euros – 1,3 milhões entregues a
um banco e 600 mil euros às antigas proprietárias. A recuperação gradual do
edificado tem como objectivo atrair novos moradores. Sobretudo gente mais nova,
com outras vivências, garante o novo dono. Mas a desconfiança sobre o que tal
significa de facto é muita. “Estes senhores vendem uma imagem, mas estão no
terreno a fazer outra”, acusa Hugo Marques, presidente da Associação de
Moradores das Vilas Operárias do Beato.
Há um mês, a associação emitiu um comunicado, dirigido a
todos os moradores, no qual os alertava para as dúvidas sobre quem estaria
realmente a assumir o papel de senhorio: se o novo proprietário, Morais Rocha,
se a empresa a quem este terá adquirido parte da posição, a Retoque, e a quem
acusa de “enriquecimento à custa dos moradores, esquecendo-se dos deveres de
senhorio”. Mas acusava-se também a SDV, do recém-chegado empresário, de ter
anunciado um grande investimento na Vila Dias, sem que tal se esteja a
verificar. “Na verdade, as reformas que andam a fazer é somente a substituição
de degraus, quando a maior parte das casas necessita urgentemente de obras
profundas, nomeadamente, substituição de telhados, esgotos, parte eléctrica
(…), sendo que seria agora no verão a altura ideal para a execução destes
trabalhos”, lia-se na carta, que acusava a nova empresa de apenas estar
preocupada com o lucro, “não importando o bem estar e segurança das pessoas”.
Hugo Marques reitera
o que foi escrito e aponta para o que se está passar no terreno. Ou seja, muito
pouco do que terá sido prometido. O Corvo pôde observar a existência de
trabalhos de reabilitação em duas casas, dos quais se ocupava meia-dúzia de
operários a um ritmo vagaroso, um deles carregando entulho com um
carrinho-de-mão. Nada que se parecesse com uma empreitada de fôlego e,
sobretudo, com a envergadura reclamada pelo estado lastimoso deste núcleo
habitacional.
Entre os moradores,
está também a causar indignação a intervenção feita em casa de um vizinho da
rua principal da vila, que terá visto a traseira ser emparedada devido à
necessidade de proceder ao escoramento de uma casa de banho em risco de
derrocada, no piso superior – situação retratada na anterior reportagem d’O
Corvo. O homem, deficiente e único ocupante da habitação situada no
rés-do-chão, terá visto diminuída a entrada de luz na sua fracção. Mas o rol de
situações a precisar de intervenção urgente é tão vasto, que será difícil
imaginar uma acção de reparação com tão escassos meios.
Razão pela qual Hugo Marques considera que o que se passa na
Vila Dias “é tanto um problema habitacional como social”. Algo que, dado o
estado de degradação a que se chegou, terá de passar por uma intervenção com
outra dimensão. “O ideal seria a Câmara Municipal de Lisboa tomar posse disto,
porque eles têm todos os instrumentos para resolver a situação que aqui
observamos, que é de emergência social. Se a câmara não resolver agora este
problema, vai ficar com este problema nas mãos e ter de realojar as pessoas”,
afirma, acusando os proprietários de sugerirem aos residentes a inevitabilidade
aumentos substanciais das rendas. “Se isto não se resolver, não tenho dúvidas
de que vão começar aí a surgir barracas”, diz Maria do Céu Dias, também membro
da associação de moradores. Em 2015, e dado o estado de degradação de um
conjunto de imóveis, a CML realojou 18 famílias e demoliu essas casas.
A vontade de uma
intervenção camarária é sustentada em promessas da autarquia com quatro anos.
Depois de uma visita da então vereadora da habitação, Helena Roseta, e do então
presidente da câmara, António Costa, a autarquia terá aludido à necessidade
avançar para a classificação daquele bairro como Área Crítica de Reabilitação
Sistemática. Uma promessa reforçada por Costa, no ano seguinte, em outubro de
2014, durante uma reunião descentralizada de executivo camarário. “Os
proprietários não podem estar a valorizar os seus imóveis à custa de não
cumprirem com as suas obrigações de conservação”, disse, na altura, o agora
primeiro-ministro, para justificar a necessidade de uma operação coerciva.
Nessa mesma sessão pública, a actual vereadora da Habitação, Paula Marques,
prometeu um “acompanhamento permanente da câmara, para responder a tempo e ter
outra força face às várias agressões que o proprietário tem estado a executar”.
Nessa altura, os donos da vila eram Maria Paula Alves e
Virgínia Alves, representadas pela firma Retoque – que, mais tarde, lhes viria
a mover um processo judicial, por alegado incumprimento de contrato promessa de
compra e venda. A referida empresa veio a ganhar o processo, mas também a posse
do conjunto de imóveis, antes da chegada de SVD, de Morais Rocha, em abril
passado. Apesar destas movimentações, a posse administrativa da Vila Dias por
parte do município ainda estará, aliás, em aberto. Isto porque a câmara
solicitou ao tribunal a anulação desta última transacção, por não ter sido
cumprida a prerrogativa legal de lhe ser conferido o direito de preferência.
Uma opção que poderá ainda vir a ser activada até 6 de
setembro, satisfazendo assim os anseios da alguns dos moradores e, sobretudo,
da associação que os representa. Algo que, a efectivar-se, acontecerá no
arranque da campanha eleitoral – na qual as questões da habitação serão um dos
temas fortes. Antes disso, a 19 de agosto, está agendada a deslocação à Vila
Dias da vereadora Paula Marques para uma sessão de auscultação dos moradores e
eventuais esclarecimentos. Mas não são apenas os moradores a desejarem que a
CML tome as rédeas do processo. Silvino Correia (PS), presidente em regime de
substituição da Junta de Freguesia do Beato, encara a possibilidade com bons
olhos. “Há muito tempo que a junta está consciente do que aqui se passa. Mas
achamos que deve ser a CML a tomar a iniciativa, caso assim o entenda, até pelo
seu grau de envolvimento no processo”, considera.
Tal cenário é visto por Morais Rocha, o novo dono da Vila
Dias e o alvo de todas estas críticas, como pouco provável. “Não creio que a
Câmara de Lisboa esteja muito interessada em assumir aquele conjunto de casas,
sabendo-se que na sua posse terá 61 vilas ou bairros com características
idênticas. Acho que eles têm outras preocupações e, além disso, agora existe
uma entidade que, ao contrário do que se passava antes, dá a cara pela Vila
Dias, fala com os seus habitantes, ouve-os e tem projectos para ali”, diz a O
Corvo o empresário, salientando a sua intenção respeitar a memória
arquitectónica. “Ao fim e ao cabo, estamos a seguir a estratégia definida pela
câmara de recuperar um bairro histórico, respeitando a linha arquitectónica
original”, considera, repetindo os propósitos já antes anunciados de realizar
uma reforma integral das 160 casas. “Queremos reabilitar aquela vila, mas terá
de ser de forma gradual. Roma e Pavia não se fizeram num dia”.
O empresário diz que a intervenção em curso respeitará um plano,
que tem a suas prioridades. “Em primeiro lugar está a segurança das pessoas. As
intervenções que estamos a fazer vão no sentido de não deixar degradar mais a
estrutura das casas. Isso terminará em novembro. O passo seguinte será o de ir
bloco a bloco, fazer paredes guarda-fogo, realizar reparações necessárias nos
telhados, remodelar as infraestruturas e canalizações”, explica, salientando
que espera ter essa reabilitação básica terminada até daqui a um ano ou ano e
meio. Nada disse implicará uma subida nos valores das rendas de quem ali vive,
garante. “As actualizações das rendas processar-se-ão de acordo com o que está
na lei, nada mais”, diz. Em simultâneo, haverá lugar para a reabilitação
integral das quatro dezenas de fogos desabitados, modernizando-os a fim de
chamar novos moradores.
“O nosso negócio, a nossa filosofia, não é o do turismo, não
é das malas com rodinhas. Queremos atrair par aqui jovens, pessoas com outras
vivências, estudantes”, explica, assumindo estar já a pensar naquilo que poderá
vir a ser aquela zona da cidade, com a abertura de novos negócios e a
proximidade ao anunciado Hub Criativo do Beato. Para isso, vai ser determinante
dotar de fibra óptica todas as casas remodeladas. Os valores mensais a pedir
por tais casas oscilará entre os 250 e os 300 euros, “seguindo a política
delineada pela própria câmara para um T1 numa antiga vila operária”. De acordo
com o estudo de viabilização económica por si encomendado, Morais Rocha espera
obter uma rentabilidade anual de 3% a 4% com o recebimento das rendas. Haverá
cerca de 20 habitações que estarão em incumprimento, mas o empresário diz que
os restantes moradores nada devem temer. E lamenta que a associação de
moradores não o tenha contactado. “Queremos o diálogo, falem connosco”, pede.
Texto: Samuel Alemão
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